Judiciário e mercado de crédito: mitos e verdades
Muito se fala e pouco se estuda sobre a relação entre o funcionamento do sistema judicial brasileiro e o desenvolvimento da economia nacional. É quase lugar-comum ouvir que o desempenho do Poder Judiciário e a qualidade de suas decisões têm grande impacto para o grau de investimento, para a taxa de juros e para o mercado de crédito, mas existem poucos textos ou artigos que se propõem a analisar, com base em dados e informações mais precisas, a existência dessa relação e sua extensão real. Nesse contexto, é natural a proliferação
de idéias mistificadas sobre o tema que guardam muito mais impressões pontuais e preconceitos do que conhecimento de fato.
A discussão sobre os reflexos do comportamento do sistema judicial para o crescimento da nação é relevante
e imprescindível. No entanto, deve ser feita com bases mais sólidas e desprovida dos vícios corporativistas ou de idéias preconcebidas sobre o assunto. O diálogo entre economistas e juristas deve ser pautado por elementos mais concretos, que explicitem os verdadeiros problemas que a questão apresenta e permitam seu enfrentamento de maneira mais efetiva e estratégica.
Acreditamos ser possível verificar a relação direta entre o funcionamento da Justiça e o mercado de crédito por meio de uma análise do comportamento dos juros e do spread bancário nos contratos de empréstimo.
O Poder Judiciário é a instituição responsável pela solução da maior parte dos litígios decorrentes dos contratos
de créditos, ainda que não seja a única, logo, sua funcionalidade determinará os riscos da inadimplência e, portanto, influenciará na fixação dos juros cobrados nos empréstimos.
No caso do Brasil, essa relação pode ser apontada por meio de dados interessantes. A recuperação do crédito, em caso de inadimplência, é bastante morosa, e essa morosidade acarreta na depreciação do valor disponibilizado, tornando pouco atraente a celebração de contratos de empréstimo com risco de inadimplência. O tempo
médio para a finalização de um processo judicial é de cerca de 20 meses na primeira instância, de 20 a 40
meses na segunda instância e de 20 a 40 meses nos tribunais superiores e no Supremo Tribunal Federal, sem contar a fase de execução, que exige mais um período de espera para garantir o cumprimento da decisão judicial transitada em julgado. A taxa de congestionamento da Justiça Estadual, responsável pela maior parte dos processos de recuperação de crédito, é de 80%, considerando-se os processos entrados e os processos em tramitação sobre as sentenças proferidas. Os índices de morosidade do Judiciário brasileiro são maiores do que as médias da América Latina e que de outros países emergentes.
Essa morosidade, como afirmado, reflete-se nos custos para a recuperação de crédito. Pesquisa do Banco Central com 93 instituições financeiras, responsáveis por 85% da oferta total de crédito no País, em 2001, apontou os custos estimados para o enfrentamento da inadimplência pelo Poder Judiciário. Para um crédito de R$ 50 mil, o valor esperado de recuperação em caso de inadimplência era de 83% para a cobrança extrajudicial simples, 43,8% para
a cobrança por meio de processo judicial que se encerrasse na fase de conhecimento, ou seja, que o devedor
pagasse no momento da decisão judicial que reconhecesse a dívida, e 24,1% para a cobrança por processo judicial que prosseguisse até a fase de execução, quando o devedor não paga no momento da sentença e é necessária a intervenção judicial para penhorar seus bens e expropriá-los.
Temos, então, um alto custo para a solução da inadimplência por meio do sistema judicial. Esse fato determinará
um alto risco na atividade creditícia, e é natural que, para os contratos em que a possibilidade de nãopagamento
for maior, haverá juros mais elevados.
Isso pode ser verifi cado na prática. Tomemos como base duas espécies de contratos de crédito para pessoas
físicas em que a participação do Poder Judiciário ocorre de maneira diferente – o empréstimo pessoal
comum e o empréstimo pessoal com crédito consignado – e verifiquemos o comportamento das taxas de juros
cobradas em cada um deles. Para isso, utilizaremos os dados do Relatório de Economia Bancária e Crédito do Banco Central do Brasil (2005).
