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Por Pierpaolo Cruz Bottini

Uma decisão polêmica do STJ sacudiu o mundo jurídico, gerando reações intensas da comunidade política, de movimentos sociais e mesmo de setores da mídia.

Nela, a 3ª Seção do STJ se deparou com o caso de um homem que teve relações sexuais com três meninas de 12 anos. A discussão girou em torno da possibilidade de caracterizar esse comportamento como estupro. A acusação apontou que o texto do Código Penal vigente à época – hoje alterado – presumia a violência do homem que tivesse relações sexuais com mulheres menores de (ou com até) 14 anos (art.224, a). Logo, a constatação da idade e do fato de haver relação seria suficiente para a caracterização do estupro.

A defesa indicou que esta presunção de violência do Código Penal era relativa e admitia prova em contrário. Destacou que – no caso concreto – teria havido concordância das vitimas para o ato sexual, razão pela qual não se tratou de estupro.

O STJ acolheu a tese da defesa. E o mundo veio abaixo com criticas candentes – na seara nacional e internacional – acusando a Corte de favorecer a prostituição infantil e a impunidade da pedofilia.

No entanto, uma leitura menos apressada dos termos da decisão, desprovida dos anseios de calamidade que envolvem interpretações açodadas, mostra uma lógica, uma racionalidade jurídica, com a qual se pode concordar ou discordar, mas de forma alguma adjetivar da forma pejorativa como fizeram alguns. Como sublinhado, a discussão gira em torno do conceito de estupro. E estupro é um crime contra a liberdade sexual, pelo qual o agente constrange, mediante violência ou grave ameaça, sua vitima para a prática do ato sexual. Logo, a ideia de força, de coação, é a essência do ato de estuprar.

O legislador de 1940 entendeu por bem destacar que nos casos em que um homem tem relação sexual com meninas de até 14 anos, a violência do ato, o constrangimento, seria presumido. Ou seja, não era necessário demonstrar a coação real – bastava revelar a existência do ato e a idade da vitima, para caracterizar o crime.

O problema todo surge nos casos em que se verifica de forma patente o consentimento da jovem participante do ato sexual. São situações nas quais há duvida sobre a voluntariedade, onde a própria mulher revela sua vontade de realizar o ato. Ainda aqui a violência se presume? Ainda aqui haverá o elemento constrangimento que caracteriza o estupro?

Em suma, a questão em debate não é a prostituição infantil, mas o caráter da presunção do antigo art.224 do Código Penal: relativa ou absoluta, iuris tantum ou iuris et de iure, admite prova em contrário ou não admite?

No caso em discussão, ainda que o ato seja reprovável e mereça a atenção do direito penal, vez que prejudica o desenvolvimento saudável da criança e traz inúmeros problemas psicológicos e sociais, seu desvalor não está na violência, na coação, vez que o ato foi praticado com consentimento da vitima. Não parece lógico presumir a violência onde ela evidentemente não existe. Em suma, se trata de ato reprovável, mas não do crime de estupro, vez que houve concordância das supostas vitimas.

Pode-se dizer que menores de 14 anos não tem formação intelectual suficiente para compreender o ato, que seu discernimento é viciado e que, portanto, o consentimento não é válido. Isso é verdade. Embora as vítimas contassem com 12 anos e não fossem mais crianças do ponto de vista da legislação brasileira, eram meninas recém entradas na adolescência e não tinham completa consciência do sentido de muitos de seus atos. Mas também é verdade que possuíam alguma ideia do significado do ato sexual e de seu contexto. Em suma, ainda que não apresentassem desenvolvimento mental completo, sua concordância com a relação não é absolutamente desprovida de valor. Ainda que não confira licitude ao ato, afasta a presunção de coação, do constrangimento ou violência integradora do tipo penal do estupro.

A critica, portanto, deve ser dirigida ao tipo penal, que mencionava a violência ou a ameaça, ainda que presumida. Se a ideia é proteger a criança e o adolescente do ato sexual prematuro, faz sentido a vedação de qualquer relação, independente de constrangimento ou não (como faz o tipo penal atual). Mas o legislador da época inseriu o elemento violência – ainda que presumida – na redação do tipo penal, e o principio da legalidade não autoriza o magistrado a afastá-lo, por mais bem intencionado que seja.

Alguns se levantaram contra a decisão caracterizando-a de discriminatória, porque afastou a incidência da norma penal pelo fato das vitimas se prostituírem. Mas tais críticos não leram ou não entenderam o acórdão. Em momento algum se usou da vida pregressa da vitima, do fato dela praticar atos sexuais mediante paga, ou de qualquer outro aspecto similar, para afastar a reprovação do comportamento do réu. O Tribunal apenas asseverou que o consentimento afasta o estupro, não importando a opção de vida da vitima, ou sua qualificação.

Mais uma vez: não se discutiu a prostituição infantil ou a pedofilia. A celeuma se limitou ao fato de haver ou não violência. À questão de ser a presunção prevista no Código Penal relativa ou absoluta. E foi sobre isso – apenas isso – que a Terceira Seção do STJ decidiu. E não o fez de forma inédita, vez que o STF também já admitiu (embora tal posição seja minoritária) a presunção relativa da violência em crimes de estupro (STF, HC 73.662, Rel. Min. Marco Aurelio, j.21.05.96).

Ainda que a decisão encontre resistências e criticas do ponto de vista jurídico, é fora de qualquer cabimento qualificá-la de incentivo à pedofilia. Não será esta decisão do STJ que aumentará ou inibirá a prostituição infantil, até porque a lei que embasou a decisão ora comentada já foi alterada, e pelo texto atual a prática de qualquer relação sexual com jovens até 14 anos é crime, independentemente de violência ou não. Em outras palavras, a questão jurídica debatida pelo STJ se limita a fatos anteriores a 07 de agosto de 2009, vez que após esta data a coação para o ato sexual – presumida ou não – é desnecessária para a materialidade do tipo penal.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2012, 7h00

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