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Muitos cozinheiros na cozinha?

Há uma provocação de um estudo acadêmico sobre a conformação institucional do Ministério Público brasileiro que indaga: há muitos cozinheiros nessa barafunda que é o sistema anticorrupção nacional?

Winters, nesse estudo, questiona se foi a melhor solução para o Brasil formar uma autoridade anticorrupção —o MP— composto de tantos centros de decisão quanto os membros da instituição.

Hoje, cada integrante do MP responde somente a si próprio e à Constituição sobre suas atividades-fim, gerando censura quanto à efetividade e à eficácia de sua atuação. No limite, apesar de soar estranho aos ouvidos de um estrangeiro, o MP vem desempenhando suas atividades a contento, ainda que esteja sujeito a críticas.

Partindo dessa premissa de diversidade de atores para um mesmo fim –o enfrentamento da corrupção–, este artigo utiliza-se da provocação original para questionar se há ou não um entrave à aplicação da legislação brasileira ante a multiplicidade de agências anticorrupção —o “Sistema U” (CGU, AGU e TCU), além do próprio MPF e sua realidade multifacetada.

Essas múltiplas agências anticorrupção também não configurariam um excesso contraproducente na aplicação da Lei Anticorrupção?

De início, é assustador imaginar que um pretendente a colaborador no país tenha que lidar com, ao menos, três ou quatro balcões distintos para expiar suas culpas, revelando assuntos ilegais e, no mais das vezes, ter que lidar com a suspeita de que as autoridades com quem negocia podem ser potencialmente próximas daqueles que são objeto da colaboração –ou “leniência”, para ser mais tecnicamente preciso.

Para tal suspeita, é bem de ver que, no plano federal, CGU e AGU minimizaram a questão ao preverem uma comissão independente, composta de servidores de carreira, para conduzir tecnicamente as negociações.
Ainda assim, contar diversos balcões diferentes causa espanto, ante a sensibilidade das informações a serem compartilhadas.

Todavia, num quadro de corrupção sistêmica como o vivido há tempos no país, não há segurança em delegar somente a um órgão toda a função de “gatekeeper”; tanto melhor que haja, de fato, outros agentes para dificultar a cooptação pelos agentes corruptores.

Essa opção de estabelecer diversas autoridades com atribuições concorrendo entre si foi uma clara opção da Constituição de 1988 e há que ser respeitada por alguém que almeje a solução negociada para um caso de corrupção.

Quando nos defrontamos com a necessidade de costurar uma homogeneidade de posições entre esses diversos atores, pareceu uma tarefa acima da compreensão humana, sobretudo por ter de explicar isso ao cliente estrangeiro, acostumado ao pragmatismo de seu país de origem. Mas a tarefa, apesar de consumir longos três anos, acabou sendo desempenhada, e o primeiro acordo com todas as autoridades anticorrupção na mesma mesa foi celebrado.

Assim, colocar inúmeros cozinheiros nessa cozinha pode, em princípio, soar um contrassenso, à luz de uma teoria distante da realidade brasileira. Todavia, descendo ao piso em que caminhamos diuturnamente, parece que a ideia do legislador é diminuir o risco de cooptação. Gera insegurança, sim, e dá muito mais trabalho para aplicar.

Caótico, desorganizado, mas brasileiro. “It is what it is”. Temos que lidar com essa situação, e o recente acordo celebrado com um grupo internacional de comunicação é prova de que há lógica nessa aparente balbúrdia: havendo uma racionalidade técnica —e a robustez dos cálculos de ressarcimento ao erário é fundamental—, os cozinheiros atuam de forma organizada. É, sim, possível de se fazer uma feijoada nessa cozinha!

“Acordos de leniência são importantes para Brasil encontrar caminho da transição”

