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PARECER – Peça foi elaborada por Daniel Sarmento. STF decide na quarta se Fachin continua como relator do caso

3. Jota – DF (20/06/2017)

Leia parecer contrário à revisão de delação da JBS

Peça foi elaborada por Daniel Sarmento. STF decide na quarta se Fachin continua como relator do caso
Daniel Sarmento

19 de Junho de 2017″ 19 de Junho de 2017 – 17h46

PARECER

Colaboração Premiada. Competência do Relator para Homologação e Limites à sua Revisão Judicial Posterior. Proteção à Confiança, Princípio Acusatório e Proporcionalidade

SUMÁRIO: 1. A Consulta. 2. Breves notas sobre os acordos de colaboração premiada e a Constituição de 88. 3. A competência do relator para homologação dos acordos de colaboração premiada. Necessidade de atribuição de efeitos prospectivos à eventual alteração jurisprudencial sobre a matéria (técnica de prospective overruling) 4. Proteção à confiança legítima e proibição de comportamento contraditório: impossibilidade de desconstituição ou revisão judicial (em desfavor do colaborador) de acordos homologados de colaboração premiada. 5. Princípio acusatório, atribuição do PGR e impossibilidade jurídica de decisão judicial obrigando o MPF a oferecer denúncia. 6. Princípio da proporcionalidade e a pretensão à revisão ou anulação do acordo de colaboração premiada 7. Resposta aos quesitos.

A Consulta

Consulta-me o ilustre advogado Pierpaolo Bottini acerca de questões atinentes aos acordos de colaboração premiada firmados pelo Ministério Público Federal com Joesley Mendonça Batista, Wesley Mendonça Batista, Francisco de Assis e Silva, Florisvaldo Caetano de Oliveira, Valdir Aparecido Boni e Demilton Antônio de Castro (Petição n. 7.003), e homologados no Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Edson Fachin, em decisão do dia 11 de maio de 2017.

De acordo com o Consulente, os referidos acordos possuem dimensão inédita no país, envolvendo a delação de 1.893 agentes políticos – dentre os quais o próprio Presidente da República, 5 ministros de Estado, 6 senadores, 15 deputados federais, 4 governadores de Estado, 1 vice-governador, 1 prefeito municipal e 1 procurador da República –, e a entrega de elementos contundentes de prova, como gravações ambientais e telefônicas, planilhas de pagamentos, documentos bancários, registros de ligações e encontros, além de depoimentos em vídeo dos colaboradores. No âmbito do acordo, foi realizada, inclusive, ação controlada (arts. 8º e 9º da Lei n. 12.850/2013), da qual decorreu a obtenção de vários elementos relevantes de prova.

Diante da magnitude da colaboração, da contundência dos elementos de prova aportados, e da dimensão dos crimes que ela permitirá investigar, processar e eventualmente punir, as partes ajustaram a inclusão nos acordos de cláusula estabelecendo o benefício legal de não oferecimento de denúncia contra os colaboradores, nos termos do art. 4º, § 4º, da Lei 12.850/2013. Ocorre que, após a homologação dos acordos, surgiram diversos questionamentos atinentes à sua validade e à possibilidade de revisão do seu conteúdo pelo STF. Nesse cenário, formula o Consulente os seguintes quesitos:

a) No STF, de quem é a competência para homologar acordos de colaboração premiada? b) Considerando a jurisprudência e a prática já consolidada no STF, de homologação dos acordos de colaboração premiada pelo relator, seria constitucionalmente correta a eventual modificação retroativa dessa orientação, com a consequente anulação ou revisão do conteúdo de acordos já homologados? c) Ressalvada a hipótese prevista no art. 4º, § 11, da Lei n. 12.850/2013, é cabível a revisão ou anulação judicial, após a sua homologação, de acordo de colaboração premiada que preveja a imunidade do colaborador, nos termos do art. 4º, §4º, da Lei n. 12.850/2013, especialmente em se tratando de acordo submetido ao STF pelo Procurador-Geral da República? d) A eventual anulação ou revisão judicial dos acordos de colaboração premiada referidos nesta Consulta seria compatível com os princípios da proteção à confiança legítima e da proporcionalidade?

Para analisar as questões suscitadas pelo Consulente, é necessária uma breve introdução a respeito dos valores constitucionais envolvidos no instituto da colaboração premiada, o que passo a fazer no próximo item.

Breves notas sobre os acordos de colaboração premiada e a Constituição de 88

A colaboração premiada – popularmente conhecida como “delação premiada” – não é propriamente uma novidade na ordem jurídica brasileira. Pelo contrário, o instituto tem antigo precursor nas Ordenações Filipinas de 1603 – vigorantes no Brasil até a edição do Código Criminal de 1830 – que previam a concessão de favores legais, e até mesmo do perdão, para criminosos que, em determinados casos, denunciassem seus comparsas, levando a que estes fossem presos.[1]

De todo modo, após longo interstício, o instituto voltou a existir no ordenamento jurídico nacional, previsto em diversas leis esparsas, que disciplinaram modalidades de colaboração premiada:[2] Lei n. 8.072/90 (crimes hediondos); Lei n. 9.034/95 (lei revogada sobre organizações criminosas); Lei n. 9.296/1996 (extorsão mediante sequestro); Lei 9.807/1995 (colaboração nos crimes do sistema financeiro e contra a ordem tributária); Lei n. 9.613/1998 (lei de lavagem de capitais); Lei n. 9.807/99 (lei de proteção às testemunhas); Lei n. 11.343/2006 (lei de entorpecentes); e, finalmente, Lei n. 12.850/2013 (lei sobre organizações criminosas). Esta última foi a que regulou de modo mais detido a colaboração premiada, e é sob a sua égide que foram celebrados os acordos sobre os quais versa este Parecer.

A colaboração premiada traduz hipótese de emprego, no âmbito criminal, de sanção premial, instrumento pelo qual o Estado outorga certa vantagem visando a induzir a prática do comportamento desejado.[3] O instituto contempla um espaço de consensualidade no âmbito do Processo Penal. De acordo com Márcio Barra Lima, a colaboração premiada pode ser definida como “toda e qualquer espécie de colaboração com o Estado, no exercício da atividade de persecução penal, prestada por autor, coautor ou partícipe de um ou mais ilícitos penais, relativamente ao(s) próprio(s) crime(s) de que tenha tomado parte ou pertinente a outro(s) realizado(s) por terceiros, não necessariamente cometidos em concurso de pessoas, objetivando, em troca, benefícios penais estabelecidos em lei”.[4]

Nos termos expressos da Lei n. 12.850/2013, a colaboração premiada constitui “meio de obtenção de prova”, e não propriamente uma prova. O ponto foi esclarecido pelo STF, no denso voto proferido pelo Min. Dias Toffoli no HC 127.483, em que se ressaltou que “enquanto o acordo de colaboração é meio de obtenção de prova, os depoimentos propriamente ditos do colaborador constituem meio de prova, que somente se mostrarão hábeis à formação do convencimento judicial se vierem a ser corroborados por outros meios idôneos de prova”.

