Skip to main content

O dolo eventual e a teoria da cegueira deliberada nos crimes de lavagem de capitais no Brasil

David Metzker, Lívia Metzker e Rodrigo Corbelari Pereira*

27 de junho de 2020

Para configuração do crime de lavagem, é necessário o crime antecedente. Quando se trata de autolavagem (o crime de lavagem praticado pelo mesmo agente que praticou a infração penal antecedente) não há dúvidas sobre o elemento subjetivo. Todavia, quando estamos diante de terceiro, surge a dúvida quanto a consequência jurídica sobre o desconhecimento ou erro em relação a infração antecedente. Será que é necessário que ele tenha consciência total da ilicitude dos bens ou a mera suspeita já poderia levar a imputação de lavagem?

Diante disso, trazemos à baila alguns apontamentos sobre o elemento subjetivo do tipo de branqueamento de capitais e sua implicação teórico-prática.

É consabido que o dolo eventual advém na assunção do risco de produzir um resultado. A ocorrência do crime apresenta-se ao agente no campo da possibilidade, ou eventualidade, contudo, ele consente com a situação. De modo geral, o dolo eventual constitui decisão pela possível lesão do bem jurídico protegido no tipo, e a imprudência consciente representa leviana confiança na evitação do resultado de lesão do bem jurídico.[1]

Analisando o referido ensinamento junto ao preceito estabelecido no artigo 1º da Lei n.º 9.613/98 (com a atual redação), percebe-se que o principal argumento que repelia a figura sub examine não prospera mais[2], ainda que haja entendimentos diversos[3].

Em razão da ausência de previsão sobre a modalidade culposa da lavagem de dinheiro, tem sido bastante utilizado o dolo indireto para aplicação do tipo penal. O uso indiscriminado do dolo eventual tem criado discussões sobre a ausência de uma definição melhor sobre a aplicabilidade do dolo eventual e da cegueira deliberada.

Uma das principais críticas quanto ao dolo eventual está na ausência da expressão “deva saber” que comumente se vê em tipos penais que demandam a presença de infração ou circunstância anterior, com a devida ciência. No crime de receptação[4], que necessariamente tem um fato anterior, o caput é claro, ao trazer a expressão “sabe ser”, dirimindo dúvidas quanto ao dolo eventual, que no caso se aplica em razão da assunção quanto ao risco. Da mesma forma que ocorre no perigo de contágio venéreo[5] e nos demais tipos penais que trazem um fato antecedente.

No entanto, a atual jurisprudência tem entendido pela aplicação do dolo eventual. Mesmo diante da ausência da expressão “deva saber”, importante trazer à baila que para caracterizar o dolo eventual não basta meras presunções, é preciso demonstrar por elementos concretos que o agente tinha condições de concluir da origem ilícita e assumiu o risco. Agir por imprudência é atípico, diante da ausência da forma culposa. É importante a assunção, caso ele tenha, acredita-se que diante dos fatos que lhe apresentam, não há ilicitude, o fato não se amoldará em nenhum tipo penal.

Agora, fica a pergunta: Diante da aplicação do dolo eventual, era necessário importar o instituto da cegueira deliberada?

Primeiramente importante definir o que é a cegueira deliberada. Pierpaolo e Badaró definem a cegueira deliberada quando “o agente cria conscientemente uma barreira para evitar ter ciência de qualquer característica suspeita sobre a procedência dos bens”[6].

O uso da Teoria da Cegueira Deliberada em decisões de tribunais brasileiros está cada vez mais frequente, tendo como precedente o furto ao Banco Central de Fortaleza, em 2005, mas com o destaque para Operação Lava Jato, nacionalmente conhecida por ser a precursora da inserção do estudo da referida teoria. Sabe-se que na AP 470, conhecida como mensalão, tiveram ministros da Corte Suprema que mencionaram o instituto, mas não se pode considerar que fora aplicado. O tema é polêmico e já pauta inúmeras discussões acadêmicas e jurídicas.

Fato é que o legislador iniciou um debate acerca da aplicabilidade da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais, conforme nos ensinam André Luís Callegari e Ariel Barazzetti Weber[7]:

Em apertada síntese, a doutrina referida propõe a equiparação, atribuindo os mesmos efeitos da responsabilidade subjetiva, dos casos em que há o efetivo conhecimento dos elementos objetivos que configuram o tipo e aqueles em que há o “desconhecimento intencional ou construído” de tais elementares. Extrai-se tal conclusão da culpabilidade, que não pode ser em menor grau quando referente àquele que, podendo e devendo conhecer, opta pela ignorância. (2014. p.92)

O professor Pierpaolo Bottini, ainda que rechace o dolo eventual na lavagem de capitais, entende ser possível equiparar os institutos desde que presentes alguns requisitos. [8]

É substancial que o agente construa barreiras, de maneira voluntária e consciente, ao conhecimento com o intuito de disfarçar o contato com a atividade ilícita, caso esta venha a ocorrer. Deve ser levada em consideração, ainda, a hipótese do autor se valer das barreiras para evitar o conhecimento do fato ilícito, ocasionando a cegueira deliberada. Caso contrário, se não há compreensão de que está diante de um ilícito penal, o mesmo não poderá ser responsabilizado por dolo eventual.

