Proposta de punição por desordem cria situações de arbítrio
A comoção decorrente da morte de um cinegrafista por um ato inadmissível de jovens manifestantes é justa e compreensível. O homicídio, seja de quem for, e em que circunstâncias ocorrer, é repugnante e merece punição.
Nesse contexto, entrou em discussão, no Senado Federal, uma proposta de criminalização da desordem, que pune aquele que “praticar ato que possa causar a desordem em lugar público ou acessível ao público”. Para isso, o ato deverá ser acompanhado de “violência física ou grave ameaça, dano, invasão, obstrução de vias públicas”, sempre a pretexto de “protestar ou manifestar desaprovação ou descontentamento” em relação a algo que não concorde.
Por mais lamentável que seja o fato que desencadeou o debate, não parece que o projeto seja adequado. Por isso, com todo o respeito merecido aos redatores do projeto, algumas considerações são importantes.
Imprecisão
O crime em questão se caracteriza pelo ato que “cause ou possa causar a desordem”, sempre que acompanhado de algum ato ilícito descrito na própria lei. O agente será punido pelo ato ilícito (homicídio, lesão corporal, entre outros) e pela desordem em si.
Porém, o conceito de desordem é vago, impreciso, e pode ser preenchido por qualquer matiz ideológico. Como diria o professor Goffredo da Silva Telles, “a desordem é a ordem que não nos agrada”, ou seja, tudo pode ser desordem. Vale lembrar que recentemente caracterizou-se o fenômeno do rolezinho como desordem, mesmo nos casos em que os adolescentes deixaram de praticar qualquer ato de dano ou agressão.
Os defensores do projeto dirão que apenas a desordem acompanhada de outros crimes será punida. Em primeiro lugar, isso não é verdade, porque o projeto prevê que a desordem acompanhada de obstrução de vias públicas será punida, e tal obstrução não é considerada crime pela legislação em vigor (mas mero ilícito administrativo).
Em segundo lugar, estes crimes continuam sendo punidos autonomamente, de forma que a punição prevista é para a desordem, e não para os crimes que a acompanham. Assim, se o agente danificar algo, responderá com a pena de 1 a 6 meses pelo dano. Se este dano estiver acompanhado da desordem — seja lá o que isso for — além da pena por este crime, serão acrescidos 2 a 6 anos de prisão. Não parece adequado atrelar um aumento dessa monta a um termo impreciso e vazio como a desordem.
Desproporcional
O projeto prevê um mesmo espaço de penas — 2 a 6 anos — para atos absolutamente distintos. Não é possível estabelecer a mesma pena mínima, por exemplo, para aquele que cause tumulto por violência à pessoa e para aquele que o faça por meio de obstrução de vias públicas.
Para usar o termo central da lei, são desordens distintas, diferentes, que não merecem o mesmo tratamento. Uma coisa é afetar a tranquilidade — por mais abjeta que tal expressão pareça — pela ameaça de agressão aos transeuntes, outra é a invasão de pista automotiva com o mesmo fim. Por mais desagradável que seja a última forma de manifestação, ela é substancialmente distinta da primeira.
Problema no elemento subjetivo especial
O final da descrição do ato típico fixa que o agente deve praticar o ato “a qualquer título ou pretexto ou com o intuito de protestar o manifestar desaprovação” a algo. Ora, se o comportamento é punível se praticado a qualquer título, não seria necessário indicar — alternativamente — que ele será punido quando tiver o intuito de manifestar desaprovação. Este trecho da redação revela um inconformismo mal disfarçado com aquele que protesta contra algo, como se a prática dos crimes elencados para manifestar contentamento ou acordo fosse menos reprovável.
Qualificadora
Penas significativamente maiores serão aplicadas se os atos são cometidos “por ocasião de reuniões ou manifestações públicas”. Isso significa que o crime — na forma básica — pode ser cometido fora de reuniões ou manifestações públicas.
Assim, se alguém ameaçar gravemente outro devido a uma desavença no trânsito — logo, em via pública — causando tumulto na circulação ao parar seu veículo estará em uma situação que a) causa desordem em local púbico; b) usa de grave ameaça; c) a qualquer título (a razão aqui será uma discussão de trânsito). Em suma, estará sujeito a uma pena de 2 a 6 anos, além da pena de ameaça, mesmo que seu ato não ocorra durante uma manifestação pública.
Em suma, todos os crimes de homicídio, lesão corporal, ameaça, esbulho possessório ou dano, praticados em locais públicos ou abertos ao publico, além da pena em si, estarão em concurso com o delito de desordem, porque todos podem causar desordem — uma vez que ocorrem a céu aberto, diante de outras pessoas.
Direito comparado
O projeto faz menção à legislação espanhola. Realmente, o artigo 557 do Código Penal espanhol tem redação similar à proposta, mas duas considerações são necessárias:
a) A atual redação deste crime no Código Penal espanhol é repetição daquela prevista na lei de 1973, ou seja, reflete um momento de ditadura franquista, modelo refratário a qualquer manifestação popular;
b) O crime previsto no Código espanhol tem a pena de 6 meses a 3 anos, bem distinta dos 2 a 6 anos pretendidas pelo projeto brasileiro
Estas são as primeiras impressões sobre o projeto em questão, sem prejuízo de outras reflexões posteriores.
É louvável a busca de instrumentos legais para punir aquele que usa de aglomerado de pessoas para a prática de crimes, uma vez que nestas situações é mais fácil a ocultação, e as consequências do ato são maiores. Mas isso pode ser enfrentado de duas formas:
a) Pelo juiz, no momento de fixar a pena concreta. O artigo59 do Código Penal pode aumentar a pena pelas circunstancias do crime, e o fato de cometer o delito em meio à multidão é circunstância que merece reprimenda maior. Não é preciso alterar a pena para isso.
b) Pelo legislador. É possível a criação de uma agravante ou causa de aumento nos casos de cometimento de determinados crimes (homicídio, lesão corporal, dano) em meio à multidão, uma vez que existe uma periculosidade objetiva maior do comportamento.
Em outras palavras, é possível buscar instrumentos de politica criminal para enfrentar a situação, sem o uso de dispositivos que, a titulo de punir determinados comportamentos, acabem por criar situações de arbítrio ou de desproporcionalidade.
Fonte: Consultor Jurídico – SP – (14/02/2014)