Skip to main content

O Brasil tem dado passos largos para a estruturação de um marco legal e administrativo adequado para a repressão ao cartel. A nova lei do sistema brasileiro de defesa da concorrência (nº 12.529, de 2011) aprimorou a inibição de tais práticas, e ofereceu diversos instrumentos para que o poder público tenha sucesso na empreitada. No entanto, alterações recentes no regimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de março deste ano, trouxeram alguma perplexidade para operadores de direito, e merecem reflexão.

As autoridades competentes para combater o cartel no Brasil têm à sua disposição uma série de instrumentos para a descoberta do ilícito e seus mentores. Desses, destacam-se dois: a leniência e o compromisso de cessação de prática, ambos previstos na Lei nº 12.529/11. São mecanismos que oferecem aos participantes de cartéis a oportunidade de colaboração com os órgãos públicos para desmantelar a organização, em troca de benefícios ou da extinção da punição. Além de facilitar a investigação e a identificação de provas, tais institutos enfraquecem os laços de confiança que sustentam o cartel, uma vez que estimulam a delação.

Pela leniência, o autor do cartel que coopera efetivamente com as investigações tem por prêmio a extinção/redução da pena administrativa e evita processo ou condenação criminal. Para isso, é necessário que o colaborador seja o primeiro a se apresentar às autoridades (no caso de pessoas jurídicas) e confesse sua participação nos atos ilícitos.
Poucas empresas ou pessoas aceitarão confessar a prática de um crime em troca apenas de imunidade administrativa
Já no compromisso de cessação de prática de cartel, o representado compromete-se a cessar a atividade lesiva e a pagar contribuição pecuniária ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, em troca do arquivamento do processo administrativo no Cade, caso cumpridas as condições fixadas. Não há exigência prevista em lei de confissão de ilícito, nem de colaboração com investigações, mas também não há menção a qualquer benefício penal. Ou seja, a celebração do compromisso não impede o processo pelo crime de cartel contra aquele que o assinou.

Conceituados os institutos, passemos à polêmica: a regulamentação pelo Cade dos contornos do compromisso de cessação de prática de cartel. Em primeiro lugar, o Regimento Interno do órgão prevê que o compromissário deverá, além de cessar a conduta e pagar o valor pecuniário, colaborar com as apurações no processo administrativo. Ou seja, impõe uma obrigação não prevista expressamente em lei, aproximando o instituto da leniência. Em segundo lugar, o mesmo documento determina que o signatário deve reconhecer a participação na conduta investigada, exigindo, portanto, uma confissão não imposta pela norma.

Com isso, fica o possível compromissário em um dilema jurídico de difícil solução. De um lado lhe é oferecida a oportunidade de cessar a prática de cartel em troca do arquivamento do processo administrativo. De outro, impõe-se a confissão da participação no crime sem a garantia da extinção da ação penal. Ou seja, o signatário do termo fica protegido das sanções administrativas, mas é muito provável que seja processado criminalmente e que tenha contra
si suas próprias declarações prestadas ao Cade, onde reconheceu o comportamento delitivo.

Ainda que o signatário do compromisso seja uma pessoa jurídica – contra a qual não caberá ação penal -, a confissão cria o risco de um processo criminal para as pessoas físicas que a integram, com elementos fortes para a acusação, uma vez que a própria instituição reconheceu a prática do delito em seu seio. Em suma, a assinatura do termo de compromisso equivale a uma nota de culpa confessa, que será usada para instruir uma ação penal contra o próprio signatário ou seus integrantes.

Resultado: a possível inibição da assinatura de termos de compromisso. Poucas empresas ou pessoas aceitarão com tranquilidade confessar a prática de um crime em troca da imunidade administrativa, sem que a ameaça de um processo penal fique afastada. Mas, mesmo que tal situação não ocorra, mesmo que aumente o numero de compromissos, restará a iniquidade de exigir-se uma confissão e uma colaboração não previstas em lei.

