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Impedir réu foragido de participar de interrogatório fere direito a ampla defesa

Mesmo uma rápida pesquisa jurisprudencial em sites especializados mostra que o conceito de “renúncia tácita” ao direito de defesa de um réu, em casos de mandado de prisão em aberto, é citado algumas dezenas de vezes em juízos de primeira instância, tribunais colegiados e no Superior Tribunal de Justiça, mesmo sem previsão legal. Com algumas exceções, os casos sobem ao Supremo Tribunal Federal, que tem adotado posição favorável ao réu.

O tema engrossa a fileira de disputas jurídicas que opõem legislação e percepções morais dos magistrados.

Em caso recente, o ministro Luiz Edson Fachin assegurou o direito de um réu acusado de associação ao tráfico — e que se encontra foragido — de ser ouvido por meio de videoconferência. No processo (HC 233.191), consta que o acusado, durante audiência de instrução, recebeu link para participar da conferência eletrônica. O juízo de primeiro grau, no entanto, negou pedido do advogado de defesa para que seu cliente fosse interrogado e utilizou o conceito de “renúncia tácita” à defesa, alegando que a oitiva do réu é incompatível com sua condição de foragido.

Fachin reverteu a decisão derrubando sentença monocrática do STJ que indeferiu liminarmente o pedido, invocando a Súmula 691 do próprio STF (“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de Habeas Corpus impetrado contra decisão do relator que, em Habeas Corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.”). A liminar de Fachin foi confirmada nesta terça-feira (30/10) na 2ª Turma por maioria, ficando vencido o voto do ministro Nunes Marques.

No voto referendado pela Turma, Fachin afasta a argumentação de primeiro grau que evocou a “renúncia tácita” e diz que, por si só, a argumentação é contraditória, posto que foi o réu foragido que procurou o juízo para prestar depoimento.

“O fato de o paciente não se apresentar à Justiça para cumprimento de seu mandado de prisão não implica renúncia tácita ao direito de participar da audiência virtual ou dos demais atos processuais, nem ao direito de defesa. Em verdade, a relação de causa e efeito estabelecida pela autoridade coatora entre réu que não se apresenta para a prisão cautelar e renúncia ao direito de defesa não está prevista em lei.”

À revista eletrônica Consultor Jurídico, advogados e advogadas criminalistas dizem que, por vezes, há interpretações éticas e morais sobre o direito à ampla defesa que vão de encontro aos princípios consagrados na Constituição brasileira. Outro ponto citado é que suprimir a possibilidade de oitiva do réu, somente pelo fato de estar foragido, configura cerceamento de sua defesa.

“O Código de Processo Penal previa, antes da Constituição, que uma das condições para que o acusado pudesse apelar de sentença condenatória era o recolhimento à prisão. Tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição em vigor e foi revogado expressamente por lei complementar”, diz a criminalista Ludmila Leite, sócia do Florêncio Filho e Camargo Aranha Advogados.

“A situação [do interrogatório de réu foragido] é a mesma, não cabe ao juiz, aplicador da lei, a criação de condições extralegais para o exercício de Direito amplamente consagrado. Não importa que ‘não pareça certo’, o que importa é que é ilegal e inconstitucional.”

A também criminalista Bianca Dias Sardilli, sócia do Moraes Pitombo Advogados, afirma que o Supremo já foi provocado e decidiu em alguns HCs (HC 233.191 e HC 116.985) que a situação do réu — nos casos analisados, o mandado de prisão em aberto — não implica em afastar sua participação dos atos processuais, sob pena de nulidade.

“Existe, na doutrina e na jurisprudência, dúvida sobre se o acusado pode deixar (não voluntariamente) de ser interrogado como reflexo de seu direito ao silêncio, mas, considerando o fato de que a ausência desse ato conduz à nulidade do processo, a renúncia deve ser concreta, expressa e motivada, e não suposta a partir de cenário em que o Estado é incapaz de cumprir o seu papel na condução do sistema de justiça criminal.”

