A garantia da liberdade de expressão do Brasil foi uma conquista lenta. A relação dos poderes instituídos com a livre manifestação do pensamento, em especial quando exercida pela imprensa, sempre foi conturbada, difícil e acompanhada de resistências, revelando que jornalistas, em geral, cumprem bem sua missão de questionar as autoridades públicas.
Quase todos os regentes, imperadores, presidentes e ditadores nacionais andaram às turras com a liberdade de expressão. Nos tempos do Império, José Bonifácio organizava o empastelamento de jornais. Na República Velha, Floriano Peixoto defendia o arcabuzamento de jornalistas. Washington Luís instituiu a Lei Celerada, que permitia o fechamento de jornais e sindicatos que propagassem ideias contrárias à ordem vigente. E nem é preciso gastar tempo para recordar a postura dos governos autoritários de Getúlio Vargas e dos militares pós 1964, onde pensar em voz alta era perigoso.
Nossa Constituição de 1988 fez um pacto com as liberdades. Dentre uma lista delas, destaca expressamente a proteção à liberdade de manifestação do pensamento (CF, art.5º, IV e art.220) da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentes de censura ou licença (CF, art.5º, IX) e assegura o sigilo de fonte aos profissionais da comunicação e veda expressamente a censura (CF, art.5º, XIV).
Com isso, após um longo caminho, consagrou-se no Brasil a livre expressão como direito inerente à dignidade humana, à cidadania, e como pilar de um Estado plural e democrático. Ao menos no papel, a liberdade de manifestação é plena. Cada cidadão pode expressar quaisquer ideias, por mais absurdas e estupidas que sejam.
Mas há limites constitucionais e legais. No campo da honra, aquele que imputa falsamente a alguém a prática de crime (calunia, CP, art. 138) ou fato ofensivo à sua reputação (difamação, CP, art.139), ou lhe ofende a dignidade ou o decoro (injúria, CP, art.140) pode ser responsabilizado civil ou criminalmente pelas consequências de seus atos, e obrigado a conceder o proporcional direito de resposta. O direito penaliza aqueles que usam da palavra escrita ou verbal para desgastar a honra de terceiros ou afetar sua imagem, com expressões agressivas ou imputações falsas.
A liberdade de expressão também é limitada nos casos de discursos de ódio, de incitação à violência, ameaça ou de indução à agressão a grupos, pessoas ou qualquer bem protegido pelo direito. Nosso direito fixa os limites da liberdade de expressão nesse campo ao criminalizar a incitação ao crime (CP, art.286), a apologia de fato criminoso (CP, art. 287), e a prática ou a indução à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei 7716/89). Chega-se a vedar expressamente a fabricação e a distribuição de símbolos ou distintivos que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo (art.20).
Qualquer liberdade termina quando esbarra na liberdade de outro. O direito à livre manifestação é pleno, desde que não afete a garantia de terceiros de exercer o mesmo direito. O ódio não é proibido, mas sim sua expressão na forma de violência ou ameaça. O rancor pode ser propalado, desde que não acompanhado da incitação à agressão de quem quer que seja. O direito salvaguarda a propagação de qualquer ideia, mesmo da estupidez, como forma legitima de manifestação humana, desde que resguardada a integridade dos demais integrantes da sociedade.
Para preservar a tolerância é preciso ser intolerante com aqueles que propalam o fim das liberdades públicas pela violência. O Estado de Direito não pode admitir a manifestação violenta pelo fim do próprio Estado de Direito. Ao descrever esse paradoxo da tolerância, Popper dizia ser necessário “exigir, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes” do contrário “os tolerantes serão destruídos e a própria tolerância com eles” (1).
Conhecer a Constituição, os fundamentos e os limites à liberdade de expressão, parece um passo importante. A clareza conceitual é o melhor remédio para a compreensão do sistema democrático e para sua preservação, diante de ataques claros ou dissimulados que visam a enfraquecer seus fundamentos e abrir espaço para formas autoritárias do exercício do poder.
NOTA
(1) Popper, Karl. The open society and its enemies. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 1994.
Por Pierpaolo Cruz Bottini
O GLOBO
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