Justiça que não tarda
Márcio Thomaz Bastos e Pierpaolo Cruz Bottini
Folha 29/08/2008 Tendências e Debates
Com a entrada em vigor, na última semana, da lei 11.719/08, completou-se o segundo ciclo de reformas do sistema judicial brasileiro. O primeiro deu-se com a aprovação da emenda constitucional 45, em 2004, criadora do Conselho Nacional de Justiça e da súmula vinculante, entre outras novidades, que em muito contribuíram para a racionalização da administração da Justiça e a redução do número de processos no STF (Supremo Tribunal Federal).
O segundo ciclo tratou da reforma processual, iniciado em dezembro de 2004, quando os presidentes dos três Poderes da República firmaram o Pacto por um Judiciário mais Rápido e Republicano, que previa a necessidade de conferir maior celeridade aos julgamentos. Foram apresentados ao Congresso Nacional 24 projetos de lei para superar os gargalos burocráticos dos processos civis, penais e trabalhistas -desses projetos, 18 foram aprovados e transformados em lei. As novidades que essas novas normas trazem para o processo penal são oportunas e relevantes. Havia tempos que a sociedade clamava, com razão, por um processo mais célere, mais efetivo, que evitasse a prescrição dos crimes cometidos. A eternização dos procedimentos trazia consigo a sensação de impunidade e de falência das instituições judiciais, que falhavam em responder de forma ágil aos conflitos apresentados. Fruto de estudos levados a cabo por uma comissão de juristas presididos pela professora Ada Pellegrini, as novas leis processuais penais buscaram solucionar problemas práticos observados no dia-a-dia da prática judicial, sem abrir mão da coerência e da racionalidade do sistema. Algumas inovações merecem destaque, como a unificação das audiências no processo penal. Antes, para ouvir as partes e as testemunhas de um delito, o juiz deveria marcar, no mínimo, três audiências distintas: uma para o interrogatório do réu, outra para as testemunhas de acusação e outra para as de defesa, com intervalo de meses entre elas. Agora, tudo será feito no mesmo momento. Serão ouvidas todas as partes e as testemunhas no mesmo dia e, ao final, o juiz proferirá oralmente a sentença, encerrando essa etapa processual. Outra novidade a ser destacada é a extinção do protesto por novo júri, instituto que garantia ao réu o direito automático de realização de um novo julgamento pelo Tribunal do Júri sempre que sua condenação excedesse a 20 anos de prisão. Com a supressão desse recurso, evita-se a duplicidade injustificável de julgamentos pelo mesmo fato, responsável pela longa duração desses processos. Inúmeras outras alterações importantes poderiam ser apontadas, como a possibilidade de instituir meios eletrônicos para a prática de atos processuais, que substituirá em breve a burocracia dos papéis e carimbos, e a citação por hora certa, medida para evitar que a ocultação proposital do acusado atrase o andamento do processo. Mas, ao lado dos esforços para acelerar os julgamentos, é importante destacar que as novas leis também buscaram consolidar um sistema de garantias processuais que amplia o direito a defesa e garante respeito à figura do acusado. Nesse sentido, consagrou-se o direito do réu ao silêncio e ao não-comparecimento às sessões de julgamento, vedou-se expressamente a produção de provas ilícitas ou derivadas de ilícitas e possibilitou-se a participação da defesa na produção de provas periciais, dentre outras importantes inovações. É evidente que nenhuma dessas leis é perfeita e imune a críticas. A atividade legislativa, como qualquer atividade humana, está sujeita a falhas. O ato de legislar é um ato de desconstruir antigas normas e substituí-las por novos mandamentos, conectando-os a outros dispositivos preexistentes que nem sempre guardam harmonia entre si. Sempre haverá, portanto, pontos passíveis de ajuste em qualquer nova lei, e sua aplicação estará sempre a necessitar da prudente interpretação do Judiciário para adequá-la às surpresas do caso concreto, não antevistas pelo legislador. No entanto, é importante destacar que, com o fecho
desse ciclo de reformas processuais, o sistema judicial conta com instrumentos mais aptos para o enfrentamento da morosidade, o que, na área penal, significa maior capacidade para fazer frente ao delito e, ao mesmo tempo, maior respeito ao cidadão que está no banco dos réus. Fica também evidente que, com prudência e serenidade, é possível oferecer à sociedade soluções adequadas e eficazes para o combate à criminalidade sem ceder à retórica simplista
do aumento do rigor penal, que muitas vezes pauta a política legislativa criminal brasileira.
MÁRCIO THOMAZ BASTOS, 73, é advogado criminalista. Foi ministro da Justiça (2003-2007), presidente da OAB nacional (1987-89) e da OAB-SP (1983-85).
PIERPAOLO CRUZ BOTTINI, 31, mestre e doutor em direito pela USP, é advogado. Foi secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.