8 de julho de 2018, 9h17

Por Pedro Canário

O Brasil precisa se reconciliar com seu próprio passado para que possa encontrar formas de olhar para frente e superar a pauta da corrupção. Uma das chaves para isso, na opinião do advogado Igor Tamassausskass, está nos acordos deleniência.
Eles são uma grande oportunidade para empresas sentarem à mesma mesa que o governo para discutir
formas de resolver problemas causados pelos malfeitos de seus funcionários e executivos. E, mais importante, continuar funcionando, gerando empregos, pagando impostos e desenvolvendo a economia do país.
A Lei Anticorrupção, que previu esse tipo de acordo pela primeira vez, é recente: foi aprovada em 2013, depois de mais de dez anos de tramitação, no susto das manifestações de junho daquele ano. Pouco tempo depois a
operação “lava jato” tomou conta da pauta política do país e diversas das maiores empresas do Brasil começaram a ser acusadas de financiar um sistema corrupto de perpetuação no poder.
Tamasauskas considera natural que diversos órgãos disputassem o protagonismo na condução dos acordos responsáveis por revelar como alguns setores da economia brasileira fazem negócio. Foi o que aconteceu: a
lei dá à Controladoria-Geral da União a competência para os acordos de leniência, mas tanto o Ministério Público Federal quanto o Tribunal de Contas da União editaram normas internas para se autorizar a participar
dos processos.
Ao mesmo tempo, o governo passou a usar a Advocacia-Geral da União para acusar as empresas que fecharam acordos com o MPF de improbidade administrativa e cobrar multas bilionárias.
O resultado foi a inviabilização de alguns acordos. Mesmo os que foram assinados nos termos da lei, como o da construtora UTC, hoje esbarra nas exigências do TCU. Igor Tamasauskas parece ter encontrado a fórmula para
navegar no meio dessa disputa, que passa justamente por envolver todos os órgãos e instituições na mesma negociação.
“Se esses órgãos se dizem competentes, eles têm que participar das negociações.” Foi por causa dessa postura, garante o advogado, que ele e sua equipe conseguiram costurar o acordo de leniência da agência publicidade
MullenLowe Brasil, o primeiro a envolver o MPF e todas as agências do governo, além do TCU.
Pelo acordo, a empresa pagará R$ 53,1 milhões aos cofres públicos. O dinheiro é a devolução dos lucros de todos os contratos assinados pelo exdiretor da agência Ricardo Hoffmann, além de uma multa. Hoffmann foi descoberto durante as investigações da “lava jato” e já foi condenado por corrupção por causa desses contratos – na mesma fase da operação foram presos os ex-deputados André Vargas (PT-PR) e Luiz Argôlo (SDD-BA).
Nesta entrevista à ConJJur, o advogado Igor Tamasauskas conta alguns detalhes do processo de negociação do primeiro – e até agora único – acordo de leniência a envolver todas as autoridades federais competentes.
Leia a entrevista::

ConJur — Como foi esse processo de negociação com diversos órgãos ao mesmo tempo?

Igor Tamasauskas — Procuramos a CGU para dizer: “olha, tem uma pessoa que fez coisa errada em nome da agência e a agência vai assumir a responsabilidade. Já estivemos no Ministério Público Federal, queremos
resolver nossa vida com as autoridades, OK?” “OK”. Começamos a discussão com o MPF sempre deixando a CGU a par do que estava acontecendo. Isso levou cinco meses com o MP, desde a investigação interna, dar detalhes do
que tinha achado, que tipo de prova seria encontrada, a ordem em que tínhamos colocado a documentação, para mostrar efetivamente o que tinha acontecido. O MPF se convenceu que era caso de acordo, passamos para a
fase de discussão de valores.

ConJur — Demorou, então,, com as agências do governo?

Igor Tamasauskas — O processo demorou na discussão entre CGU e AGU. Com o MPF foi rápido. As negociações com a CGU foram e voltaram porque, se não me engano, foram seis ministros diferentes, houve o impeachment, nomeio do caminho a AGU se entendeu competente para participar das negociações – houve uma evolução na compreensão do governo de que só se consegue fazer acordo com fins judiciais se a AGU participar.
O TCU, também no meio do caminho, baixou resolução falando que como há autoridades públicas decidindo sobre valores do Tesouro, também tem atribuição para fiscalizar como são feitas essas negociações. Em todas as
etapas, a CGU nos consultou para saber se concordávamos com a participação da AGU, do TCU etc. Não temos escolha: se esses órgãos estão se dizendo competentes, temos que aceitar. Tudo o que foi identificado
colocamos à disposição para esclarecer quem quer que fosse. Nossa pauta sempre foi muito respeitosa em relação a isso, de entender o tempo da administração. Demora porque é uma lei nova, os órgãos precisam saber como ela se aplica e não podem pensar só no caso concreto, porque pode impactar outros casos.

ConJur — Como foi o primeiro contato? A empresa é que identificou as irregularidades e foi até os órgãos, ou houve algum inquérito antes?