Nos empréstimos pessoais comuns, o Judiciário tem uma participação muito maior em casos de inadimplência
do que no crédito consignado. Isso porque, em caso de não-pagamento, haverá, na grande maioria dos casos, a necessidade de acionar este Poder para solucionar a controvérsia e para executar o devedor. Isso implica
a demonstração judicial da validade e exigibilidade da dívida, por meio de um processo de conhecimento (exceto
nos casos de títulos executivos extrajudiciais), e a execução da sentença judicial, caso favorável, que pode envolver,
nos casos em que o devedor não cumpre a sentença, a penhora e a expropriação de bens por meio de um longo procedimento.
Já nos empréstimos com crédito consignado, a participação da atividade jurisdicional é quase nula. Nesses casos, a inadimplência é muito baixa e a necessidade de acionar o Judiciário para fazer valer o contrato e garantir a cobrança é quase inexistente, porque esta se faz diretamente na fonte de proventos do devedor, de maneira certa e estável. O “fator jurisdicional” incide apenas na hipótese de o devedor perder o seu vínculo com a instituição responsável pela folha de pagamento e, mesmo assim, é pequena, porque, em caso de demissão, permite-se ao credor o acesso a até 30% da indenização recebida pelo rompimento do contrato de trabalho.
Analisemos, agora, as taxas de juros cobradas nesses contratos de crédito. Em janeiro de 2004, no mês seguinte ao da entrada em vigor da Lei do Crédito Consignado, a taxa do crédito consignado era de 41,4% ao ano, enquanto a do crédito pessoal era de 79,1%. Atualmente, o valor cobrado nos empréstimos em consignação é de 33,5% ao ano, enquanto a taxa dos empréstimos pessoais é de 76,5% ao ano (dados de novembro de 2006, Bacen, 2006).
As únicas diferenças relevantes entre os contratos de empréstimo pessoal e aqueles com crédito consignado
são o grau de participação do fator jurisdicional em ambos e o valor das taxas de juros cobradas, já que as partes contratantes e os agentes de crédito são praticamente os mesmos. Assim, se todos os elementos que distinguem as duas modalidades são os mesmos, pode ser apontada uma relação direta entre a atividade jurisdicional e a fixação da taxa de juros.
Porém, não só o custo do crédito é afetado pelo “fator jurisdicional”, mas a própria disponibilidade desse
crédito. Mais uma vez, voltemos ao crédito consignado, para o qual a incidência da atividade jurisdicional é baixa, e verifiquemos o volume de negócios realizados depois de sua implementação.
Segundo relatório do Banco Central do Brasil (2006), a relação entre o volume total dos empréstimos e
o PIB subiu de 26,2% em 2003 para 33,7% em 2006, sendo que o percentual de fi nanciamentos referenciados
em recursos livres cresceu de 61,1% para 68,2% no mesmo período. O papel da criação da modalidade do crédito consignado nesse crescimento foi relevante, pois, segundo o mesmo Banco Central, desde a implementação dessa espécie de crédito (dezembro de 2003), o crédito para pessoas físicas aumentou em 82,3% (para este cálculo, o Banco Central considerou os dados dessazonalizados e defl acionados pelo IPCA).
Evidentemente que o crédito consignado não foi o único responsável pela expansão do volume de operações
no País, mas sua participação para tal deve ser reconhecida, ainda mais porque, em novembro de 2006, essa modalidade de crédito representou 53,1% dos empréstimos da carteira de crédito pessoal.
Essa pequena análise demonstra que existe uma relação entre a operatividade do Poder Judiciário e o mercado de crédito. No entanto, isso não pode levar a conclusões simplistas, pois o mesmo Judiciário não é culpado desse fenômeno, mas também um dos prejudicados. A dificuldade de solucionar os conflitos apresentados, que acarreta
a insegurança para contratação acima demonstrada, é uma angústia comum de todos os atores sociais, inclusive dos membros da magistratura, e a busca de alternativas deve ser realizada como um esforço conjunto, que passa pela construção de propostas de racionalização das demandas judiciais, que confiram celeridade e eficácia às decisões, oferecendo à sociedade um sistema seguro e viável para a solução de seus eventuais litígios.