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Por Pierpaolo Cruz Bottini

Muito se fala na “teoria da cegueira deliberada” nos processos nos quais se discute o crime de lavagem de dinheiro. O tema é polêmico e já pauta inúmeras discussões acadêmicas e judiciais, razão pela qual parece oportuna uma sintética análise de seus contornos.

A lavagem de dinheiro é crime doloso, somente se realiza com intenção de resultado. Há uma grande discussão doutrinária sobre a admissão do dolo eventual na seara da lavagem de dinheiro, que se resume à seguinte indagação: aquele que não conhece a origem criminosa dos valores que oculta, mas desconfia dela, pratica ou não o crime em questão?

Pessoalmente discordo da possibilidade de dolo eventual na lavagem de dinheiro. Mas, caso se admita a hipótese, algumas cautelas são necessárias. Antes de tudo, é fundamental notar que o dolo eventual, ainda que careça da vontade de resultado e da ciência plena da origem ilícita do bem,exige uma consciência concreta do contexto no qual se atua. Como ensina Roxin, não basta uma consciência potencial, marginal, ou um sentimento[1]. Deve-se averiguar se o agente percebeu o perigo de agir, e se assumiu o risco de contribuir para um ato de lavagem[2]. A mera imprudência ou desídia não é suficiente para o dolo eventual.

Pois bem. Aqui entra a teoria da cegueira deliberada. Seria uma espécie de dolo eventual, onde o agente sabe possível a prática de ilícitos no âmbito em que atua e cria mecanismos que o impedem de aperfeiçoar sua representação dos fatos[3]. É o caso do doleiro que suspeita que alguns de seus clientes possam lhe entregar dinheiro sujo para operações de câmbio e, por isso, toma medidas para não ter ciência de qualquer informação mais precisa sobre os usuários de seus serviços ou sobre a procedência do objeto de câmbio.

É possível equiparar a cegueira deliberada ao dolo eventual. Desde que presentes alguns requisitos.

Em primeiro lugar, é essencial que o agente crie consciente e voluntariamente barreiras ao conhecimento, com a intenção de deixar de tomar contato com a atividade ilícita, caso ela ocorra. A desídia ou a negligência na criação de
mecanismos de controle de atos de lavagem de dinheiro não é suficiente para o dolo eventual. O diretor de uma instituição financeira não está em cegueira deliberada se deixa de tomar ciência de todas as operações em detalhes do setor de contabilidade a ele subordinada, e se contenta apenas com relatórios gerais. A otimização da
organização funcional da instituição não se confunde com a cegueira deliberada. Da mesma forma, não se reconhece o instituto nos casos em que o mesmo diretor deixa e cumprir com normas administrativas — como a instituição de comitê de compliance — por negligência. A falta de percepção da violação da norma de cuidado afasta o dolo eventual.

Por outro lado, se o mesmo diretor desativa o setor de controle interno, e suspende os mecanismos de registro de dados sobre transações de clientes,com a direta intenção de afastar os filtros de cuidado, pode criar uma situação de cegueira deliberada.

Mas, para isso, há um segundo requisito: o motivo da criação dos filtros de cegueira deve ser precisamente evitar o conhecimento especifico de atos infracionais penais. Se o agente não quer conhecer a procedência dos bens, mas representa como provável sua origem delitiva, e ainda assim realiza a conduta, haverá cegueira deliberada. Por outro lado, se lhe faltar absolutamente a consciência da origem delitiva dos bens, fica “absolutamente excluído o dolo eventual” [4]. Assim, se a ausência de controle tiver por objetivo afastar o conhecimento de ilícitos administrativos ou tributários — sem qualquer representação sobre a possibilidade de mascaramento de capitais —, não haverá dolo eventual em relação à lavagem de dinheiro. Por outro lado, se o diretor do exemplo anterior suprimir os sistemas de
compliance e desativar mecanismos de comunicação, representando a possibilidade da prática de lavagem de dinheiro, haverá dolo eventual[5].

Por fim, é necessário que a suspeita de que naquele contexto será praticada lavagem de dinheiro esteja escorada em elementos objetivos. A possibilidade genérica que os usuários do serviço ou atividade praticarão mascaramento de capital não é suficiente. São imprescindíveis elementos concretos que gerem na mente do autor a dúvida razoável sobre a licitude do objeto sobre o qual realizará suas atividades.

Como ensina Blanco Cordero, é preciso suspeita, probabilidade de realização e verificação da evitabilidade para a cegueira deliberada[6].

Em síntese, a cegueira deliberada somente é equiparada ao dolo eventual nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação recair sobre atos de lavagem de dinheiro.

[1] ROXIN, Derecho penal 472

[2] ROXIN, Derecho penal, 447

[3] Para uma visão detalhada do instituto, BLANCO CORDERO, El delito de blanqueo de capitales, 3ª ed. Cap.VII, 3.3, PRADO, Dos crimes: aspectos subjetivos, 237 e MORO, Crime de lavagem de dinheiro, 69

[4] BLANCO CORDERO, El delito de blanqueo de capitales, 3ª ed. Cap.VII, 3.3

[5] BLANCO CORDERO, El delito de blanqueo de capitales, 3ª ed. Cap.VII, 3.3

[6] El delito de blanqueo de capitales, Cap.VII, 3.2

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

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