Igor Tamasauskas — Tinha acontecido uma busca e apreensão na sede da empresa, em abril de 2015. Mas a busca tinha como alvo um diretor da empresa, não a própria empresa. A Lowe, então, foi ao MPF e disse que tinha sido surpreendida, que os fatos não compactuam com seus valores e gostaria de cooperar para resolver essa situação. Aí foi feito um cálculo do dano ao erário, uma multa, e chegou-se ao valor de R$ 50 milhões. Fomos à
CGU e aproveitamos uma ida da pasta a Curitiba para uma reunião com os investigadores da “lava jato”. Pedimos para participar por 15 minutos, para explicar as negociações. No dia 16 de outubro de 2015, fechamos um acordo
com o MPF.

ConJur — Vocês entendem que conseguiram contribuir com esse processo de amadurecimento insstitucional?

Igor Tamasauskas — Obviamente dávamos opinião, mas o que sempre se procurou fazer foi construir uma ideia com todos os atores. Não dá para dizer se veio de A, B ou C, mas a ideia foi a de construir um “acordo espelho”
com os diversos balcões. Primeiro fechamos com o MPF e depois com os outros órgãos. Basicamente, foi explicar que não seria possível que cada órgão exigisse um tipo de reparação, uma multa diferente. Não se pode
punir diversas vezes pelo mesmo fato, então se você acertou uma multa com aquele órgão, a punição deve se repetir nos demais – isso é em relação à punição, não ao ressarcimento. No caso da Mullen Lowe, os R$ 50 milhões já
envolvem ressarcimento e multa.

ConJur — Como se chegou a esse valor?

Igor Tamasauskas — Chegamos a um critério que se chama disgorgement, que a literatura norte-americana até critica. É uma espécie de regurgitação dos lucros ilegais.

ConJur — Por que critica?

Igor Tamasauskas — A literatura considera esse método pouco preciso. Mas é o cachorro correndo atrás do próprio rabo: o Estado não teria conhecimento do esquema em detalhes se não tivesse a colaboração da empresa, e só tem a colaboração se o cara conseguir pagar a multa e o ressarcimento estabelecidos. Não faz sentido assinar um acordo que a empresa depois não possa pagar.

ConJur — Como funciona essa regurgitação?

Igor Tamasauskas — É o seguinte: para fazer aquele objeto contratado, você precisa fazer investimentos, contratar gente, pagar contas de luz, água, internet, gastos que qualquer empresa que estivesse ali teria de fazer. Mas o
lucro seria indevido porque foi obtido mediante alguma ilegalidade. A partir dessa conta, a empresa devolve os valores do lucro. Optamos por esse método porque contratos de publicidade sempre são pela melhor técnica.
Ou seja, todas as empresas que tiverem um contrato com a administração receberão o mesmo valor, o que muda são os critérios técnicos. Mas o importante foi que esse racional de cálculo foi aceito pelo MPF, pela CGU, pela AGU e pelo TCU – pelo Estado brasileiro.

ConJur — Esse valor não é baixo? Pelo menos o que se divulga é que os contratos de órgãos públicos com agências são multimilionários..

Igor Tamasauskas — É que nesse bolo vem o dinheiro da veiculação. Esse dinheiro só passa pela agência, mas vai direto para a mídia onde vai ser veiculado o anúncio. O que fica com a agência é só a criação. Os contratos de
publicidade são astronômicos por causa dessa verba de veiculação. Se o cálculo da multa fosse feito com base no valor cheio do contrato, mataria a empresa. Explicamos de maneira bastante consistente às autoridades que
uma coisa é o dinheiro que a agência recebe para sua atividade-fim e outra é uma verba de repasse, paga por meio da agência talvez por uma facilidade de execução. As autoridades entenderam isso, mas de fato foi um problema
no início. Olhavam para o valor do contrato e diziam: “Bom, se vocês faturaram isso com o contrato, queremos 20%”. Mas 20% já era muito maior do que o contrato inteiro, se excluída a verba de veiculação.

ConJur — Por que negociar com todos ao mesmo tempo,, e não fazer como as demais empresas fizeram? Isso não atrasou ainda mais a conclusão do acordo?

Igor Tamasauskas — Foi uma decisão de respeitar todos os órgãos. Sabemos que tem dificuldades, a lei é nova e traz uma política nova de resolução de conflitos de corrupção no Brasil. Por mais que o acordo tenha demorado três anos para ser assinado, foi mais rápido que uma decisão final num processo de improbidade. Quando você delega para um terceiro decidir por você, a decisão pode ser boa ou pode ser horrorosa. Negociando, você consegue analisar os riscos e dar mais previsibilidade ao processo – por mais que seja uma solução intermediária e nem sempre a melhor para
você. Para as empresas isso é muito importante, porque elas conseguem fazer o cálculo do custo econômico.