O instituto – ou figuras similares a ele – é empregado em diversas outras democracias constitucionais, como Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, Estados Unidos, Reino Unido, Argentina, Chile e Colômbia.[5] Tratados internacionais de que o Brasil é signatário estimulam a sua adoção: Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo, promulgada pelo Decreto n. 5015/2004), em seu art. 26; e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida, promulgada pelo Decreto n. 5.687/2006), em seu artigo 37.

A colaboração premiada inspira-se, em síntese, na busca de efetividade da persecução penal, no afã de aprimorar a proteção aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Criminal. A premissa subjacente à adoção do instituto é a de que, para fazer frente à criminalidade organizada, que se vale de técnicas cada vez mais sofisticadas, afigura-se necessário o recurso a instrumentos de investigação também mais inteligentes e flexíveis, diante da insuficiência dos métodos tradicionais.[6] A colaboração visa a superar, dentre outros problemas, a cultura de supressão de provas que marca a criminalidade organizada, bem como o código de silêncio (omertà), que ela muitas vezes impõe.[7]

Assim, por voltar-se ao enfrentamento e prevenção do crime, a colaboração premiada se liga diretamente a bem jurídico altamente relevante, tutelado pela Constituição Federal: a segurança pública (art. 5º, caput, e 144 CF). Nesse sentido, vale recordar o voto proferido pelo Min. Carlos Ayres Britto, no julgamento do HC 90.688, em que se salientou:

“E vejo sempre a persecutio criminis ou o combate à criminalidade num contexto de segurança pública, que é matéria expressamente regrada pela Constituição no artigo 144, em que diz que a segurança pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, visando à incolumidade das pessoas e do patrimônio. E o combate à criminalidade se dá exatamente nesse contexto.

Como a segurança pública não é só dever do Estado, mas é direito e responsabilidade de todos, situo, nesse contexto, como constitucional a lei que trata da delação premiada.

O delator, no fundo, à luz da Constituição, é um colaborador da justiça.”[8]

E não é só. No Brasil contemporâneo, a colaboração premiada tem desempenhado papel essencial no combate ao crime do colarinho branco, auxiliando a desvelar, para os olhos de uma sociedade incrédula e indignada, quadro mais que desalentador, de corrupção endêmica atingindo os mais altos escalões do Estado, e de insidiosa promiscuidade entre os detentores do poder econômico e o sistema político-administrativo – elementos que operam invariavelmente em detrimento do bem-comum, do interesse social e dos direitos dos excluídos. A colaboração vem sendo empregada no combate a uma das mazelas que compromete a consolidação do Estado de Direito no Brasil: “a imunidade perante a lei, para aqueles que ocupam uma posição extremamente privilegiada na sociedade”.[9]

Nesse sentido, o instrumento é fundamental para prevenção e enfrentamento de práticas nefastas que não só violam os valores mais básicos da República, como também drenam os cofres públicos, dificultando o adequado desempenho pelo Estado dos seus papéis constitucionais mais relevantes, como o atendimento de direitos básicos da população à saúde, educação, moradia e previdência social, que sempre dependem de recursos escassos. Em outras palavras, a colaboração premiada não é apenas mecanismo para combate à criminalidade organizada. Trata-se também de instituto que tutela direitos fundamentais, ao tornar mais eficientes a prevenção e o enfrentamento de práticas que violam esses direitos ou prejudicam a sua efetivação.

Com efeito, desde o advento do Estado Social, compreende-se que as ofensas estatais aos direitos fundamentais não se resumem às intervenções excessivas ou indevidas sobre a esfera individual. Elas também ocorrem quando o Estado negligencia ou não desempenha a contento seu dever de adotar posturas ativas, de proteção e promoção dos direitos fundamentais. A teoria jurídica contemporânea reconhece que os direitos fundamentais não são meros direitos subjetivos negativos, possuindo também uma dimensão objetiva, na medida em que salvaguardam bens jurídicos e valores relevantes, que devem ser promovidos e protegidos diante de riscos e ameaças. Afirma-se, portanto, a presença de deveres de proteção estatal em relação aos direitos fundamentais, que se estendem a todos os poderes públicos, inclusive à função jurisdicional.[10] Nas palavras de José Carlos Vieira de Andrade, na contemporaneidade “passou a dar-se relevo à existência de deveres de proteção dos direitos fundamentais por parte do Estado, designadamente perante terceiros: a vinculação dos poderes estaduais aos direitos fundamentais não se limitaria ao cumprimento do dever principal respectivo (de abstenção, ou ainda de prestação ou de garantia, conforme o tipo do direito do particular), antes implicaria o dever de promoção e de proteção dos direitos perante quaisquer ameaças, a fim de assegurar a sua efetividade”.[11]

Mesmo no delicado domínio do Direito Penal incidem tais deveres de proteção. Como asseverou Peter Häberle, “onde a liberdade do indivíduo não fosse assegurada penalmente contra as ameaças dos abusos da liberdade de outros, não se poderia mais falar de uma liberdade ‘para a vida social em conjunto’. O mais forte impor-se-ia. (…) Sem a existência do direito penal material e formal, a comunidade cultural pensada na Constituição regrediria a um estágio pré-civilizatório. Sem normas penais (…) estaria ameaçada a própria existência da comunidade que a seu turno, é constitutiva para os direitos fundamentais”.[12] Na ordem constitucional brasileira, essa incidência é corroborada pela presença, no capítulo da Constituição que trata dos direitos fundamentais, de mandados expressos de criminalização (art. 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, CF).[13] E a ideia da proteção de direitos humanos pelo uso do Direito Penal – sempre de modo proporcional, como ultima ratio – permeia, por exemplo, toda a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Europeia de Direitos Humanos, que já condenaram diversos Estados (inclusive o Brasil, no caso da CIDH) por não protegerem eficazmente, por meio do Direito Penal, os direitos fundamentais dos seus cidadãos.[14]

A ofensa aos deveres de proteção dos direitos fundamentais se dá quando a atuação do Estado se revela insuficiente para a sua garantia. Fala-se, em tais casos, em ofensa à proporcionalidade como vedação à proteção estatal insuficiente.[15] Tal faceta do princípio da proporcionalidade é amplamente reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,[16] que a emprega inclusive em matéria penal.