Pode-se até compreender a intenção de reduzir os benefícios do termo de compromisso, com o objetivo de direcionar os participantes de cartéis para a leniência, uma vez que ela é mais efetiva do ponto de vista da investigação. Mas parece que tal finalidade não pode ser obtida com a torção dos parâmetros legais, exigindo-se – quando a lei não prevê – que o investigado produza prova contra si mesmo para posterior uso em ação criminal.

Por isso, ou bem se altera o regimento do Cade para afastar a exigência supralegal da confissão no compromisso de cessação, ou bem se modifica a Lei nº 12.529/11, garantindo-se ao compromissário a mesma extinção de punibilidade penal prevista para a leniência (ou ao menos uma redução significativa de pena). Do contrário, o acordo de cessação de conduta, que pode ser um mecanismo importante no combate ao cartel, será relegado à condição de um instrumento periférico do sistema de defesa da concorrência.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor doutor de direito penal da USP

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

STJ anula provas solicitadas ao Coaf sem autorização judicial

Com a anulação, continuidade das ações será avaliada pelos juízos de 1ª instância. 6ª turma […]

LEIA MAIS

STJ anula provas solicitadas pela PF ao Coaf sem autorização judicial

Decisão determinou o desentranhamento de provas derivadas de solicitação irregular A 6ª turma do STJ […]

LEIA MAIS

STJ anula prisão por tráfico após analisar câmeras corporais da PM e identificar confissão sob tortura; veja vídeo

A análise das câmeras corporais de dois policiais militares de São Paulo levou o Superior […]

LEIA MAIS

Juiz arquiva inquérito contra Serra, Marta e Mercadante por caixa 2

Decisão eleitoral considera delação de Adir Assad como insuficiente para sustentar as acusações. O juiz […]

LEIA MAIS

Livro que homenageia ex-ministro Márcio Thomaz Bastos é lançado em SP

O livro “O Ministro que Mudou a Justiça: Márcio Thomaz Bastos”, com prefácio do presidente […]

LEIA MAIS

Indiciamentos de Bolsonaro e aliados serão remetidos à PGR; advogado criminalista analisa

Em entrevista ao Grupo Jovem Pan, o advogado criminalista Pierpaolo Cruz Bottini, professor de direito […]

LEIA MAIS

Bolsonaro indiciado na trama do golpe

O podcast Café da Manhã da Folha de S.Paulo desta sexta-feira (22) discute o que […]

LEIA MAIS

TRF-3 mantém nulidade de interceptação em caso de venda de vagas de Medicina

Colegiado reiterou que a interceptação telefônica é recurso excepcional, exigindo embasamento sólido e indispensabilidade. O […]

LEIA MAIS

Criminalista vê colaboração de Bolsonaro em plano de golpe

Para o advogado Pierpaolo Bottini, professor de Direito Penal da USP, há, ainda, indícios consistentes […]

LEIA MAIS

Condenação de jornalista expõe ‘zona cinzenta’ da liberdade de expressão, na mira do STF

Julgamento na corte sobre tema trata de limites frente a outros direitos; para especialistas, falta […]

LEIA MAIS

OAB precisa colocar limites no uso da IA, alerta advogado Igor Sant’Anna Tamasauskas

Legisladores, especialistas e representantes do setor jurídico discutiram os impactos da inteligência artificial em um […]

LEIA MAIS

USP debate exclusão social no Direito Penal em nova disciplina

A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) oferecerá, a partir do ano que vem, […]

LEIA MAIS

‘O Brasil já se encontra num estágio de máfia, ‘alerta secretário de Segurança sobre avanço de facções

Em entrevista ao Estadão, Mario Luiz Sarrubbo revela preocupação das forças policiais e do governo […]

LEIA MAIS

Lançamento do livro “Constituição, Democracia e Diálogo – 15 Anos de Jurisdição Constitucional do Ministro Dias Toffoli”

O evento de lançamento do livro “Constituição, Democracia e Diálogo — 15 Anos de Jurisdição […]

LEIA MAIS

Fórum Internacional Roma | 150 anos da imigração italiana no Brasil 

Pierpaolo Cruz Bottini, advogado criminalista e professor de Direito Penal da USP, participou nesta sexta-feira […]

LEIA MAIS
Caregorias
back