ConJur — Ninguém havia conseguido fechar esse tipo de acordo ainda. O da Mullllen Lowe foi o primeiro,, mas não foi seguido de outros. Em diversos acordos houve alguma discussão sobre o valor da multa ou do ressarcimento, especialmente por parte do TCU.

Igor Tamasauskas — A primeira coisa que notamos é que a legislação éindica claramente que a CGU é competente para fazer os acordos. Só que o Brasil tem uma sobreposição de uma série de agências para fazer a mesma coisa, uma concorrência de atribuições. A lei dá competência à CGU, só que o Ministério Público tem competência constitucional para esses temas. Portanto, você não pode correr só na CGU e deixar o MP de lado, resolver a
situação numa ponta e deixar a outra descoberta. Da mesma forma não podemos falar para um órgão de 200 anos como o TCU e dizer que ele não pode participar. Não tem como excluir a AGU, um órgão que nasceu com a
Constituição a partir de um braço do Ministério Público. O papel de quem costura um acordo com todas essas agências é esse mesmo.

ConJur — O problema que se aponta é que foi o próprio TCU quem se deu essa atribuição.

Igor Tamasauskas — Mas buscou inspiração na Constituição, e não acho que esteja errado. Imagina uma dessas situações escandalosas envolvendo valores astronômicos, e o acordo é fechado por R$ 1. Imagina se ninguém
pudesse questionar? A função do TCU é saudável nessa história. É preciso filtrar eventual pressão que possa acontecer. Nunca presenciei nenhuma situação em que houvesse alguma pressão para que o acordo não fosse
assinado, mas seria o caso de afastar a autoridade, não o órgão inteiro. A mensagem que o caso da MullenLowe passa é esta: se a autoridade atuar com desvio de finalidade, ela deve ser afastada do caso; mas não podemos
afastar o órgão.

ConJur — Como fizeram para convencer a empresa a ser a primeira a tentar esse acordo coletivo?
Igor Tamasauskas — Quando percebemos a sobreposição de competências, recomendamos ao cliente que fechasse todas as pontas, para que as revelações não fossem usadas contra a empresa depois. Fomos lá explicando que a lei é nova, que isso nunca tinha sido feito antes, preparamos uma tabela para mostrar os parâmetros de valores… A empresa é controlada por um grupo estrangeiro, então precisávamos mostrar tudo para o advogado lá de fora, para que ele entendesse o que estava acontecendo. Engraçado é que o diretor jurídico brasileiro falava “essa história de ‘acordo espelho’ é um unicórnio, não existe”, mas conseguimos demonstrar que havia a sinalização de que esse era o caminho mais seguro, respeitando a atribuição de todos os órgãos e o que cada um tinha a contribuir nesse
processo. Sempre apostamos na ideia de construção de um entendimento.b Agora, óbvio que não sou inocente: sempre pode haver uma ou outra autoridade que use da posição técnica para se contrapor à ideia da
colaboração.

ConJur — O argumento do MPF é justamente o de que o governo vem usando de suas instituições para inviabilizar esses acordos e impedir que as informações reveladas sejam usadas contramembros do governo.. Pelo menos foi o que alegaram quando pediram ao juiz Sergio Moro que proibisse o uso de provas dos acordos de leniência.. Diversos advogados e até empresários concordam com isso.

Igor Tamasauskas — Não tenho como falar se era essa a intenção do governo ou não. O dado objetivo é que provas produzidas em colaborações estavam sendo usadas contra as próprias empresas. Isso é incompatível com o princípio da colaboração. Já dei entrevista à ConJJur dizendo que tinha achado boa a decisão do Moro [que proibiu a vários órgãos usar delações contra os próprios delatores. Continuo achando. É inadmissível que o Estado use contra empresas provas fornecidas por ela ao próprio Estado. Mas esse tipo de freio de arrumação faz parte do processo de amadurecimento do sistema. A função de quem está bem-intencionado na aplicação da Lei Anticorrupção é buscar
alternativas para atingir o fim maior dela, que é a colaboração efetiva que permita conhecer como nunca se conheceu a profundidade dos esquemas de corrupção no Brasil. É ressarcir o erário e punir efetivamente quem se portou mal. E punir não é matar. Se for para matar, melhor deixar que um juiz decida se é o caso ou não de extinguir uma empresa.