Essa faceta da proporcionalidade, de inequívoca relevância para a hipótese tratada neste Parecer, proscreve as interpretações das normas sobre o instituto da colaboração premiada que o fragilizem em demasia, impedindo que desempenhe a contento o seu papel de combate ao crime organizado[17] – papel este que, ao fim e ao cabo, conecta-se também à salvaguarda de direitos fundamentais e de outros valores constitucionais relevantes.

Não se ignora a existência de críticas contundentes – e respeitáveis –, aqui como alhures, ao instituto da colaboração,[18] tida por alguns como imoral, especialmente por estimular “traições” entre autores de crimes. Considero, todavia, que não existe qualquer imoralidade intrínseca nos benefícios penais dessa natureza, desde que os “prêmios” se revelem hábeis à prevenção ou repressão de outros delitos que lesariam ainda mais intensamente a bens jurídicos constitucionalmente valiosos; e – ainda mais importante – que sua concessão não cause lesão desproporcional a direitos fundamentais dos próprios colaboradores ou de terceiros delatados.

É certo que repugnaria à nossa ordem constitucional democrática a imposição ao agente, por razões de política criminal, de sanções que excedessem o grau de culpabilidade revelado na prática do fato delituoso. Fazê-lo seria tratar o acusado como mero meio, e não como fim em si mesmo, em contrariedade ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF).[19] Contudo, os princípios da culpabilidade e da dignidade da pessoa humana não podem ser invocados em desfavor do agente, para impedir o abrandamento da sua pena, que seja ditada por razões pragmáticas, ligadas ao combate à criminalidade.[20]

Portanto, não se trata de trocar um Processo Penal centrado nas “garantias”, por outro cujo foco seja a “eficiência” no combate ao crime. Cuida-se, isso sim, de perseguir simultaneamente, de forma proporcional, esses dois objetivos, pois ambos possuem sólido lastro constitucional. Vale dizer, trata-se de, sem compromisso das garantias constitucionais inerentes ao devido processo legal, cujo respeito é incontornável no Estado de Direito, buscar-se a eficiência na investigação e persecução penal – especialmente de crimes do colarinho branco, tradicionalmente impunes no Brasil –,[21] em prol da proteção de bens jurídicos constitucionalmente valiosos.

Certo é que na jurisprudência do STF a validade constitucional da colaboração premiada é ponto pacífico. Como consignou o Min. Teori Zavascki, ao decidir a Pet. n. 5.244, “a constitucionalidade da colaboração premiada, instituída no Brasil por norma infraconstitucional na linha das Convenções de Palermo (art. 26) e Mérida (art. 37), ambas já submetidas a procedimento de internalização (Decretos 5.015/2004 e 5.687/2006, respectivamente), encontra-se reconhecida por esta Corte (HC 90688, Relator(a): min. RICARDO LEWANDOWSKI. Primeira Turma, julgado em 12/02/2008 (…) desde antes da entrada em vigor da Lei 12.850/2013”. [22]

De todo modo, em nossa ordem constitucional, como já assentado, mesmo medidas estatais voltadas à relevante finalidade de combate à criminalidade organizada e à corrupção devem respeitar os direitos fundamentais, em sua faceta negativa. Trata-se de variável extremamente importante, que compõe, com absoluto destaque, o pano de fundo constitucional no tema da colaboração premiada.

Em outras palavras, embora as colaborações premiadas não configurem, em si mesmas, violações a direitos fundamentais, o seu regime jurídico deve respeitar escrupulosamente esses direitos, tanto dos agentes colaboradores como dos terceiros que forem por eles delatados. Pode-se dizer, portanto, que os direitos fundamentais figuram nos dois polos da equação constitucional que subjaz à colaboração premiada: o instituto não pode ser delineado e aplicado de forma a violar direitos fundamentais de colaboradores ou de delatados, mas tampouco pode ser debilitado ao ponto de desproteger os direitos fundamentais da população, que são vulnerados pelo crime organizado e pela corrupção.[23]

Não seria possível abordar aqui, de forma aprofundada, os direitos fundamentais dos colaboradores e delatados diante do acordo de colaboração premiada. Cabem, porém, alguns rápidos registros sobre a matéria.[24]

Quanto aos colaboradores, é evidente que não se afigura legítimo o uso de qualquer instrumento de coerção visando a forçá-los à celebração de acordo, que sempre pressupõe a vontade livre e informada. Nessa linha, é absolutamente abusiva, por exemplo, a imposição de injustificada restrição à liberdade, como a prisão provisória, com o fito de compelir o investigado ou acusado a colaborar na persecução penal, como já asseverou a jurisprudência do STF.[25] Isso, contudo, não torna necessariamente inválida a colaboração premiada celebrada por pessoa presa. Não fosse assim, criar-se-ia odiosa discriminação contra os presos, com violação adicional aos seus direitos fundamentais.[26]

De grande importância também é o direito à segurança dos colaboradores, especialmente em face dos integrantes da organização criminosa que eles vierem a delatar. Tal direito foi adequadamente protegido pela Lei n. 12.850/2013, por meio de garantias com as de “usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica”, “ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes” e “cumprir pena em estabelecimento penal diversos dos demais corréus ou condenados” (art. 5º, incisos I, III e VI).

Outro direito dos colaboradores, de máxima relevância para o escopo deste Parecer – ao qual se voltará mais à frente –, é o de que sejam honrados pelo Estado-juiz os termos do acordo homologado de colaboração premiada. Tal direito tem ligação profunda com o princípio de proteção à confiança legítima – que será mais detidamente explorado abaixo. Afinal, ao celebrar o acordo, o colaborador abre mão de exercitar seu direito constitucional de não se autoincriminar (nemo tenetur se detegere), e revela fatos desabonadores que podem gerar graves consequências negativas contra si – não apenas sob o prisma estritamente jurídico, como também econômico, social etc – fiando-se na expectativa, alimentada pelo Estado, de que irá efetivamente fruir os benefícios ajustados, desde que cumpra as obrigações a que se vinculou. Assim, impõe-se o respeito estatal aos termos do acordo de colaboração homologado, no que concerne ao gozo dos benefícios prometidos ao colaborador, desde que satisfeitas por este as obrigações devidamente acordadas. Foi o que consignou o STF na própria ementa do HC 127.483:[27] “Sanção premial. Direito subjetivo do colaborador caso sua colaboração seja efetiva e produza os resultados almejados. Incidência dos princípios da segurança jurídica e proteção da confiança”.

