Alterações na legislação de combate à lavagem de dinheiro: primeiras impressões
A Lei 9.613/1998, que criminalizou a conduta de lavagem de capitais e dispôs sobre as obrigações ligadas à prevenção de lavagem, tinha, como principais características, aquelas típicas das legislações de segunda geração. Trazia uma lista fechada de crimes antecedentes, que não incluía, por exemplo, os crimes de evasão fiscal ou crimes econômicos (em sentido estrito), ou os tradicionais crimes contra o patrimônio. A pena para quem ocultasse ou dissimulasse natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores oriundos da prática daqueles precisos crimes antecedentes era de três a dez anos, e multa.
A lista de pessoas obrigadas aos deveres de cadastro de clientes, manutenção de registro de operações e a comunicação de operações suspeitas elencava bancos, corretoras de valores mobiliários e de imóveis, entre outros, mas não incluía profissionais como contadores, auditores, tabeliães e advogados.
Fruto de iniciativa legislativa que remonta ao ano de 2003, foi aprovado pelo Congresso Nacional, no último dia 6 de junho de 2012, um novo marco legal, a Lei 12.683, que alterou significativamente a disciplina da lavagem de capitais no Brasil. A nova regulamentação traz mudanças significativas.
A primeira grande alteração foi a supressão da lista exaustiva de crimes antecedentes. A abertura do antigo rol para quaisquer infrações ampliará acentuadamente o espaço de incidência do tipo. Nesse ponto, merece crítica parcial a alteração, posto que inclui as contravenções penais e as infrações de menor potencial ofensivo, cujas penas são menos severas justamente em razão da menor lesividade das condutas assim classificadas pelo legislador. Haverá situações de perplexidade nas quais o autor da contravenção antecedente, como, por exemplo, aquele que promover jogo de azar, estará sujeito a uma pena extremamente mais severa pela lavagem (três a dez anos) do que aquela prevista para o próprio crime que se quer coibir (o jogo de azar, com pena de três meses a um ano e multa, art. 50, LCP). Se a intenção era atingir o jogo do bicho, melhor seria ter transformado esta conduta em crime em vez de sobrecarregar o sistema penal com um sem-número de condutas de pouca gravidade. Afastou-se, assim, o legislador brasileiro do próprio parâmetro sugerido pela Convenção de Palermo, que demanda crimes antecedentes de alguma gravidade, indicando como standard aqueles cuja pena máxima não seja inferior a quatro anos.
Ainda em sede de crime antecedente, atenção especial merece a inclusão de (todos)(1) os crimes tributários, cujos proventos poderão vir a formar o objeto material do crime de lavagem de capitais. Aqui merecem atenção problemas peculiares que surgirão, como a composição do processamento do crime de lavagem com o enunciado da Súmula Vinculante 24 do STF. A nosso ver, qualquer investigação ou processo por lavagem de dinheiro com crime fiscal como antecedente exigirá a constituição do crédito tributário. Sem esta, não há tipicidade. E, sem tipicidade, não há infração penal antecedente.
Outro ponto que merece destaque é a ampliação significativa do rol das pessoas sujeitas às obrigações da política de prevenção. E, entre elas, a maior preocupação certamente é a possível inclusão dos advogados que prestem serviços de assessoria, aconselhamento, auditoria ou assistência em transações comerciais e financeiras (nova redação do art. 9.º, parágrafo único, inciso XIV). A preocupação deriva, evidentemente, da estreita relação (ou fricção?) entre os novos deveres e o dever de sigilo profissional, imposto pelo Estatuto da OAB. Será lícito exigir que o advogado comunique aos órgãos de fiscalização a prática de atos suspeitos de lavagem de dinheiro por seu cliente? Será que tal imposição não viola a relação – legalmente imposta – de confidencialidade entre o profissional e seu cliente? Mais: será que não se afeta com tal determinação a faculdade do réu de não produzir prova contra si mesmo? Afinal, a obrigação de delação por parte do profissional de confiança do cliente não deixa de ser uma obtenção indireta de informação autoincriminadora. Nesse sentido, importante notar que a Direito GV (FGV-SP) já está desenvolvendo pesquisa sobre o tema a fim de apurar como outros países reagiram a similar situação e as medidas mais adequadas para a futura regulamentação, a qual, em nosso País, caberá à Ordem dos Advogados do Brasil.