ConJur — A impressão é que alguns órgãos não têm interesse em
negociar,, apenas em punir.

Igor Tamasauskas — O Estado não pode se fazer de vítima. O Estado brasileiro participou desses desvios. Há obras e obras descrevendo o patrimonialismo do Estado brasileiro. Ele permitiu que as coisas chegassem nesse ponto. É preciso entender que os órgãos estatais têm sua parcela de culpa. O eleitor, quando escolhe seus representantes, também. Isso precisa ser resolvido. O Estado não pode, agora, posar de vestal e querer aplicar todo o peso de
uma lei que foi pensada para hoje a fatos da década passada. É preciso encontrar um meio-termo, uma forma de transição para um mundo um pouco mais de acordo com os valores de hoje da sociedade. Essa é a função
que esses acordos têm e essa deve ser a função do advogado, do gestor público e de quem for aplicar a lei. Justamente para que a gente possa sair dessa encruzilhada. Não dá para achar que vamos arrebentar com determinado setor da economia, porque vamos continuar precisando da indústria de construção civil e a morte de um setor da economia dificilmente será suprida.

ConJur — Pelo que tem sido divulgado,, esse setor especificamente está morrendo.

Igor Tamasauskas — O setor estava funcionando numa base totalmente equivocada. Isso precisa ser superado, mas de uma forma que se consiga punir quem agiu mal, corrigir rumo e indicar um caminho para a saída. Se a
gente ficar trabalhando com a lógica de só matar, o Brasil para. Não podemos ficar só nessa pauta. E a superação dessa pauta passa por esses acordos de leniência.

ConJur — No início da ““lava jato”” o discurso dos executivos das grandes empreiteiras era de que eles foram extorquidos pelo sistema político.

Igor Tamasauskas — Isso não é verdade. A própria operação já mostrou que havia uma combinação entre o sistema político e esse setor econômico. Não dá para dizer que um é só vítima e o outro é só algoz. Maniqueísmo
aqui não funciona, aquela era a lógica do sistema. Se ficamos achando que um é bom e o outro é ruim, nunca vamos sair desse impasse. O Brasil precisa se reconciliar com a moralidade administrativa: a moralidade não pode esmagar o passado que até pouco tempo geria – e ainda gere – algumas relações políticas no Brasil, mas também não podemos deixar que esse passado jogue a moralidade para baixo do tapete e dizer que só vale o voto. Uma coisa precisa se reconciliar com a outra. Não dá para imaginar uma sociedade democrática e representativa em que a moralidade não tenha um papel importante. Os acordos são um mecanismo importante para fazer essa transição, porque todos os atores precisam começar a olhar para o sapato alheio e imaginar como seria calçá-los.

Fim das coercitivas resgata garantias constitucionais, dizem advogados

O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira (14/6), por 6 votos a 5, que é inconstitucional a condução coercitiva para interrogatórios. Com isso, fica proibida a prática, que vinha sendo utilizada com frequência em investigações, incluindo a operação “lava jato”. A decisão foi elogiada por criminalistas, que consideraram que o fim da condução coercitiva resgata garantias constitucionais.

Autora de uma das ações analisadas, a Ordem dos Advogados do Brasil comemorou a decisão. “Uma vitória para a democracia! Todos nós queremos o combate ao crime e à impunidade, mas nos estritos termos da lei. Não vou me cansar de afirmar que não se combate o crime cometendo outro crime”, diz o presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia.

“A Constituição brasileira assegura que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo, além do que, o investigado ou acusado tem o direito de permanecer calado, portanto, a condução coercitiva, por si só, já representa uma violência do Estado contra o cidadão, absolutamente imprópria numa democracia”, afirma o criminalista Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

O advogado Maurício Dieter, chefe do Departamento de Amicus Curiae do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), avalia que a decisão garante preceitos fundamentais. “Trata-se de uma vitória importante na tentativa de restaurar os direitos humanos no processo penal brasileiro, corrompidos que estavam por pretensões punitivas que não merecem qualquer elogio”, afirma Dieter, que fez sustentação oral no STF durante o julgamento – a entidade atuou como amicus curiae em uma das ações.

O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini afirma que forçar alguém a participar de interrogatório é uma medida descabida. “A condução coercitiva é um contrassenso. Se o depoimento é ato de defesa e o acusado pode inclusive ficar em silêncio, a medida e descabida.”