Os direitos fundamentais dos delatados também devem ser respeitados pela colaboração premiada. Tais indivíduos devem ter ampla possibilidade de se defender diante das acusações feitas pelo colaborador, podendo contrastar todas informações e elementos de prova por ele aportados – o que inclui a prerrogativa de confrontar em juízo as suas declarações incriminatórias. Ademais, deve ser-lhes assegurado, nas palavras do Min. Celso de Mello, “pleno acesso aos dados probatórios que, já documentados nos autos (…), veiculam informações que possam revelar-se úteis ao conhecimento da verdade real e à condução da defesa da pessoa investigada ou processada, ainda que o procedimento de persecução, ainda que o procedimento da persecução penal esteja submetido a regime de sigilo”.[28] Não bastasse, eventuais condenações criminais não podem se basear apenas nas declarações do agente colaborador – como, de resto, prevê expressamente o art. 4º, § 16, da Lei n. 12.850/2013 – carecendo sempre de corroboração por outras provas.[29] Como salientou Gustavo Badaró, “a delação ‘nua’, isto é, sem um elemento de confirmação é, por si, inidônea para justificar uma condenação”.[30]

Essa exigência incontornável de respeito aos direitos fundamentais dos delatados não importa, contudo, no reconhecimento do seu direito de impugnar acordos de delação premiada de que não são partes. O direito ao contraditório e à ampla defesa devem ser por eles exercidos, isto sim, nos processos judiciais ou procedimentos de investigação a que tais indivíduos estejam sendo – ou venham a ser – submetidos. É que, da mera celebração do acordo de colaboração, não resulta qualquer abalo à esfera jurídica dos delatados, que só pode ser imposto em processos ou procedimentos em que eles mesmos sejam réus ou investigados.[31]Daí porque, os delatados sequer possuem interesse jurídico em pleitear a invalidação do acordo.

A impossibilidade de impugnação por terceiros do acordo de colaboração é matéria pacífica na jurisprudência tanto do STF como do STJ. Na Suprema Corte, veja-se a ementa do acórdão proferido pelo Plenário no julgamento do HC 127.483:[32]

“6. Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no ‘relato da colaboração e seus possíveis resultados’ (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13).
De todo modo, nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados – no exercício do contraditório – poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor.”

Na mesma linha, apontam diversas decisões unânimes proferidas pela 2ª Turma do STF, como o Ag. Reg. na Petição 5.885, Relator Min. Teori Zavascki, em que se consignou:

“Conforme assentado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, é incabível pedido de terceiro estranho à colaboração premiada, para revogação de benefícios ajustados com delatores, porque a avaliação da veracidade das declarações somente pode ocorrer no âmbito das ações penais eventualmente propostas”[33]

Em idêntico sentido, o Min. Celso de Mello já proferiu duas recentes decisões monocráticas em que se discutiu a legitimidade de impugnações feitas por delatados aos mesmos acordos de colaboração premiada sobre os quais versa este Parecer. Em ambas as decisões, a ementa registra: “Ilegitimidade ativa de terceiros para efeito de impugnação judicial do acordo de delação premiada. ‘Res inter alios acta’. Doutrina. Precedentes (Pleno e 2ª Turma)”.[34]

Tal orientação encontra-se também sedimentada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em decisões unânimes das duas turmas que cuidam naquela Corte de matéria penal:

“Apenas aqueles que celebram os acordos de delação premiada – ou seja, os colaboradores e o Ministério Público Federal – detém legitimidade para questionar os seus termos. Como o paciente não constitui nenhuma das partes que assinaram os acordos homologados judicialmente, poderá impugná-los nos autos das ações penais em que estes, porventura, tiverem sido utilizados como provas.”[35]

“1. O acordo de delação premiada, negócio jurídico personalíssimo celebrado entre o Ministério Público e o réu colaborador, gera direitos e obrigações apenas para as partes, em nada interferindo na esfera jurídica de terceiros, ainda que referidos no relato da colaboração.
Assim sendo, supostos coautores ou partícipes do réu colaborador nas infrações desveladas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no ‘relato da colaboração e seus possíveis resultados’ (art. 6º, I, Lei nº 12.850/13), não possuem legitimidade para contestar a validade do acordo. Não há direito dos ‘delatados’ a participar da toada de declarações do réu colaborador, sendo os princípios do contraditório e da ampla defesa garantidos pela possibilidade de confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor.”[36]

Assentadas essas premissas, é possível adentrar nas questões específicas suscitadas pelo Consulente.

A competência do relator para homologação dos acordos de colaboração premiada. Necessidade de atribuição de efeitos prospectivos à eventual alteração jurisprudencial sobre a matéria (técnica de prospective overruling).

O art. 4º, §7º, da Lei n. 12.850/2013 prevê a homologação do acordo de colaboração premiada pelo “juiz”. Reza o preceito em questão:

“§7º. Realizado o acordo na forma do §6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.”

O legislador cuidou da situação mais frequente, de acordo de colaboração homologado por magistrado de 1º grau, não fazendo referência à hipótese de pacto firmado no contexto de ação penal, inquérito ou investigação criminal submetido a tribunal. Nada obstante, no STF, sempre se entendeu que tais homologações deveriam ser apreciadas pelo relator. Dezenas de acordos foram homologados pelo Min. Teori Zavascki e pela Min. Carmen Lúcia com base nesse entendimento, que até então jamais fora problematizado.

Porém, em recente entrevista concedida a veículo de comunicação social,[37] o Min. Gilmar Mendes levantou a tese de que os acordos de colaboração premiada deveriam ser homologados pelas turmas ou pelo próprio plenário do STF, pois tais colegiados é que corresponderiam ao “juiz” referido no art. 4º, § 7º, da Lei n. 12.850/2013, e não o relator.

Contudo, e com todas as vênias, a competência para homologação é, sim, do relator, por diversas razões convergentes.

