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Sindicom defende ser crime o não pagamento contumaz de ICMS declarado

Supremo vai analisar criminalização do não pagamento de ICMS declarado em dezembro
Ana Pompeu – Brasília
03/10/2019

JOTA Discute

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Na semana anterior ao encerramento dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal, o plenário deve apreciar um tema que tem potencial de impactar vários setores da atividade econômica — especialmente aqueles que enfrentam maior carga tributária, como o de combustíveis, por exemplo. Trata-se da criminalização do não pagamento de ICMS declarado, tema que preocupa advogados criminalistas e tributaristas. O processo foi pautado pelo presidente da corte, ministro Dias Toffoli, para julgamento no dia 11 de dezembro.

A pergunta a ser respondida é se o Direito Penal pode alcançar a inadimplência e considerar crime de apropriação indébita a dívida fiscal de um empresário que reconhece ter um débito, mas não o quitou. Se a discussão está polarizada, a manifestação de uma entidade privada colocou para o debate a possibilidade de uma terceira via para a solução do RHC 163.334.

O Sindicato das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes (Sindicom) defende tipificar como crime apenas o não recolhimento doloso do tributo, praticado pelos “devedores contumazes”, ou seja, aqueles que adotariam o não pagamento do tributo de forma sistemática, como modelo de negócio. Trata-se da única entidade do setor privado a defender que deve haver punição criminal para o devedor de ICMS, ainda que para o devedor contumaz. Refinarias e a indústria do tabaco estão entre as que mais devem.

Em grave crise, estados tentam sensibilizar a Corte sobre a fortuna que deixou de ser arrecadada pela inadimplência. Dados enviados pelos estados ao Supremo mostram que, apenas em 2018, a inadimplência do ICMS próprio declarado e não recolhido em 22 estados foi superior a R$ 12 bilhões. Em 2017, o valor foi semelhante.

Várias entidades entraram no caso como amicus curiae, dentre elas, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por exemplo. Diante da decisão do STJ, o governo paulista afirmou que processaria criminalmente cerca de 16 mil empresários considerados devedores contumazes.

No caso dos combustíveis, o valor dos tributos representa parcela significativa do preço das mercadorias comercializadas. Segundo o entendimento do setor, isso se explica também pelo fato de que existem as empresas que praticam concorrência desleal por meio da adoção de preços predatórios, na medida em que consciente e sistematicamente não recolhem os tributos devidos.

A preocupação do Sindicom é que a decisão do Supremo venha a igualar — e criminalizar — empresas que por uma ausência temporária de caixa, por exemplo, tenham deixado de recolher o ICMS de certo período e aquelas que se valem do não pagamento do tributo reiteradamente para obter vantagem competitiva, provocando desequilíbrio tributário. Especificamente quanto aos combustíveis, os tributos representam aproximadamente 50% do preço final. Apenas o ICMS tem o peso de 31% do preço final da gasolina.

Quando empresas passam a, deliberadamente, não recolher os tributos devidos, o resultado é a concorrência desleal, “com graves danos à ordem econômica, à livre concorrência, ao erário e ao próprio setor, já que os devedores contumazes conseguem praticar preços inclusive abaixo do custo”, diz Ricardo Zamariola Junior, sócio do PVG Advogados e advogado da entidade.

“Para a solução do tema em análise, deve-se focar no elemento da culpabilidade, qual seja, o dolo, a conduta fraudulenta que visa o prejuízo direto ao Fisco (art. 1º, Lei nº 8.137/90) ou a terceiro de boa-fé (art. 2º, II, Lei nº 8.137/90). Portanto, entre os alvos do legislador, estariam criminosos camuflados de empreendedores de boa-fé — os chamados devedores contumazes”, diz Zamariola na peça.

O Sindicom destaca precedentes do Supremo em que o colegiado reconheceu a constitucionalidade de norma que previa medida de combate à prática proposital, com o cancelamento do registro de empresa perante a Receita Federal caso haja descumprimento da legislação tributária. Já tendo assim firmado no RE 550.769, em 5 de setembro de 2018, o Plenário, no julgamento da ADI 3.952, discutiu o assunto especificamente para empresas de tabaco e reuniu oito votos contra um pela possibilidade de cassação do registro.

No RE, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou estarem diante de uma “macrodelinquência tributária reiterada”, numa “flagrante afronta ao princípio constitucional da livre concorrência”. Na mesma linha, o ministro Luiz Fux ressaltou que há “uma estratégia dolosa contra a administração tributária”, muitas vezes em que a empresa alcança patamar de débito que se torna capital irrecuperável pelo poder público.

O Sindicom enfatiza a diferença entre os comportamentos de boa e de má fé. “Importante não se perder de vista que mero inadimplemento tributário não se confundia e, espera-se, continuará não se confundindo, com apropriação indébita. O mero inadimplemento tributário enseja a constituição do crédito e sua persecução no âmbito jurídico tributário, através de sua inscrição em dívida ativa e cobrança via execução fiscal do próprio contribuinte. Diferentemente, na apropriação indébita, além da repercussão naquela esfera jurídico-tributária, também se verificam implicações penais”, explica.

A entidade ainda aponta um questionamento que entende ser necessário: por que a responsabilização criminal do contribuinte (vendedor ou prestador de serviços) se verifica apenas quando o ICMS não é repassado aos cofres estaduais? Ou seja, salários podem deixar de ser pagos, ou os fornecedores deixar de receber ou mesmo outros tributos, como o FGTS, não serem recolhidos, sem que nada disso seja classificado pela norma penal.

De início, seria impraticável verificar qual seria a intenção do contribuinte ao não repassar aos cofres públicos o valor cobrado pelo Fisco. Mas o comportamento reiterado caracterizaria a conduta dolosa. “É na constância e no caráter deliberado, volitivo e abusivo que se esconde a verdadeira essência de tais atos, os quais merecem perseguição estatal não como ilícito menor, mas como efetivo atentado à paz e à ordem social e econômica que é”, aponta o Sindicom.

No Supremo

O recurso estava na pauta da 1ª Turma do dia 12 de fevereiro deste ano. Dada a relevância da matéria e em nome da segurança jurídica, o ministro Luís Roberto Barroso determinou, na véspera, que o plenário da corte é quem deveria apreciá-la. Relator do caso, Barroso concedeu, de ofício, liminar para impedir qualquer pena contra os recorrentes até que a matéria seja julgada. Ele ainda marcou uma audiência com as partes para o dia 11 de março. O relator avaliou que empresários e Estado têm argumentos relevantes. Para ele, o ideal talvez seja fazer uma modulação para a aplicação da regra, com um marco temporal para a criminalização.

Em agosto, os estados enviaram informações de 2017 e 2018 sobre inadimplência ao relator. De acordo com o documento, em 2018 o Maranhão foi o estado em que a inadimplência atingiu o maior valor, de R$ 4,6 bilhões, devidos por 16.227 empresas. Outro estado bastante afetado pela inadimplência é o Rio de Janeiro: em 2018, 5.429 empresas deviam R$ 1 bilhão em ICMS declarado e não recolhido. Um ano antes, o montante ultrapassava os R$ 2,5 bilhões.

Já Santa Catarina, estado que trata como crime a inadimplência do ICMS há anos e que é a origem do caso que hoje tramita no STF, deixou de arrecadar mais de R$ 831 milhões em 2018 – no ano anterior, o valor era de R$ 1,3 bilhão.

O caso concreto

Em agosto de 2018, por seis votos a três, os ministros da 3ª Seção do STJ negaram habeas corpus a dois comerciantes que não pagaram valores declarados do tributo, depois de repassá-los aos clientes. Os empresários são proprietários de uma loja de produtos infantis em Santa Catarina. Prevaleceu o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, para quem a prática foi considerada apropriação indébita tributária, com pena de 6 meses a 2 anos de prisão, além de multa.

Até aquele momento, havia divergência entre as turmas da corte. Se, por um lado, os ministros da 5ª Turma consideravam o ato crime, por outro, os da 6ª decidiam em sentido oposto. O HC foi proposto ao STJ pela Defensoria Pública de Santa Catarina depois de o Tribunal de Justiça afastar sentença com absolvição sumária. No caso, o Fisco constatou que os denunciados apresentaram as declarações fiscais devidas, mas, em alguns meses de 2008, 2009 e 2010, não recolheram os valores apurados aos cofres públicos. O montante foi inscrito em dívida ativa e não foi pago nem parcelado.

O tributarista Igor Mauler Santiago atua na causa em nome de um dos recorrentes. Para ele, a lei fala em tributo cobrado por um particular contra outro. “É o caso do ICMS/ST, da contribuição de iluminação pública e do IOF sobre cheque especial. O ICMS é dívida do próprio contribuinte, não cabendo no conceito legal de apropriação. A prisão por dívida — grande ou pequena, isolada ou reiterada — é vedada pela Constituição. Se houvesse lei no sentido desejado pelo Sindicom, seria inconstitucional”, argumenta.

Como o que pede o sindicato não está previsto, Igor Mauler Santiago afirma que seria pedir ao Judiciário que institua um crime, à margem da lei, “o que o STF só admite naquelas situações especialíssimas onde há um mandado constitucional de incriminação: racismo, tortura, terrorismo e outras, nenhuma delas nem de longe relacionada à tributação”. Da mesma forma entende o criminalista Pierpaolo Bottini, que também advoga na causa. “Não existe modulação sobre legalidade. Ou o fato é crime ou não é. Não é função do Judiciário criar critérios ou parâmetros não previstos em lei para definir condutas criminosas”, afirma.

Do outro lado, representantes do Ministério Público e das secretarias de fazenda estaduais defendem que há concorrência desleal entre as empresas que recolhem ou não o imposto. Afirmam ainda que os estados não têm meios eficazes de cobrança, pois a execução fiscal geralmente não resulta na arrecadação do imposto devido, e o dinheiro traria uma situação de maior equilíbrio nas contas dos entes federativos.

Secretários de fazenda dizem que se trata de “um novo tipo de sonegação”, em que antes só se escondia os valores, mas hoje se declara e não se recolhe, e tolerar a prática é perdoar devedores contumazes.

Ana Pompeu – Repórter

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