Indagações sobre a responsabilidade penal da empresa pelo produto defeituoso
Autor: Pierpaolo Cruz Bottini
Professor-doutor de Direito penal da USP, advogado, coordenador regional do IBCCRIM e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
Inúmeros são os desafios que a realidade impõe à dogmática penal. As constantes e dinâmicas transformações nas relações sociais e nos meios de produção colocam em constante xeque os institutos penais, e exigem sempre novas reflexões sobre seu conteúdo e sua abrangência. Ilustram bem esta assertiva os casos de responsabilidade penal da empresa pelo produto defeituoso, que abarcam toda uma gama de problemas relacionados com a resposta penal cabível aos fabricantes e distribuidores de mercadorias defeituosas que causam lesões à saúde de seus consumidores.
A atualidade do tema chama a atenção(1). A massificação do consumo, o desenvolvimento e lançamento no mercado de milhares de novos produtos, a dificuldade da ciência em apontar todos os seus possíveis efeitos colaterais, e as constantes descobertas dos efeitos nocivos de insumos já em circulação, exigem uma reflexão sobre a forma de controlar os riscos envolvidos e sobre a adequada caracterização e distribuição da responsabilidade penal nestas situações. Qual a reação mais pertinente diante da constatação de danos à saúde em massa decorrentes da utilização de determinado produto? Quais os requisitos para fazer incidir o direito penal nessa situação? A dificuldade da dogmática tradicional para responder tais questões joga luz sobre suas fragilidades e torna o tema complexo, instigante e perturbador.
Tome-se como exemplo um fabricante do produto X, que o distribui sem respeitar todos os deveres de cuidado exigidos para a segurança dos consumidores, acreditando que aquelas regras não são necessárias, e que sua inobservância não afetará a saúde dos usuários. Imagine-se que realmente não haja constatação científica plena da utilidade das normas de cuidado impostas. Algum tempo depois, parte significativa dos consumidores do produto sofre danos à saúde, e há suspeitas (apenas suspeitas) ou indícios da existência de nexo causal entre a utilização deste e aquelas lesões. Como reagirá o Direito Penal diante desta situação? É possível fazer incidir a reação punitiva estatal pelos instrumentos dogmáticos tradicionais?
Em primeiro lugar, percebe-se, nestes casos, a dificuldade para caracterizar o nexo de causalidade. A responsabilidade penal é possível quando a conduta contribuiu de forma inequívoca com o resultado, ou com o aumento do risco do resultado. Ocorre que, na maior parte dos casos de responsabilidade pelo produto, a constatação científica da relação causal entre produto/dano é inviável. A ciência não dispõe, em geral, de instrumentos capazes de atestar, absolutamente, que o uso de um produto gerou este ou aquele dano. Ilustra esta afirmação o exemplo trágico da talidomida: apesar de ser de pleno conhecimento que o uso deste medicamento causou milhares de deformações fetais, não há até hoje constatação científica da relação exata entre seus componentes químicos e os efeitos nocivos observados.
Os tribunais alemães e espanhóis têm resolvido a questão da seguinte forma: substituem a constatação científica e incontestável da causalidade pelo reconhecimento de indícios suficientes do nexo causal. A certeza absoluta sobre a relação causa/efeito é substituída pelo convencimento íntimo do juiz diante de fundadas suspeitas sobre a existência da causalidade, embasadas em análises periciais ou estatísticas que as justifiquem(2).
Tal construção, por óbvio, flexibiliza o conceito de imputação objetiva, normatizando emTal construção, por óbvio, flexibiliza o conceito de imputação objetiva, normatizando emexcesso o nexo causal e ampliando o campo de atuação da norma penal. A suspeita torna-sefundamento para a imputação penal, mitigando a própria presunção de inocência. A certeza dacausalidade é substituída por indícios ou por evidências estatísticas, e tal operação impacta deforma significativa os tradicionais institutos sobre os quais se assentam inúmeros princípios doDireito Penal material e processual.
Porém, este não é o único problema relacionado às controversas formas de enfrentar os casos de responsabilidade penal pelo produto, que coloca em xeque a dogmática tradicional. Ao lado da relativização dos conceitos de causalidade e de imputação objetiva, coloca-se a premente dificuldade de solução de tais problemas no campo da autoria. Quem será o responsável pelos danos causados nos casos em discussão?(3) A fabricação e distribuição de produtos defeituosos não é um ato isolado, de uma pessoa facilmente identificável. Trata-se, em geral, de uma empreitada coletiva, decorrente de decisões colegiadas, executadas por partes, por inúmeros funcionários, cada qual com participação distinta e quase que ínfima para a tragédia final, que decorre da soma de todas estas pequenas contribuições.
A dificuldade para estabelecer critérios de responsabilização em âmbitos de organização complexa, de aferir o grau de culpabilidade por cada conduta, fragiliza os tradicionais conceitos de autoria. Os critérios para identificar autores, partícipes, para distinguir tais papéis e para determinar a culpabilidade de cada um tornam-se mais complexos, ainda mais quando surge a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Mesmo as mais modernas teorias do domínio do fato não apresentam respostas satisfatórias para tais indagações, revelando a atualidade do problema.
A responsabilidade pelo produto coloca em questão, ainda, a imputação subjetiva (dolo/culpa). A conduta dolosa ou culposa exige, ao menos, que o agente conheça os riscos dela decorrentes, desejando ou aceitando o resultado, ou violando o dever de cuidado. Ocorre que, como já destacado, nem sempre os riscos do produto são reconhecíveis no momento de sua distribuição, razão pela qual nem sempre são exigidos determinados cuidados prévios.