Primeiramente, verifica-se que a competência do relator para homologar acordos de colaboração premiada decorre de disposição expressa de lei. Com efeito, ao disciplinar as ações penais que tramitam perante o STJ e STF, a Lei n. 8.038/1990 estabelece que, nas ações penais originárias, as atribuições que a legislação processual conferiu aos juízes singulares serão exercidas pelo ministro relator. Confira-se, a propósito, o teor do art. 2º do referido diploma legal:

“Art. 2º – O relator, escolhido na forma regimental, será o juiz da instrução, que se realizará segundo o disposto neste capítulo, no Código de Processo Penal, no que for aplicável, e no Regimento Interno do Tribunal.

Parágrafo único – O relator terá as atribuições que a legislação processual confere aos juízes singulares.”

Desse modo, tendo em vista que a legislação processual de regência da colaboração premiada atribui ao “juiz” a prerrogativa de homologar os acordos dessa natureza, não há dúvida de que, no STF, essa competência cabe ao relator dos feitos, e não ao colegiado.

Esse entendimento é corroborado pelos poderes instrutórios do relator, previstos no Regimento Interno do STF. O art. 21, incisos I e II, do RISTF estabelece que ao relator cabe ordenar e dirigir o processo, competindo-lhe determinar monocraticamente a realização de diligências para obtenção de prova. Tendo em vista que a Lei n. 12.850/2013 insere a colaboração premiada entre os “meios de obtenção de prova”, entende-se que sua homologação se insere no rol de poderes instrutórios conferidos ao relator no âmbito da Suprema Corte.

O último raciocínio foi, inclusive, adotado pelo STF no julgamento do HC n. 127.483/PR, que figura como leading case a respeito da homologação de acordos de delação premiada. Confira-se, a propósito, fragmento da ementa do julgado, de relatoria do Min. Dias Toffoli:

“2. Nos termos do art. 21, I e II, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o relator tem poderes instrutórios para ordenar, monocraticamente, a realização de quaisquer meios de obtenção de prova (v.g., busca e apreensão, interceptação telefônica, afastamento de sigilo bancário e fiscal). 3. Considerando-se que o acordo de colaboração premiada constitui meio de obtenção de prova (art. 3º da Lei nº 12.850/13), é indubitável que o relator tem poderes para, monocraticamente, homologá-lo (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13).” [38]

Não bastasse, mesmo que não houvesse dispositivos específicos a respeito da competência para homologação de acordos de delação premiada – e eles existem –, a mesma conclusão adviria da aplicação analógica da regra vigente no Processo Civil.[39] É que o art. 932, inciso I, do Novo Código de Processo Civil, que trata do processamento de ações nos Tribunais, estabelece que incumbe ao relator “dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova, bem como, quando for o caso, homologar autocomposição das partes”.

Por outro lado, sabe-se que a homologação do acordo de colaboração se limita à verificação da sua “regularidade, legalidade e voluntariedade”, não sendo cabível, na ocasião, o exame sobre a conveniência e oportunidade do acordo, nem tampouco qualquer análise aprofundada sobre o conteúdo das cláusulas pactuadas, até por conta do princípio acusatório e da exigência de imparcialidade jurisdicional.[40] Trata-se, portanto, de decisão singela, que, nas palavras do Min. Celso de Mello, encerra juízo “de estrita delibação”, no qual não cabe “incursionar no exame aprofundado das cláusulas pactuadas no acordo de delação premiada”.[41]

Cuida-se, assim, de decisão que, pela sua própria natureza, deve competir ao relator e não aos órgãos colegiados do STF. Transferir essa competência para os órgãos colegiados, diante do notório contexto de sobrecarga do STF e de demora na prestação jurisdicional penal pela Corte, poderia produzir resultados altamente negativos, ampliando os riscos de prescrição e de impunidade para criminosos poderosos. A mudança exegética não se compatibilizaria com o dever de proteção dos direitos fundamentais, abordado no item anterior, do qual se extrai vetor constitucional de interpretação das normas sobre colaboração premiada, incompatível com exegeses que debilitem o instituto, impedindo-o de exercer a contento o seu papel, o qual envolve a salvaguarda de direitos ameaçados pela criminalidade organizada e pela corrupção.

Finalmente, o respeito aos precedentes do STF é argumento adicional em favor da manutenção do entendimento vigente sobre a competência homologatória do relator. Afinal, como já destacado acima, há dezenas de decisões homologatórias de colaborações premiadas proferidas pelo STF – sempre pelo(a) relator(a) do feito –, e a Corte, ao se debruçar sobre o assunto no Plenário, reconheceu a correção desse entendimento (HC n. 127.483/PR, Rel. Min. Dias Toffoli).

O respeito aos precedentes, mesmo nos sistemas jurídicos romano-germânicos como o brasileiro,[42] se justifica por várias razões: igualdade, por ensejar que hipóteses idênticas recebam o mesmo tratamento do Poder Judiciário, sem casuísmos injustificados; segurança jurídica, ao gerar maior previsibilidade para o jurisdicionado, protegendo a sua confiança legítima; e eficiência, por uniformizar orientações jurisprudenciais e poupar tempo e energia dos atores judiciais.[43] Não por outra razão, o Supremo tem enfatizado a importância de que os seus precedentes sejam observados, mesmo quando desprovidos de efeitos vinculantes em sentido estrito.[44]

É induvidoso que os precedentes do STF devem exercer influência não só sobre as demais instâncias, como também sobre os julgamentos da própria Corte.[45] É que os tribunais devem manter coerência com a sua jurisprudência pretérita, inclusive para prestigiar as legítimas expectativas sociais que se consolidam com base nas suas decisões, as quais são amparadas pelo direito à segurança jurídica. Não se questiona – é claro – a possibilidade de que a Suprema Corte reveja seus posicionamentos. Porém, a existência de prática reiterada e de jurisprudência do próprio Tribunal em determinada matéria – presentes no caso subjacente a este Parecer – é elemento adicional, que deve ser sopesado, quando se cogitar em eventual superação do precedente.[46]

Mas se, por absurdo, resolvesse o STF alterar sua correta orientação sobre a competência do relator, a hipótese seria de emprego da técnica de prospective overruling,[47] de modo a preservar a validade das decisões homologatórias já proferidas. Nessa hipótese, o emprego dessa técnica de reversão de precedentes estaria plenamente justificado, seja pela proteção à segurança jurídica, seja pela tutela do interesse público de que não se comprometam as investigações de corrupção e crime organizado já iniciadas, a partir de acordos de colaboração homologados monocraticamente.