Em coluna publicada na ConJur, Bottini já havia defendido o fim da medida, apontando suas ilegalidades. Além disso, ele rebateu os argumentos dos que acreditam que o fim da condução coercitiva aumentará as prisões cautelares. “O fim da condução coercitiva não levará à sua substituição pela prisão temporária, uma vez que os requisitos, as hipóteses de cabimento e as finalidades são distintas”, escreveu.

Para João Paulo Martinelli, professor de Direito Penal do IDP-São Paulo, “a condução coercitiva, da forma como vem sendo aplicada, não possui previsão legal”. “Qualquer medida que restrinja direitos, especialmente a liberdade, precisa ter previsão legal. O voto do ministro Celso de Mello foi magistral, uma aula de processo penal. O ministro lembrou que nosso Código de Processo Penal foi editado na vigência de um regime de exceção, a ditadura Vargas, período em que a Constituição era completamente diferente da atual”, diz.

Martinelli destaca, no entanto, que ainda há outras violações que seguem ocorrendo, “como a prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz ou a produção de provas pelo magistrado, quando este faz perguntas às testemunhas, como se fosse parte do processo”.

O criminalista Nelio Machado elogiou o resultado. “A decisão representa o retorno da corte aos princípios universais de respeito às garantias da Constituição, implicando no encerramento do espetáculo medieval das conduções coercitivas.” O advogado João Francisco Neto acredita que em breve outras violações também devem cair. “Cuida-se de notável derrota, dentre outras tantas que estão por vir, daqueles que se empolgam com métodos repressivos inovadores e sem amparo na lei”, avalia.

Professor de Direito Penal e Processual Penal, Daniel Gerber se mostrou espantando com os argumentos apresentados por aqueles que defendem a condução coercitiva para interrogatório. “Definitivamente, estamos em uma cultura punitivista e midiática. O discurso populista superou todas as mínimas garantias que um cidadão deve ter contra o Estado”, diz. Segundo ele, a possibilidade de prender alguém momentaneamente para escutá-lo é insustentável, seja do ponto de vista ético, seja do jurídico.

Prisões cautelares
Vera Chemim, advogada constitucionalista, faz um alerta. “A decisão poderá acarretar no aumento do número de prisões cautelares, entre elas, a ressurreição da prisão temporária, quando se fizer necessária à investigação ou ao processo penal, a menos que se criem outros mecanismos na seara processual penal que possam viabilizar a investigação e o próprio processo penal.”

Entendimento semelhante é o da criminalista Claudia Vara, do San Juan Araujo Advogados. “Preocupa a postura das instâncias ordinárias a partir de tal decisão, pois não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a substituição da condução coercitiva pela prisão cautelar, tendência essa que já foi verificada após a concessão da medida liminar pelo ministro Gilmar Mendes nos autos dessa ação, depois da qual houve expressivo aumento do número de prisões cautelares”, avalia.

Nathalia Rocha, do Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados, entende que a decisão não representa impunidade e não afetará os depoimentos já colhidos “Aos que temem a impunidade, é importante que se tenha em vista que as investigações penais não serão prejudicadas, pelo contrário, serão legitimadas pelo respeito a garantias constitucionais, sobretudo ao direito a não autoincriminação.”

Para Daniel Bialski, a decisão encerra uma ilegalidade que, segundo ele, era cometida com o objetivo de forçar uma eventual delação premiada. Everton Seguro reforça esse entendimento: “Acredito que a maioria dos casos na ‘lava jato’ e outras operações, com uso da condução coercitiva, teve o propósito de intimidar os acusados. Isso não mais ocorrerá após a decisão do STF.”

Lavagem de dinheiro e resoluções do Coaf

Algumas palavras merecem ser escritas sobre a mais recente implementação da política de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro no Brasil. As estratégias nacional e internacional de combate a esse crime têm por base uma implementação de caráter colaborativo. Ou seja, o Poder Público, ciente de sua incapacidade estrutural para fiscalizar todas as transações financeiras que possam abrigar reciclagem de capital ilícito, determina que algumas entidades privadas o auxiliem nessa tarefa, como bancos, corretores, comerciantes de joias, de bens de alto luxo, dentre outros indicados no artigo 9 da Lei nº 9.613, de 1998, impondo a elas algumas obrigações.

