Sobre o instituto da cegueira deliberada na lavagem de dinheiro
Pierpaolo Cruz Bottini
Um dos temas mais controversos na seara dos estudos sobre lavagem de dinheiro é o emprego da cegueira deliberada, instituto que caracteriza como dolosa a conduta de quem propositadamente se coloca em uma posição de ignorância a respeito da origem dos recursos que maneja, e, com isso, deixa de conhecer sua procedência ilícita [1].
Não interessa aqui discutir a origem do instituto ou suas diversas aparências, mas apenas debater sua aplicabilidade ou não aplicabilidade no âmbito da lavagem de dinheiro.
Pela lei brasileira, aquele que age sem conhecer as circunstâncias nas quais atua está em erro de tipo, equívoco que afasta o caráter doloso da conduta. A problemática do erro nos crimes de lavagem de dinheiro é especialmente complexa porque o tipo penal carrega um elemento peculiar: as infrações penais antecedentes. Não há dolo se o agente opera sobre bens cuja proveniência ilícita ele desconhece ou ignora.
Porém, há uma zona intermediária, na qual o agente não conhece plenamente a natureza infracional dos recursos, mas também não se encontra em total ignorância. Um espaço entre o conhecimento e o desconhecimento, em que o operador dos recursos tem dúvidas acerca de sua origem, e conscientemente se mantém em ignorância. Não indaga por sua procedência, preferindo deliberadamente ignorar tal fato.
É o caso do doleiro que, para não ter informações sobre a procedência dos recursos de seus clientes, deixa de realizar qualquer diligência sobre as transações e seus beneficiários. Ou o leiloeiro de arte que não realiza qualquer controle sobre compradores, vendedores e produtos, para evitar conhecer qualquer mácula nos objetos que transaciona.
Para esses casos, parte da doutrina entende aplicável a teoria da cegueira deliberada[2]. A consciente criação de barreiras ao conhecimento afastaria o erro de tipo, e seria reconhecida a lavagem de dinheiro dolosa, mesmo que o agente não tenha ciência plena da origem dos valores que maneja.
Não parece a posição mais acertada.
O artigo 20 do CP estabelece que o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal exclui o dolo. A lei não estabelece qual erro ou sua origem, mas apenas sua existência, de forma que qualquer interpretação no sentido de limitar seus efeitos, por mais bem intencionada que seja, vai de encontro ao texto legal. Como afirma Feijóo Sanchez: “el recurso a la ceguera deliberada de acuerdo com el cual el error se trata como dolo cuando “no se sabe porque no se quiere saber’ es contraria al principio de legalidade (si estos supuestos se quieren tratar como error debe reformarse el art.14 CP) y insatisfatória em la medida em la que puede dar lugar a soluciones versaristas (el que sabe que lo que está haciendo no es correcto del todo puede acabar respondendo de todo lo que suceda, incluso cuando fuera previsible)” [3].
Para além da ilegalidade, há uma confusão conceitual: a teoria cegueira deliberada, em grande parte dos países onde é adotada, não abarca apenas o dolo, mas também a culpa consciente [4], o que dificulta sua adoção no Brasil, ao menos para casos de lavagem de dinheiro, em que a modalidade culposa não é punida.
Um exemplo: o TS espanhol julgou o caso em que uma pessoa se deixou usar como interposta (laranja) de outra para a compra de um imóvel, sem exigir uma explicação plausível e objetiva da razão pela qual ela não realizava a transação em seu próprio nome. A Corte condenou o preposto por lavagem de dinheiro, usando a teoria da cegueira deliberada, pela falta de precaução do interposto para identificar a existência de um contexto delitivo [5]. Mas o fez na forma culposa, reconhecendo imprudência, não dolo. Em outra oportunidade, o STS espanhol reconheceu que o agente com cegueira deliberada responde “en unos casos a titulo de dolo eventual, y em otros a titulo de culpa” [6].
Em outras palavras, a jurisprudência espanhola, muitas vezes citada como paradigma no uso da cegueira deliberada, menciona o conceito para fundamentar condenações por imprudência, indicando que o instituto não abriga apenas condutas dolosas.
Se a lei brasileira não prevê a punição da lavagem de dinheiro culposa, não parece adequado fazer uso de um instituto que abarca tal modalidade em sua concepção, a não ser que se faça um esforço para distinguir a cegueira deliberada que substitui o dolo, daquela que substitui a culpa, trabalho intelectual que não parece presente nas decisões judiciais pátrias que fazem uso do conceito.