A propósito da necessidade de a mudança de jurisprudência preservar a segurança jurídica, não incidindo sobre o passado em desfavor dos particulares, valem as observações de Luís Roberto Barroso:

“Em outras palavras: é o Judiciário, em última análise, a instância que irá decidir quais direitos e obrigações foram criados pelos dispositivos legais. Dentro dessa linha de raciocínio, é natural que o princípio da segurança jurídica se dirija também à atividade jurisdicional. Mesmo porque, se a cada momento o Judiciário pudesse modificar o seu entendimento sobre a legislação em vigor e atribuísse às novas decisões efeitos retroativos, instalar-se-ia a maior insegurança jurídica. Nada do que ocorreu no passado poderia ser jamais considerado definitivo pelos particulares, já que, a qualquer momento, a questão poderia ser revista por um novo entendimento judiciário. É evidente que uma construção nesse sentido seria totalmente incompatível com a ordem constitucional brasileira.(…)

É certo que o STF, assim como qualquer outro juízo ou tribunal, não está impedido de modificar sua posição acerca de determinada questão, seja para se adaptar a fatos novos, seja simplesmente para rever sua interpretação anterior. Ao fazê-lo, entretanto, o STF, a exemplo dos demais Poderes Públicos, está vinculado ao princípio constitucional da segurança jurídica, por força do qual posição jurídica dos particulares que procederam de acordo com a orientação anteriormente adotada pela Corte na matéria deve ser preservada.”[48]

Destaque-se, por relevante, que o STF também vem reconhecendo a necessidade de preservação dos fatos passados da incidência de nova orientação jurisprudencial, valendo-se da técnica da prospective overruling em nome da proteção da segurança jurídica e do interesse público. Nesse sentido, por exemplo, no importante julgamento em que, alterando sua jurisprudência anterior, a Corte Suprema afirmou que o afastamento injustificado de deputados federais dos seus partidos enseja a perda dos respectivos mandatos, restou assentado:

“REVISÃO JURISPRUDENCIAL E SEGURANÇA JURÍDICA: A INDICAÇÃO DE MARCO TEMPORAL DEFINIDOR DO MOMENTO INICIAL DE EFICÁCIA DE NOVA ORIENTAÇÃO PRETORIANA. Os precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal desempenham múltiplas e relevantes funções no sistema jurídico, pois lhes cabe conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais nas matérias por eles abrangidas, atribuir estabilidade às relações jurídicas constituídas sob a sua égide e em decorrência deles, gerar certeza quantos aos efeitos decorrentes dos atos praticados de acordo com esses mesmos precedentes e preservar, assim, em respeito à ética do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações do Estado. – Os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas no passado e anteriores ao marco temporal definido pelo próprio Tribunal. Doutrina. Precedentes. – A ruptura de paradigma resultante de substancial revisão de padrões jurisprudenciais, com o reconhecimento do caráter partidário do mandato eletivo proporcional, impõe, em respeito à exigência de segurança jurídica e ao princípio da proteção da confiança legítima dos cidadãos, que se defina o momento a partir do qual terá aplicabilidade a nova diretriz hermenêutica. – Marco temporal que o Supremo Tribunal Federal definiu na matéria ora em julgamento: data em que o Tribunal Superior Eleitoral apreciou a Consulta nº 1.398/DF”.[49]

Por todas essas razões, o STF deve manter a orientação de que a competência para homologação dos acordos de colaboração premiada é do relator do processo ou procedimento, e não dos órgãos colegiados da Corte. Contudo, caso a Corte decida rever essa correta orientação, a mudança deve se aplicar apenas a casos futuros, referentes a acordos de colaboração que ainda não foram homologados.

Proteção à confiança legítima e proibição de comportamento contraditório: impossibilidade de desconstituição ou revisão judicial (em desfavor do colaborador) de acordos homologados de colaboração premiada

Os princípios da proteção constitucional à confiança legítima e de proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprium) assumem relevância ímpar no debate sobre os acordos de colaboração premiada. A seguir, far-se-á breve exposição sobre tais princípios, para, ao final deste item, aplicá-los à questão da revisão ou desconstituição de acordos já homologados.

Como se sabe, a proteção à segurança jurídica é fundamental para o Estado de Direito, uma vez que, para que os particulares possam conduzir as suas atividades de forma autônoma e responsável, é essencial que tenham como antecipar as consequências jurídicas advindas dos seus próprios atos. E a tutela da segurança jurídica em nossa ordem constitucional não se esgota na observância de garantias expressamente positivadas no Texto Magno, como a proteção do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF) e a irretroatividade das leis penais e tributárias (arts. 5º, XXXIX, e 150, III, “a”, CF). Uma das mais importantes emanações da segurança jurídica, implicitamente assegurada pela Lei Maior, é o princípio da proteção à confiança legítima, que representa a sua faceta subjetiva.[50] Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:

“(…) a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos do poder público. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos próprios actos”.[51]

O princípio da proteção à confiança visa a preservar expectativas legítimas dos particulares que, agindo de boa-fé, tenham se fiado na manutenção dos atos e das orientações estatais. Como bem resumiu Gustavo Binenbojm, “tendo agido subjetivamente de boa-fé (boa-fé subjetiva) confiando numa situação digna de confiança gerada pelo Poder Público (standard de comportamento leal e médio que se aproxima da boa-fé objetiva) e tendo orientado a sua conduta em conformidade com essas premissas, não é justo (…) que essa confiança legítima do particular seja frustrada por uma mudança de posição do Estado”.[52]

À semelhança do que se dá em outras democracias constitucionais, o princípio da proteção à confiança legítima vem sendo amplamente reconhecido no Brasil. É vasta, nesse particular, a jurisprudência da Suprema Corte,[53] da qual são exemplos os precedentes abaixo:

“Admissões realizadas por processo administrativo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e decisão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão de liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público.”[54]

“Ora, assim como no direito alemão, francês, espanhol e italiano, o ordenamento jurídico brasileiro revela, na expressão de sua unidade sistemática, e, na sua aplicação, vem reverenciando os princípios ou subprincípios conexos da segurança jurídica e da proteção da confiança, sob a compreensão de que nem sempre se assentam, exclusivamente, na observância da pura legalidade ou das regras stricto sensu. (…).