Tais obrigações podem ser divididas em três grandes grupos: (i) obrigação de registro; (ii) de comunicação e (iii) de compliance. O primeiro grupo compreende a coleta e sistematização de dados sobre clientes, operações financeiras e comerciais, e seus beneficiários. O segundo diz respeito à comunicação às autoridades públicas de atos suspeitos de lavagem de dinheiro que cheguem ao conhecimento do profissional ou da empresa. Por fim, impõe-se a criação de uma politica de compliance, definida em linhas gerais como a implementação de mecanismos internos de prevenção e combate à lavagem de dinheiro.

A regulamentação de tais obrigações é formatada pelos órgãos de regulação de cada setor afetado. Os ramos sem órgão regulador são normatizados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que tem expedido resoluções específicas para os diferentes âmbitos profissionais. Tais resoluções detalham a forma de cumprimento das obrigações estabelecidas em lei e seu conhecimento e cumprimento são fundamentais para preservar a empresa e seus dirigentes de qualquer responsabilidade por eventuais atos ilícitos praticados sem o seu conhecimento.

Não obstante o empenho e a dedicação do Coaf na elaboração das resoluções sob sua competência, alguns pontos merecem atenção e cuidado.

Ao tratar da política de compliance, o Coaf dispõe, em várias resoluções, que a pessoa obrigada deve “avaliar a existência de suspeição nas propostas e/ou operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns”. No entanto, não explica o que entende por operações “incomuns”, nem mesmo no que consiste a “especial atenção”. No que concerne ao dever de comunicação, é frequente a disposição de que deverão ser comunicadas operações que, consideradas as partes e o modo de realização, possam configurar “sérios indícios da ocorrência dos crimes de lavagem de dinheiro”, sem que tais indícios ou suspeitas sejam definidos de forma mais objetiva. Também merecem atenção regras genéricas como a seguinte: “Os procedimentos para apuração de suspeição devem ser recorrentes, inclusive, quando necessário, com a realização de outras diligências além das expressamente previstas nesta resolução”, sem indicação de quais seriam tais medidas.

É a autoridade pública a fonte regulamentar, e não o profissional do setor sensível

Pode-se dizer que a dinâmica do crime organizado e sua criatividade para forjar subterfúgios diante das regras de controle exigem uma abertura normativa, apontando-se a inutilidade de conceitos rígidos nas resoluções. Valeria aqui, mais que um texto engessado, o recurso ao bom senso do profissional do setor sensível para identificar atos suspeitos de lavagem de dinheiro. As determinações do Coaf seriam exemplificativas e caberia ao gestor sua complementação diante da realidade concreta, da análise das operações que, em seu setor, implicam em maior risco de lavagem.

Ocorre que as normas em discussão não são meras recomendações, mas determinações cogentes, cujo desprezo resulta na imposição de pesadas sanções administrativas (no valor de até R$ 20 milhões) e, a depender da orientação judicial, poderão até mesmo implicar em condenação criminal pela participação na lavagem de dinheiro. Por isso, a indeterminação é preocupante e a taxatividade recomendada, para que o responsável pelo setor de compliance possa, com segurança, desenhar as políticas de seu setor e calcular seu custo de implementação.

Isso não significa desprezar a necessidade de adaptação constante das regras de prevenção à lavagem de dinheiro. Mas essa é a função do gestor público e não do profissional privado. Este último é chamado a colaborar com a execução de sistemas de prevenção, e tal estratégia é correta. Mas exigir dele a formulação de regras de controle no lugar do Poder Público parece ônus demasiado.

É a autoridade pública a fonte regulamentar, e não o profissional do setor sensível. E existem mecanismos para que ela possa criar novas normas diante de situações urgentes, dispensando procedimentos burocráticos. Basta apontar que algumas resoluções do Coaf autorizam o presidente do órgão, em ato isolado e independente de aprovação do colegiado, a listar operações cuja comunicação passa a ser obrigatória.

Embora bem desenhadas, as resoluções administrativas merecem alguns reparos do ponto de vista da taxatividade. Não nos preocupa o excesso de atribuições, mas sim a falta de clareza sobre algumas determinações. As críticas expostas tem o objetivo de colaborar para o aprimoramento das regras, possibilitando que os profissionais e empresas dos setores sensíveis exerçam suas atividades com segurança e a previsibilidade em relação a seus deveres e obrigações.

Finalmente, por se tratar de matéria nova, um mecanismo útil seria a criação, pelo Coaf, de procedimento de “consulta”, tal qual previsto para o caso da administração tributária, como canal para um diálogo preventivo com os sujeitos obrigados acerca do conteúdo e dos limites das obrigações que lhes são impostas.