Sobre este pantanoso terreno da dúvida científica, não é fácil perceber o elemento “previsibilidade”, tão caro à imputação subjetiva. O que significa ser previsível? Qual o grau de suspeita sobre a periculosidade do produto que fundamenta determinados deveres de cautela ou sua retirada de circulação? Quais os limites da precaução, para evitar a incidência da norma penal a título de dolo ou culpa? A fronteira entre o risco permitido e o ilícito previsível é tênue, difusa, mas a ausência de sua demarcação pela dogmática perturba a segurança da aplicação da norma. A determinação dos limites do risco, do conteúdo do cuidado devido, e da materialidade da precaução é essencial para evitar um Direito Penal arbitrário e desigual. A perplexidade da jurisprudência diante dos casos de responsabilidade pelo produto revela, na prática, a urgência da fixação de parâmetros seguros de imputação criminal no contexto da sociedade de riscos(4).
Outros aspectos relevantes e instigantes cercam a responsabilidade pelo produto, sobre os quais não se faz possível uma análise detalhada, como os problemas atinentes à aplicação das regras do concurso de crimes. A colocação no mercado de produtos defeituosos é crime de perigo, enquanto que a causação de danos aos consumidores denota um resultado lesivo claro. Como tratar o concurso nestes casos? O crime de dano absorverá o crime de perigo, ou desenha-se o concurso formal ou material? A superação destas questões passa pela controversa reavaliação do conteúdo dogmático dos crimes de perigo abstrato e de lesão, sua extensão, e a natureza dos bens jurídicos protegidos, demonstrando mais uma vez a variedade de temas que envolve qualquer construção neste campo(5).
Por fim, cabe apontar o crime omissivo como outro instituto dogmático bastante afetado pela responsabilidade pelo produto(6). A partir do momento em que o fabricante descobre o potencial lesivo de seu produto, desconhecido anteriormente, deve retirá-lo de circulação, sob pena de crime omissivo? Caso ocorram lesões posteriores a não retirada, o produtor responderá por omissão própria ou imprópria? A jurisprudência alemã tem caracterizado tais casos como crimes de omissão imprópria, ou seja, apontado a posição de garante da empresa que fabricou a mercadoria, criou o risco, e que responde pelas lesões como se as tivesse causado ativamente. Independentemente do acerto ou equívoco da decisão, percebe-se uma ausência de reflexão sobre seu conteúdo e seus reflexos para os conceitos de culpabilidade, e do conceito do dever de cuidado, que adquire contornos cada vez mais etéreos.
Em linhas gerais, estes são os principais desafios dogmáticos postos pela responsabilidade pelo produto. O presente texto não tem o escopo de apresentar respostas às questões colocadas, mas apenas expor o contexto dos debates, e a gravidade de suas conseqüências. O objetivo é apenas apontar como os novos problemas expõem as fragilidades dos institutos dogmáticos tradicionais, de maneira a exigir uma urgente reflexão sobre a maneira pela qual o sistema penal pode solucionar tais questões de forma racional. A crise sistêmica do direito penal impõe um trabalho de releitura de suas premissas, de forma a garantir coerência e funcionalidade ao método interpretativo, do contrário, as respostas às questões colocadas continuarão a ser oferecidas por jurisprudências casuísticas ou soluções isoladas, de repetição improvisada, que podem aos poucos jogar por terra toda uma dogmática voltada para garantir segurança ao cidadão diante do sempre imponderável exercício do Direito punitivo estatal.
Notas
(1) A jurisprudência comparada debruçou-se sobre o tema em alguns clássicos casos concretos, como o do azeite de colza (Espanha) ou da talidomida (Alemanha), dentre outros, nos quais se discutiu a qualidade da responsabilidade dos fabricantes e distribuidores destes produtos pelos danos decorrentes de sua utilização. Por todos, HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. La Responsabilidad por el Producto en Derecho Penal. Tirant: Valencia, 1995.
(2) HILGENDORF, Eric. “Relación de causalidad e imputación objetiva a través del ejemplo de la responsabilidad penal por el producto”, Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales, Tomo LV, MMII, Madrid, 2004. pp. 91-107.
(3) VOGEL, Joachim. “La responsabilidad por el producto en Alemania: sictuación actual y perspectivas de futura”, Revista Penal, 8, La Ley, julho 2008, pp. 95-104.
(4) KUHLEN, Lothar. “Necesidad y limites de la responsabilidad penal por el producto”, Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales. Tomo LV, MMII, Madrid, 2004, pp. 67-89.
(5) Sobre a importância da discussão da natureza dos bens jurídicos protegidos nestes casos, ver CAROCORIA, “‘Sociedades de riesgo’, bienes jurídicos colectivos y reglas consursales para la determinación de la pena en los delitos de peligro con verificación de resultado lesivo”, Revista Peruana de Ciências Penales, 9, pp. 177-219.
(6) CORROZA, Maria Elena Iñigo. “El caso del ‘protector de la madera’ (holzchutzmittel). Sintesis y breve comentário de la sentencia del tribunal supremo alemán”, Revista Peruana de Ciências Penales, n.13, pp. 281-309.
Pierpaolo Cruz Bottini
Professor-doutor de Direito penal da USP, advogado, coordenador regional do IBCCRIM e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária