Essa a agonia do processo penal. A condenação exige a certeza da materialidade e da autoria do crime, um grau de convencimento que não pode ser alcançado por meros indícios ou conjecturas. São necessárias provas contundentes que determinada pessoa cometeu um ato descrito em lei como crime. O problema é alcançá-las, é extrair a tal verdade de seu bem arrumado esconderijo.
No caso das joias presenteadas pela Arabia Saudita ao governo brasileiro, que tem mobilizado a imprensa, o mundo político e a Polícia Federal, existem suspeitas do envolvimento de Jair Bolsonaro na tentativa de resgatá-las das mãos da Receita federal e incorporá-las ao seu patrimônio pessoal. O “presente” estava acondicionado no fundo de uma mochila do assessor do ministro de Minas e Energia, que vinha de uma viagem oficial ao país. Uma das várias tentativas de resgatar as joias na alfândega teve por autor o ajudante de ordens da Presidência da República, que tem dentre suas funções a organização do acervo pessoal do mandatário. Após a descoberta dos fatos, Jair Bolsonaro devolveu outros bens que pertenciam à União e estavam em sua posse — relógios, abotoaduras, caneta, rosário e armas – não se sabe a que título.
São fatos que merecem investigação. É preciso indagar se a insistência por parte de diversas autoridades para a devolução das joias — inclusive por parte do então secretário da Receita Federal — foi de ofício, em decorrência de uma estranha espontaneidade em prol do incremento do acervo de bens da Presidência da República, de um civismo louvável por parte de servidores exemplares, ou provocado por qualquer interesse pessoal pouco republicano. É preciso conhecer a razão pela qual tais joias foram recebidas e trazidas de forma no mínimo inusitada ao Brasil, no fundo de uma mochila. E também os motivos do governo saudita em entregar o valioso presente, se apenas decorrentes de uma cordialidade diplomática ou se relacionados com qualquer transação desconhecida.
Caso as provas demonstrem que Bolsonaro tentou se apropriar dos presentes e usou de servidores para desembaraçar os bens que deveriam ser integrados ao patrimônio da União, é possível imputar ao ex-presidente a prática de peculato ou prevaricação, a depender das circunstâncias. São vários anos de prisão em caso de condenação.
A verdade é difícil de ser alcançada, mas aos poucos os indícios se avolumam e tomam conta de uma investigação aparentemente séria e isenta. Talvez, aos poucos, outras verdades sobre práticas ocorridas na gestão presidencial anterior venham à tona, revelando condutas cujos contornos não sejam dos mais admiráveis.
Zola dizia que quando se sepulta a verdade numa cova, ela vai-se acumulando, chega a tomar uma força tal de explosão que, no dia em que explode, faz-se voar tudo em torno de si. Que tal explosão revele enfim toda a extensão da administração de Jair Bolsonaro, para o bem do país, e talvez para o mal de todos aqueles envolvidos nos atos investigados.
*Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de direito penal da USP e presidente da Comissão de Liberdade de Expressão da OAB
Fonte: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2023/04/pierpaolo-cruz-bottini-as-joias-e-a-verdade.ghtml