Pierpaolo Cruz Bottini e Heloisa Estellita são, respectivamente, advogado e professor de direito penal da USP; advogada e professora da Direito-GV

Fonte: Valor Econômico, 27/02/2013. Disponível em: http://www.valor.com.br/brasil/3023690/lavagem-de-dinheiro-e-resolucoes-do-coaf#ixzz2M6J8YDiA.

O princípio da insignificância no STF é uma novidade

Na semana passada foram divulgados os primeiros dados de uma pesquisasobre a forma como o Supremo Tribunal Federal aplicada o princípio da insignificância. O estudo — no qual tomei parte — foi apoiado pela Fapesp e elaborado por um grupo de acadêmicos da Faculdade de Direito da USP — Ana Carolina Carlos de Oliveira, Daniela de Oliveira Rodrigues, Douglas de Barros Ibarra Papa, Priscila Aki Hoga, Thaísa Bernhardt Ribeito — contando com a preciosa colaboração da professora Maria Tereza Sadek.

Os dados colhidos foram interessantes. Em primeiro lugar, fica claro que a aceitação pelo STF do princípio da insignificância é uma novidade. Há dez anos praticamente não se falava em afastar a repressão penal de comportamento cujo resultado fosse pequeno, bagatelar, como o furto de chocolates ou xampus. Nos últimos tempos, no entanto, a Corte passou a reconhecer com frequência a tese da insignificância, a ponto de o número de decisões reconhecendo-a ter triplicado entre 2007 e 2008.

O instrumento mais usado para levar esta questão ao STF foi o Habeas Corpus, tanto em casos de réus presos como soltos. 86,7% dos casos chegaram à Suprema Corte via Habeas Corpus, e, dentre estes, em cerca de 70% foi reconhecida a insignificância. Parece, com isso, que o tão criticado remédio constitucional ainda tem um importante papel, nem que seja o de evitar a continuidade de inúmeras ações penais contra réus cuja conduta é irrelevante do ponto de vista criminal.

Outro dado que merece atenção: o número de decisões que reconheceram a insignificância nos crimes patrimoniais comuns (ex. furto, estelionato) é menor do que aquelas que aplicaram o mesmo princípio nos casos de crimes fiscais. A proporção é de 52,2% nos primeiros e de 72,4% nos últimos. Ademais, o valor considerado insignificante em cada crime foi bem diferente.

Em 60% dos casos que envolveram crimes patrimoniais comuns (furto, estelionato) no valor de 0 a R$ 100 a insignificância foi reconhecida. O número é reduzido a 40% na faixa de R$ 201 a R$ 700 e nulo nos crimes cujo dano foi superior a R$ 700.

Já nos crimes fiscais, a insignificância foi reconhecida na totalidade dos casos de valores na faixa de R$ 3.001 a R$ 5.000. Isso se explica pela Lei de Execução Fiscal que afasta a cobrança judicial da divida tributária em valores de até R$ 10 mil. Como aponta a jurisprudência, se nos casos de sonegação até este valor a própria vítima — Poder Público — não age para obter a restituição dos valores, não cabe ao Direito Penal interceder. Tudo em respeito ao princípio da subsidiariedade, que coloca o Direito Penal como último instrumento de repressão, apenas quando todos os demais mecanismos falham.

A interpretação é correta. O que não parece se justificar do ponto de vista político criminal é a discrepância do reconhecimento da insignificância entre os crimes comuns e os fiscais. Como explicar considerar insignificante a sonegação de R$ 10 mil e — por outro lado — reconhecer a legitimidade da pena diante de um furto de uma bicicleta?

A solução que parece mais adequada — e justa — é estender o raciocínio feito sobre a execução fiscal para todos os delitos patrimoniais sem violência ou grave ameaça. Algo como: se o bem for restituído e não houver representação da vítima, fica afastada a persecução penal. A natureza jurídica deste fenômeno — se exclusão da tipicidade ou falta de elemento para Ação Penal ou exclusão da punibilidade — pode ser discutida adiante, mas o efeito pragmático será a correção da evidente distorção hoje observada no sistema penal, onde a insignificância beneficia os autores de certos crimes de forma muito mais generosa e ampla do que outros.

FONTE:http://www.conjur.com.br/2011-set-06/direito-defesa-principio-insignificancia-stf-novidade

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