A fonte da proteção da confiança está aí, na boa-fé do particular, como norma de conduta e, em consequência, na ratio juris da coibição do venire contra factum proprium, tudo o que implica vinculação jurídica da Administração Pública às suas próprias práticas, ainda quando ilegais na origem. O Estado de Direito é sobretudo o Estado de confiança.”[55]

De acordo com a doutrina, para que se caracterize afronta ao princípio da proteção da confiança legítima, é necessária a presença simultânea de quatro elementos: (i) que haja uma base objetiva para a confiança; (ii) que a confiança exista subjetivamente para o particular; (iii) que este pratique atos com base nessa confiança; e (iv) que a confiança seja posteriormente frustrada por ato contraditório do Estado.[56]

Tal como se dá com a confiança legítima, também vigora em nossa ordem constitucional o princípio implícito de proibição do comportamento contraditório, igualmente conhecido pela sua denominação latina: nemo potest venire contra factum proprium. O princípio em questão, que tem forte relação com a tutela da confiança legítima, volta-se contra a mudança de comportamento de um agente quando ela implicar frustração da confiança legítima de terceiros.[57] Como consignou Anderson Schreiber, o “princípio proíbe comportamentos contraditórios apenas na medida em que tais comportamentos possam romper a legítima confiança depositada por outrem na conservação de um comportamento inicial”, tratando-se, assim, de “um instrumento de consideração dos interesses de todos aqueles sobre quem um comportamento de fato possa vir a repercutir”.[58]

É indiscutível a incidência desse princípio também nas relações jurídicas em que figure o Estado.[59] Aliás, nestas relações ele deve incidir com ênfase especial, haja vista a sua íntima relação com a moralidade administrativa (art. 37, caput, CF), que exige dos Poderes Públicos o mais estrito respeito à boa-fé dos particulares. Como assinalou Luís Roberto Barroso, trata-se de impor ao Estado “o dever de agir com coerência e lógica, respeitando-se as legítimas expectativas dos administrados, criadas em decorrência da observação, por estes, dos comportamentos da própria Administração”.[60]

Vale destacar que a jurisprudência do STF e do STJ vem reconhecendo a eficácia normativa do princípio da proibição do comportamento contraditório, e estendendo a sua incidência aos Poderes Públicos. Nessa linha, veja-se os seguintes precedentes – o primeiro do STF e os dois seguintes do STJ:

“Cabe enfatizar, de outro lado, que nenhum ato de Comissão de Concurso pode introduzir, no âmbito das relações de direito administrativo entre o Poder Público e os candidatos inscritos no certame, um fator de instabilidade e de incerteza, apto a frustrar, de maneira indevida, legítimas aspirações dos referidos candidatos, especialmente se se considerar a cláusula geral do “nemo potest venire contra factum proprium”, que, além de consagrar a proibição do comportamento contraditório, traduz consequência derivada dos princípios da confiança e da boa-fé objetiva, que visam obstar, nas relações jurídicas, práticas incoerentes por parte daqueles que incutem em outrem, em razão de conduta por eles adotada (no caso, o Poder Público), expectativas legítimas que, no entanto, vêm a ser posteriormente contrariadas em função de uma inesperada mudança de atitude conflitante com a conduta inicial.”[61]

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TÍTULO DE PROPRIEDADE OUTORGADO PELO PODER PÚBLICO, ATRAVÉS DE FUNCIONÁRIO DE ALTO ESCALÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE PELA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO, OBJETIVANDO PREJUDICAR O ADQUIRENTE: INADMISSIBILIDADE (…)

I- Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria Administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo creditur turpitudinem suam allegans” [62]

“Embora a INFRAERO detivesse plenas possibilidades de unilateralmente não prorrogar o contrato de concessão, sob a proeminência do interesse público, corporificado pela conveniência e discricionariedade, não poderia infundir na recorrida a legítima expectativa de prorrogar por mais 3 (três) anos tão-somente para que aquela aceitasse a celebração do contrato por 8 (oito) meses e 19 (dezenove) dias.

A teoria dos atos próprios ou venire contra factum proprium tem por escopo exatamente coibir práticas dessa natureza, ou seja, evitar que o contratante que promova determinada expectativa, munido da prevalência de congregar em suas mãos bens de interesse da outra parte, em seguida pratique atos inequivocamente incompatíveis com os anteriormente praticados”.[63]

Assentadas essas premissas, cumpre aplicá-las ao caso.

Não há dúvida de que os princípios de proteção à confiança e de vedação ao comportamento contraditório incidem sobre o instituto da colaboração premiada. Ao celebrar o acordo – que o STF definiu como verdadeiro negócio jurídico processual (HC 127.483, Rel. Min. Dias Toffoli) –, o agente colaborador sempre parte da premissa de que o Estado honrará os compromissos assumidos, desde que ele também honre os seus.

Com base nesse pressuposto, ele renuncia ao exercício do privilégio constitucional de não se autoincriminar, desvelando aspectos altamente negativos de sua conduta passada – com todos os prejuízos materiais e imateriais daí decorrentes. Nas palavras do Ministro Carlos Ayres Britto, o delator “assume uma postura sobremodo incomum: afastar-se do próprio instinto de conservação ou autoacobertamento, tanto individual quanto familiar, sujeito que fica a retaliações de toda ordem”.[64] Além disso, o agente colaborador faz revelações sobre terceiros, que podem atrair fortes reações dos delatados, o que o sujeita a graves riscos de variada natureza. É evidente que esse comportamento dos agentes colaboradores não é motivado – ou pelo menos não é motivado apenas – por arrependimento. Há também uma expectativa legítima de fruição da sanção premial definida no acordo de colaboração.

No caso em discussão, fazem-se presentes todos os pressupostos para aplicação do princípio da proteção à confiança, acima ressaltados: (i) a base da confiança é o acordo, que foi celebrado com o próprio Procurador-Geral da República e homologado judicialmente por Ministro do STF; (ii) a presença subjetiva da confiança se evidencia pela conduta dos agentes colaboradores, no cumprimento das obrigações assumidas; (iii) os atos praticados com base na confiança foram inúmeros, envolvendo declarações prestadas com acusações a mais de 1800 autoridades, inclusive o atual Presidente da República, realização de gravações ambientais e telefônicas, participação em ação controlada, dentre diversas medidas de grande impacto; e (iv) o ato estatal de frustração da confiança ocorreria se o acordo fosse invalidado ou se os seus termos fossem revistos em desfavor dos agentes colaboradores.

Em outras palavras, os agentes colaboradores apenas praticaram todos esses atos, de tamanha gravidade e importância para a revelação de crimes cometidos pelas mais altas autoridades e ex-autoridades da República – expondo-se, como se expuseram, a toda sorte de ataques e prejuízos –, por confiarem que os termos dos ajustes celebrados seriam honrados pelo Estado. Invalidá-los ou alterá-los em desfavor desses agentes configuraria grave ofensa à proteção constitucional à confiança.

