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Consultor Jurídico – 6 de maio de 2019

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Na alvorada da República — em 1896 —, um juiz da comarca de Rio Grande incomodou-se com uma lei sobre o Tribunal do Júri promulgada pelo então poderoso presidente do estado, Júlio de Castilhos. A norma reduzia o número dos membros do conselho de sentença, abolia o segredo do voto e proibia a recusa peremptória. Sob a ótica do o magistrado, isso feria a Constituição Federal, de forma que a declarou inconstitucional. Por tal ousadia, foi condenado por prevaricação e posteriormente por excesso e abuso de autoridade, afinal, tinha excedido as funções próprias de seu cargo.

Mais de um século depois, em julho de 2018, um desembargador do TRF da 4ª Região deferiu uma liminar em Habeas Corpus para soltar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão foi revogada horas depois, mas a PGR requereu ao STF a abertura de inquérito policial pelo mesmo crime de prevaricação, diante da fundamentação artificial da decisão judicial.

Em fevereiro deste ano, quatro ministros do STF deram procedência a uma ação direta de constitucionalidade para entender que o crime de injúria racial se estende para casos de homofobia, conferindo uma interpretação ampla — e polêmica — ao tipo penal. Foram objeto de pedido de impeachment perante o Senado Federal por crime de responsabilidade por agir de forma incompatível com a dignidade e o decoro do cargo.

Por fim, também no início de 2019 foi requerida a instalação da “CPI da Lava Toga”, que pretendia investigar magistrados por diversas perspectivas, dentre elas pelo “exacerbado ativismo judicial e por decisões desarrazoadas, desproporcionais e desconexas dos anseios da sociedade”.

Tempos passam, séculos passam, mas a ideia de criminalizar a hermenêutica,de punir juízes pelo conteúdo de suas decisões é sempre uma semente enterrada em algum canto do jardim, prestes a florescer quando devidamente adubada.

A velha máxima de que decisão judicial não se discute deixou de impressionar há tempos. Sentenças são por natureza atos criticáveis, a começar pela parte que perdeu a causa. Por mais conformada e respeitosa que seja, sempre resmungará acerca da competência, conhecimento ou imparcialidade do magistrado. Além das partes, acadêmicos, jornalistas, a sociedade civil organizada e colegas de toga têm por costume tecer comentários pouco elogiosos a manifestações judiciais das quais discordam. A própria previsão legal de recursos é um reconhecimento estrutural da falibilidade da interpretação judicial, que a submete a duas, três ou quatro revisões posteriores.

É saudável a discordância e é importante que qualquer ato de Estado — mesmo decisões judiciais — seja objeto de debate e reflexão, ou mesmo acidamente criticado, em privado ou público. Trata-se do fundamento último da democracia e da liberdade de expressão.

Mas entre a crítica e a punição do magistrado pelo conteúdo de suas sentenças há um abismo. Inibir a liberdade de decidir com ameaça de sanção é ferir profundamente um dos pilares da estabilidade democrática: a independência e a imparcialidade do juiz.

A prerrogativa do juiz de julgar sem vinculação com esta ou aquela interpretação precedente, ou de acordo com a jurisprudência dominante, é a garantia de que o magistrado não fará de sua atuação uma repetição servil de postulados comodamente fixados pela tradição.

A forma, o método e os elementos normativos que orientam a interpretação das leis são dinâmicos, assim como o é a sociedade e seus valores. O texto legal admite inúmeros sentidos, de acordo com interesses, sentimentos e ideários de Justiça.

Engessar a interpretação, exigir a repetição automática de entendimentos anteriores é fazer pouco caso das peculiaridades de cada caso e de cada momento histórico. É relegar ao ocaso as forças que fazem evoluir a jurisprudência, o pensamento, as formulações jurídicas.

Tentar punir juízes por interpretar leis em sentido diferente daquele que conforta o ideário dominante — ou que se julga dominante — é característica de um pensamento autoritário, que busca impor dogmas e inibir discursos diversos.

Como afirmava Rui Barbosa, ao defender o citado juiz da comarca de Rio Grande: “as opiniões dos juízes, quando errôneas, no uso dessa atribuição, tem a sua emenda, não na responsabilidade penal dos magistrados, mas na reforma das sentenças”[1].

Cem anos depois, Luís Roberto Barroso, ao arquivar o inquérito contra o também citado desembargador do TRF-4: “o ordenamento jurídico brasileiro, ao estabelecer os princípios da independência e da livre convicção motivada, o que faz em beneficio dos jurisdicionados, não admite a glosa ou a impugnação de decisões judiciais que não seja pela via judicial, sob pena da nefasta criminalização da hermenêutica”[2].

A liberdade do juiz não implica insegurança jurídica ou anarquia. Haverá sempre o texto legal, cujos limites não podem ser ultrapassados. Haverá sempre mecanismos de uniformização de jurisprudência que impedirão a perpetuação de interpretações distintas em casos similares. Mas restará mantida a liberdade do juiz, sua capacidade de formular novas respostas, de superar entendimentos ultrapassados e de propor soluções distintas, que entenda mais justas e adequadas.

A garantia da independência não é privilégio do magistrado ou de sua categoria, mas uma prerrogativa da sociedade, que almeja ver seus conflitos decididos por terceiro independente, amarrado apenas à legalidade e à ideia de Justiça.

Rui Barbosa, no final do século XIX, mencionava julgado inglês que afirmava sobre a independência judicial: “não é em proteção e benefício dos juízes dolosos e corrompidos que se estabeleceu esta norma jurídica: é em proveito do público, interessado em que os juízes se sintam em liberdade de exercer as suas funções com desassombro e sem receio das consequências”[3].

Mais de cem anos depois, Dalmo Dallari apontou que, mais do que o juiz individual, “é a sociedade quem precisa dessa independência, o que, em última análise, faz o próprio magistrado incluir-se entre os que devem zelar pela existência da magistratura independente”[4].

No caso do juiz do Rio Grande, o STF restabeleceu a legalidade e afastou a punição pretendida. O mesmo ocorreu no caso do desembargador do TRF-4, cem anos depois. Que o bom senso prevaleça e que pretensões de cerceamento de hermenêutica continuem limitadas aos livros de história.

[1] Barbosa, Rui. Novum Crimen: O Crime de Hermenêutica. In: Obras Completa de Rui Barbosa, VOL. XXIII – 1896. Tomo III. Posse de Direitos Pessoais. O Júri e a Independência da Magistratura; Ministério da Educação e Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa; Rio de Janeiro, 1976, p. 227-306.

[2] Inquérito 4.744.

[3] Barbosa, Rui. Novum Crimen: O Crime de Hermenêutica. In: Obras Completa de Rui Barbosa, VOL. XXIII – 1896. Tomo III. Posse de Direitos Pessoais. O Júri e a Independência da Magistratura; Ministério da Educação e Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa; Rio de Janeiro, 1976, p. 227-306.

[4] “O Poder dos Juízes”, Ed. Saraiva 2ª edição. 2002, p. 48-49.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

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