Ostracismo não pode ser encarado como pena
É possível impor ao preso o ostracismo, vedando-lhe o direito de se manifestar ao público? Essa questão não é inédita no Brasil, mas ganhou novas cores na execução das penas impostas na Ação Penal 470, pois houve imposição — a alguns réus — de não manifestar opiniões ou expressões pessoais à mídia em geral, por meio de entrevistas e coletivas.
Em recente artigo na Folha de S.Paulo, a jornalista Monica Bergamo destacou inexistir vedação legal à livre manifestação de qualquer preso, apontando inclusive que reclusos perigosos, como o Marcola, podem expor suas histórias, garantindo inclusive o direito dos demais cidadãos de conhecer seus relatos e versões de fatos.
Posicionar-se aqui exige uma análise legal.
A Lei de Execução Penal é bastante clara ao dispor que o condenado preserva todos os direitos não afetados pela sentença ou pela lei (artigo 3º). Essa constatação óbvia impede que o juiz ou o diretor da unidade prisional imponham restrições diferentes daquelas estabelecidas na condenação, ou inerentes à pena aplicada.
Assim, o condenado à prisão perde, evidentemente, o direito à liberdade de locomoção. A lei prevê, ainda, outros efeitos da sentença, como a perda do produto do delito (CP, art.91) e a suspensão de direitos políticos (CP, art.15, III). Ademais, faculta ao juiz a imposição de outras consequências, desde que fundamentadas, como a perda de cargo público ou do pátrio poder.
Todas estas restrições são legitimas, porque previstas em lei formal. E apenas estas, porque em nosso sistema constitucional as penas decorrem da previsão legal (CF, artigo 5º, XXXIX). Previsão salutar, pois a criatividade humana é fator de considerável risco na seara penal.
Feitas tais considerações, voltemos ao ostracismo. Será possível impedir que o condenado preso se comunique com o mundo exterior?
Evidente que as tratativas com advogados e os encontros familiares são admitidos, em respeito ao direito de defesa e às finalidades preventivo-especiais da pena. Mas não é disso que se trata. A polêmica é sobre a possibilidade de outras comunicações, com o publico em geral, através de manifestações, criticas ou exposição de ideias.
A Lei de Execução Penal estabelece — como já destacado — que apenas a sentença ou a lei restringem direitos do condenado. Pois bem. A comunicação por meio de correspondência escrita é expressamente autorizada pela Lei de Execução Penal (artigo 41, XV). Ora, se nada impede que o preso envie carta a jornais para publicação, não há senso impedir que escreva em blog ou conceda entrevistas.
É bem verdade que o direito à comunicação escrita pode ser suspenso ou restrito pelo diretor do presidio (LEP, artigo 41, paragrafo único). Mas tal decisão — como qualquer ato administrativo — deve ser motivada por indícios concretos de que o preso usa de suas missivas para fins ilícitos, seja para ordenar/incitar delitos, seja para fazer apologia ao crime.
Nesses casos, a correspondência pode até mesmo ser interceptada, como já apontou o STF (HC 70.814, realtor ministro Celso de Mello). Mas, como bem destacou o voto condutor do acórdão, desde que existam “razões de segurança pública, de disciplina penitenciária ou de preservação da ordem jurídica”. Ou seja, não é legitima a restrição de direito sem um motivo concreto, sem um indício que aponte o abuso.
Há quem diga que a comunicação do preso não é ilimitada, uma vez que a própria Lei de Execução Penal veda o uso de aparelho telefônico, de rádio ou similar (LEP, artigo 50 VII). Mas tal proibição recai justamente sobre meios de comunicação instantânea, que se caracterizam pela impossibilidade de obstrução quando existe a suspeita de abuso.
Ademais, se a vedação é explicitada como exceção, a regra será a garantia do direito de expressão. Se o telefone, rádio e similares — entendidos como comunicação falada — são expressamente proibidos, as demais formas de manifestação são admitidas.
Assim, a restrição da comunicação escrita do preso, sem um fundamento concreto, é arbítrio, é limitação de direito sem motivação adequada.
Toda a polêmica em torno do assunto, aliás, causa estranheza, em um país onde a regra é a exposição absoluta do réu e das acusações, mesmo quando este suplica pela preservação de sua intimidade. Suspeitos são submetidos — muitas vezes à força — a câmeras de programas televisivos, tem suas vidas expostas em detalhes nos noticiários, e seu caso dissecado nas transmissões ao vivo dos julgamentos. Porém, se querem falar, expor sua versão, contrapor-se aos fatos, surge sofisticada polêmica jurídica acerca dos limites à sua liberdade de expressão.
Por piores que sejam os crimes cometidos, não se deve ir além da lei, impondo aos condenados uma proibição inexistente. “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro”, disse um filósofo alemão. Conceder ao preso o uso da palavra, mesmo para criticar a decisão que o condenou, é ínsito à democracia, e a tolerância a tal ato diz muito a respeito do grau de civilidade de um povo.
Revista Consultor Jurídico, 11 de fevereiro de 2014