As obrigações, de resto, passarão também a sujeitar contadores, consultores e auditores. Além destes profissionais, foram incluídas as bolsas de valores, mercadorias e futuros, as empresas de promoção imobiliária, as juntas comerciais e os registros públicos, entre outras.
Também o rol de obrigações da política de prevenção foi incrementado. Prevê-se agora, por exemplo, a necessidade de adoção, por essas pessoas, de “políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações” (novo inciso III do art. 10). O que implica necessidade de capacitação técnica e constante supervisão interna por parte das pessoas jurídicas afetadas.
Por fim, um último ponto digno de análise – sem desmerecer tantos outros que serão abordados na presente edição especial do Boletim do IBCCRIM – é a extensão da transição legislativa, ou seja, a fixação dos efeitos da nova lei penal no tempo. Parte da doutrina entende que os crimes de lavagem de dinheiro –em especial na modalidade ocultar – são delitos de natureza permanente, cuja consumação se protrai no tempo. Segundo tal entendimento, a nova lei incidirá sobre todas as condutas de ocultação, ainda que os bens escamoteados tenham origem em delitos que, à época de sua prática, não integravam o rol de antecedentes legalmente previstos. Aquele que praticou crime fiscal antes da vigência da nova lei e depositou os valores sonegados em conta de “laranja”, por exemplo, seria afetado pelos novos dispositivos legais, ou seja, praticará lavagem de dinheiro, caso a ocultação ainda esteja em andamento.
A nosso ver, a lavagem de dinheiro é crime instantâneo, mesmo na forma de ocultação. Trata-se de delito que se consuma no momento do mascaramento, e a permanência do escamoteamento é mera consequência do ato inicial, sem qualquer nova conduta lesiva (ataque) ao interesse tutelado. Dessa forma, a ocultação pretérita de bens provenientes de delitos praticados antes da vigência da nova lei, e que não integravam o rol de antecedentes, não caracterizará a prática de lavagem, mesmo que os bens permaneçam ocultos sob o novo marco legal.
Enfim, estas as primeiras reflexões sobre a nova lei de lavagem. Certamente outras questões surgirão, e a aplicação prática dos novos preceitos revelará novas perplexidades, a ensejar atenção e reflexão da doutrina e jurisprudência, para evitar que uma má-interpretação turbe uma política criminal de enfrentamento do crime organizado, banalizando seus instrumentos e inviabilizando seus mecanismos pelo excesso.
Notas
(1) No Brasil, os crimes tributários estão alocados, acidentalmente, tanto no Código Penal como na Lei 8.137/1990. Assim, as hipóteses clássicas de fraude fiscal e de não recolhimento de tributos arrecadados em substituição tributária estão previstas na Lei 8.137/1990. As mesmas condutas, quando tenham por objeto contribuições previdenciárias, são punidas nos termos dos arts. 168-A e 337-A do CP. Finalmente, se a fraude tiver por objeto tributos incidentes em operações de importação, a conduta se ajustará àquela prevista no art. 334, também do CP. Assim, pelo fato de os crimes de natureza tributária definidos nos arts. 334 e 337-A do CP estarem alocados no capítulo dos crimes cometidos pelos particulares contra a Administração Pública, havia entendimento de que poderiam ser antecedentes da lavagem dada a antiga redação do art. 1.º, inciso V, da Lei 9.613/1998.
ESTELLITA, Heloisa; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Alterações na legislação de combate à lavagem de dinheiro: primeiras impressões. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, n. 237, p. 02, ago, 2012.
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