“Nem o texto constitucional, nem a legislação infraconstitucional condicionam o direito de presença ao prévio recolhimento do acusado na prisão”, argumenta o advogado Guilherme Castro, do Castro Advocacia Criminal. Ele diz ainda que já participou de audiências em que, com o depoimento do réu foragido, o juízo suspendeu o mandado de prisão que estava aberto por causa da ausência de indícios de autoria.

Natureza do interrogatório
Outro ponto citado pelos advogados consultados pela reportagem é que o instituto da oitiva do acusado é peça imprescindível para a defesa — ou seja, sua denegação gera desproporcionalidade na condução processual.

“A natureza do interrogatório como ato de defesa por excelência impede que se aplique conceitos oriundos de outros ramos do direito, especialmente quando incompatíveis com as garantias individuais que norteiam a persecução penal”, afirma Tiago Sousa Rocha, criminalista do Bottini & Tamasauskas.

“A circunstância do acusado encontrar-se foragido não implica na conclusão lógica de que renunciou tacitamente ao direito que lhe é disponível.”

Bruno Borragine, sócio do Bialski Advogados, corrobora as posições dos especialistas entrevistados pela ConJur, no sentido de que o interrogatório também pode ser usado em benefício do réu, e não só para endossar a acusação.

“Não há renúncia tácita [ao direito de defesa]. Pelo contrário: a possibilidade de interrogatório de réus foragidos é exemplo prático do exercício de autodefesa do acusado, e encontra ressonância no sistema de Justiça pátrio no devido processo legal, ou seja, é a garantia do acusado de exercer o direito de participar do processo de forma efetiva, podendo, daí, influenciar na convicção do magistrado.”

A influência citada por Borragine está no centro da discussão. Em julgados analisados pela reportagem (HC 2234160-67.2022.8.26.0000, por exemplo), os desembargadores da 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmaram que, como o réu optou por não se apresentar à Justiça para que mandado de prisão contra si seja cumprido, somente sua defesa técnica seria permitida, e não a autodefesa.

A argumentação expõe a supressão de direitos condicionados à situação do acusado.

“Frise-se que ao réu foragido, com a prisão preventiva decretada, é garantido o direito de ser representado por Defensor, constituído ou dativo, pois sua condição não lhe subtrai o direito à defesa técnica, apenas a autodefesa, de modo que a condição de foragido implica a renúncia tácita ao direito de participar da audiência ou de acompanhar os atos instrutórios. A lei garante sua defesa técnica, mas exige que, para comparecer aos atos processuais, se apresente pessoalmente e suporte o cumprimento da medida restritiva imposta”, escreveu o relator Paulo Rossi em novembro passado, acompanhado por seus pares.

O advogado André Damiani, sócio-fundador do Damiani Sociedade de Advogados, diz que “causa surpresa o emprego da expressão ‘renúncia tácita à defesa'”. “[O termo] representa mero estratagema retórico para tentar fazer prevalecer o punitivismo irracional que não encontra qualquer respaldo em nosso ordenamento jurídico.”, diz Damiani.

Ele argumenta ainda que, nos casos citados, não houve trânsito em julgado do processo, ou seja, a própria presunção de inocência fica prejudicada a partir do conceito de “renúncia tácita”.

“É por isso que o entendimento que vem sendo adotado pelo Supremo é no sentido de que a fuga não justifica agravar a perseguição estatal contra o acusado. Tanto é assim que não há qualquer tipo de pena prevista no Código Penal pelo ato de ‘fuga’, apenas pelo ato de quem empresta ‘auxílio à fuga’ de terceiro. Ora, não se trata de defender o direito de fugir, e sim de lutar em liberdade pela revogação de uma prisão cautelar que se repute injusta.”

Clique aqui para ler a decisão de Fachin
HC 233.191

 

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-nov-01/renuncia-tacita-interrogatorio-reu-foragido-fere-ampla-defesa

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