Nota-se que o instituto da cegueira deliberada é estabelecido por elementos objetivos e concretos acerca da insciência de determinado agente, não bastando apenas a possibilidade genérica do ilícito, mas sim expressivos e relevantes indícios a respeito da ignorância deliberada do agente.

Importante frisar que a aplicação do instituto em outros países como a Espanha e Alemanha abarca a forma culposa, fazendo seu uso relevante. Contudo, no Brasil não temos a forma culposa, como já anteriormente citado, por isso, não encontramos pertinência em sua aplicação, vez que o dolo eventual já seria o suficiente para resolver o problema que a cegueira deliberada viria resolver.

A cegueira deliberada poderá ser equiparada ao dolo eventual, visto que as técnicas para evitar o conhecimento sobre o ilícito ocorrem de maneira consciente e voluntária, ou seja, o agente tem a ciência que pode estar diante de algo ilícito, mas prefere disfarçar intencionalmente o conhecimento sobre o fato. Além disso, devem existir elementos objetivos que incitem dúvidas razoáveis a respeito da ilicitude do objeto de suas atividades.

Há um trecho citado no livro Lavagem de Dinheiro do Pierpaolo e Badaró[9] de uma decisão do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, da época quando atuava na 13ª Vara Federal Criminal, em sentença prolatada na operação lava jato, deixando claro que na cegueira deliberada o agente “escolhe não aprofundar o seu conhecimento, pois de antemão tem presente o risco do resultado delitivo e tem a intenção de realizar a conduta, aceitando o resultado delitivo como probabilidade”[10]. Com isso, verifica-se que os requisitos para aplicação do instituto nada mais são que os mesmos requisitos para aplicar o dolo eventual.

Ocorre que pouco a pouco a teoria da cegueira deliberada começou a ser aplicada de forma geral, até mesmo em outros crimes que não a lavagem de dinheiro. Podemos ver, por exemplo, a menção a este instituto em apelação do TJES[11], de relatoria do Des Sérgio Bizotto, em que diz que é “impossível afastar o dolo da apelante”. Ainda que não houvesse comprovação a respeito do dolo da apelante, o caso é um daqueles em que se pode aplicar a “Teoria da Cegueira Deliberada, tipicamente utilizada nos crimes de lavagem de dinheiro, quando o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência dos bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens”.

No caso, uma pessoa simulava que havia credoras de uma instituição financeira e a Instituição na qual ela trabalhava depositava os valores nas contas indicadas por ela. Foi inserida a irmã da funcionária no processo, visto que essa “possuía condições de conhecer a ilicitude dos ganhos da irmã, porquanto adotou postura ativa para a consumação do delito”. No entender do relator, a irmã da funcionária “fechou os olhos” para o ganho repentino da irmã, utilizou os valores recebidos ao pagar contas, mesmo com a possibilidade concreta que os valores tinham origem ilícita.

Verifica-se, assim, que a aplicação da teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico brasileiro é para demonstrar que o agente deliberadamente ignora a possibilidade de origem ilícita dos bens, pois há um risco atual que se trata de resultado ilícito e assume o risco na conduta. Nada mais que o dolo eventual.

Ante tudo que fora explanado, tem-se que a aplicação da cegueira deliberada é ainda marcada por nuances, não existindo posicionamento pacífico da jurisprudência. Entretanto, é possível afirmar que a aplicação dessa teoria no Brasil encontra um árduo caminho a trilhar, visto que a cegueira deliberada torna mais extensa a aplicação do dolo e, por isso, não pode ser adotada sem parâmetros predefinidos pelo legislador e pelo judiciário.

*David Metzker é sócio da Metzker Advocacia, advogado criminalista, professor e palestrante, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS e MBA em Gestão, Empreendedorismo e Marketing pela mesma instituição, diretor Cultural e Acadêmico da ABRACRIM-ES

*Lívia Metzker é associada da Metzker Advocacia, advogada empresarialista e LLM em Direito Empresarial pela MMurad/FGV

*Rodrigo Corbelari é estagiário de Pós-Graduação na Metzker Advocacia

[1] DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: Parte Geral. 6. ed., ampl. e atual. Curitiba: ICPC, 2014. p. 134.

[2] Pelo menos não para o Supremo Tribunal Federal – STF – que quando do julgamento da Ação Penal 470, popularmente conhecida como “Mensalão”, entendeu que a elevada probabilidade da procedência criminosa dos bens, valores, ou direitos envolvidos milita em favor do reconhecimento do dolo eventual no delito de lavagem de capitais. (STF – AP 470 – Plenário – Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC 22-04-2013).

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

[4] Art. 180 – Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º – Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa.

[5]A rt. 130 – Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. Pág. 136.

[7] CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014. p. 92.

[8] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A tal cegueira deliberada na lavagem de dinheiro. Consultor Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 27 mai. 2020.

[9] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. Pág. 140.

[10] Processo nº5013405-59.2016.4.04.7000.

[11] TJES; Apl 0026071-46.2015.8.08.0024; Segunda Câmara Criminal; Rel. Des. Sérgio Bizzotto Pessoa de Mendonça; Julg. 14/11/2018; DJES 21/11/2018.

back