Isso não significa que, nos casos em que o agente desconfia que os recursos que opera tenham origem ilícita e fecha deliberadamente os olhos sobre sua procedência, não haja dolo. É possível tal conclusão, desde que o elemento caracterizador do dolo não seja a mera criação voluntária de barreiras ao conhecimento, mas sua instituição diante de uma dúvida razoável a respeito da procedência lícita dos bens. Deve haver uma percepção da possibilidade da origem infracional dos recursos, uma assunção de risco de praticar lavagem de dinheiro, que parece menos com a cegueira deliberada, e mais com o conhecido conceito de dolo eventual, previsto em nossa legislação (CP, artigo 18, I) [7].
O dolo não decorre da autocolocação consciente do agente em situação de ignorância, mas do fato dessa autocolocação ocorrer em um contexto no qual ele sabe ou tem fundadas suspeitas de que sua atuação contribuirá para mascarar valores de procedência ilícita. Caso a ignorância deliberada aconteça sem a percepção do ambiente de risco, haverá mera imprudência, modalidade de lavagem de dinheiro impune pela lei nacional
O diretor de uma instituição financeira não tem dolo eventual se deixa de cumprir com normas administrativas sobre averiguação das atividades econômicas de clientes que realizam determinadas operações por negligência ou desídia, sem antever a possibilidade da prática do crime naquele setor. Da mesma forma, não tem dolo eventual quem empresta seu nome ou sua conta bancária para outro, em quem confia e acredita não ter relação com práticas delitivas.
Por outro lado, se o diretor da instituição financeira desativa o setor de controle interno ao saber da proximidade de uma grande operação com dinheiro em espécie, efetuada por um cliente sem atividade econômica definida, desconfiando da procedência dos recursos, mas incentivado pelos bônus que receberá em decorrência do volume transacionado, é possível o dolo eventual. Não pelo mero desligamento dos sistemas de controle, mas pela ciência de uma atividade de possível lavagem de dinheiro que motivou a criação de um ambiente de cegueira deliberada. Da mesma forma, se o laranja suspeitar que aquele que usa sua conta pratica crimes, estará́ em dolo eventual, e concorrerá para a lavagem de dinheiro dolosa, se não interromper a relação de auxílio mencionada.
Em outras palavras, há dolo eventual quando, junto à criação de barreiras ao conhecimento, existe uma razoável suspeita da possibilidade da prática de atos infracionais. Do contrário, haverá culpa atípica.
São conceitos mais firmes sob uma perspectiva dogmática, construídos e talhados por anos pela doutrina e pela jurisprudência nacional. Não é necessário recorrer à cegueira deliberada, instituto sedutor pelo nome e pela procedência, mas perigoso pela pouca aderência sistêmica e baixo rendimento para a solução de casos concretos.
[1] Para uma visão detalhada do instituto, Ramon Regués I Vallés,, La ignorância deliberada em derecho penal São Paulo: Atelier Libros S.A. 2008. Sobre o tema, ver ainda artigo do autor do presente texto: https://www.conjur.com.br/2012-set-04/direito-defesa-tal-cegueira-deliberada-lavagem-dinheiro/
[2] Sérgio Fernando Moro, Crime de lavagem de dinheiro. 2008. cit., p. 33.
[3] Bernardo Feijoo Sanchez. Imputacion objetiva em derecho econômico y empresarial. In Dret 2/2009, p. 57. Para um rol de críticas ao instituto da cegueira deliberada, de autores e julgados espanhóis, ver Mateo Bermejo, Prevención y castigo del blanqueo de capitales, cit., p. 387 e ss.
[4] Ramon Ragués I Vallés aponta que a cegueira deliberada abriga casos de dolo eventual e casos de imprudência (La ignorância deliberada, 2008. p. 170), e mesmo a jurisprudência espanhola já reconheceu a equiparação, em certos casos, da cegueira deliberada a hipóteses de imprudência (STS, 289/2006, BC 844).
[5] STS 34/2007, em Isidoro Blanco Cordero, El delito de blanqueo, 4. ed., 2015. p. 890
[6] STS, 14 setembro 2005, citada em Mateo Bermejo, Prevención y castigo del blanqueo de capitales, p. 385. O autor cita ainda inúmeros julgados e autores que identificam a cegueira deliberada com a culpa consciente, e não apenas com o dolo eventual.
[7] O reconhecimento do dolo eventual nos crimes de lavagem de dinheiro também é controverso, mas sua aceitação é majoritária na jurisprudência brasileira, como exposto em artigo anterior publicado nesse Conjur em https://www.conjur.com.br/2023-ago-07/direito-defesa-dolo-eventual-lavagem-dinheiro/
Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-dez-06/o-sedutor-instituto-da-cegueira-deliberada-mas-perigoso-pela-pouca-aderencia/