O próprio STF já reconheceu que o princípio de proteção à confiança assegura aos colaboradores o direito subjetivo à fruição do benefício acordado, desde que – é claro –, cumpram eles as obrigações assumidas no ajuste homologado. É o que se observa no voto do relator, Min. Dias Toffoli, proferido no HC 127.483:

“Portanto, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador.”[65]

Nessa linha, o registro preciso de Frederico Valdez Pereira, no sentido de que o “acordo preliminar homologado judicialmente não importa a concessão antecipada do benefício ao colaborador, mas significa que, preenchidos os seus termos, cumprindo o agente com suas obrigações e ônus assumidos no acerto, passa a ter direito a tratamento favorável (…) o qual é condicional, mas vinculado pelo seu conteúdo”.[66]

E o princípio de proibição de comportamento contraditório também pode ser invocado para respaldar a mesma conclusão. Afinal, se o Estado define benefícios a serem fruídos pelo agente colaborador mediante a devida contrapartida, não pode posteriormente mudar esse comportamento, frustrando a legítima expectativa alimentada pelo colaborador de gozar ditas vantagens, desde que adimplidas as obrigações a que se vinculou. Como se trata de acordo judicialmente homologado, o comportamento contraditório não é apenas do “Estado”, abstratamente considerado, mas do próprio tribunal competente – no caso deste Parecer, o STF. O ponto foi salientado por Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa:

“A questão a ser sublinhada é que se alguém congrega capacidade de negociar (delegados e Ministério Público) e houve a homologação, nos termos da Lei 12.850/2013, a revisão das cláusulas de ofício será abusiva. O comportamento processual contraditório pode ser tanto comissivo, como omissivo (supressio), violadores do dever de boa-fé objetiva, no quadro de expectativas do fair play.

Logo, no jogo da colaboração/delação premiada, o limite da pena será a homologada, sob pena de violação do venire contra factum proprium. Qualquer inovação deveria ser ilegal, por tomar de surpresa e revisar, de ofício, em favor do Estado, as cláusulas já acordadas e homologadas.”[67]

Enfim, os princípios da proteção à confiança e da proibição do comportamento contraditório – ambos com assento na Constituição – são francamente incompatíveis com a desconstituição ou revisão, em desfavor do agente colaborador,[68] de acordos homologados de colaboração premiada, ressalvada apenas a hipótese de decisão fundada no descumprimento do acordo pelo próprio colaborador.

Princípio acusatório, atribuição do PGR e impossibilidade jurídica de decisão judicial obrigando o MPF a oferecer denúncia

Argumento adicional em desfavor da invalidação ou revisão judicial dos acordos de colaboração premiada subjacentes a este Parecer se liga ao princípio acusatório, e à irrevisibilidade da decisão do Procurador-Geral da República no que concerne ao exercício da ação penal pública, nos termos de assentada jurisprudência do STF. Explica-se.

A Constituição de 1988 adotou o sistema acusatório no Processo Penal, caracterizado pela distinção clara entre as tarefas de acusação e de julgamento. Essa “eleição constitucional do sistema acusatório”[69] é identificada pela atribuição ao Ministério Público da titularidade da ação penal pública, no art. 129, inciso I da Carta Magna e também pela previsão, contida no inciso VIII do mesmo artigo, de que cabe ao Parquet requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquéritos policiais. A opção pelo sistema acusatório também pode ser extraída dos direitos fundamentais ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, uma vez que tal sistema protege a imparcialidade do juiz e a igualdade entre as partes no processo penal.

Com efeito, a separação rígida entre as tarefas de acusar e julgar, própria do sistema acusatório, surgiu em contraposição ao modelo inquisitorial outrora existente, no qual cabia ao juiz exercer papel ativo nas fases de investigação e de acusação. O surgimento de parte autônoma – o Ministério Público – à qual compete acusar, permitiu que o magistrado adotasse posição mais equidistante e imparcial entre as partes do processo.[70] Como salientou Geraldo Prado, “se na estrutura inquisitória o juiz acusa, na acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro do processo, cuidando de preservar nota de imparcialidade que deve marcar a sua atuação”. [71] Por sua vez, as partes passaram a suportar o ônus de desenvolver seus argumentos à luz do material probatório disponível, de modo a convencer o julgador da consistência de suas alegações.[72] [73]

Nesse sentido, veja-se fragmento de acórdão da lavra do Min. Luiz Fux:

“1. O sistema processual penal acusatório, mormente na fase pré-processual, reclama deva ser o juiz apenas um “magistrado de garantias”, mercê da inércia que se exige do Judiciário enquanto ainda não formada a opinio delicti do Ministério Público. 2. A doutrina do tema é uníssona no sentido de que, verbis: “Um processo penal justo (ou seja, um due process of law processual penal), instrumento garantístico que é, deve promover a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, como forma de respeito à condição humana do sujeito passivo, e este mandado de otimização é não só o fator que dá unidade aos princípios hierarquicamente inferiores do microssistema (contraditório, isonomia, imparcialidade, inércia), como também informa e vincula a interpretação das regras infraconstitucionais. (BODART, Bruno Vinícius Da Rós. Inquérito Policial, Democracia e Constituição: Modificando Paradigmas. Revista eletrônica de direito processual, v. 3, p. 125-136, 2009).”.[74]

A imparcialidade do juiz configura, portanto, “o pilar de sustentação do tríptico do princípio acusatório”.[75] Conforme já destacou o Min. Luís Roberto Barroso, no julgamento da Medida Cautelar na ADI n. 5.104, uma das projeções mais relevantes da exigência de imparcialidade do julgador “é o princípio da inércia jurisdicional, pelo qual se condiciona a atuação dos magistrados à provocação por um agente externo devidamente legitimado para atuar”.[76] Dito de outro modo, isso significa que o sistema acusatório veda que o juiz avoque para si a prerrogativa de instaurar a ação penal condenatória – ou mesmo de impor a sua instauração –, o que levaria a uma indevida confusão entre as tarefas de acusar e julgar, fulminante para a exigência constitucional de imparcialidade da jurisdição.

Como já destacado, importante faceta do princípio acusatório se materializa por meio da titularidade, por parte do Ministério Público, da ação penal pública. É em razão dessa titularidade que quando o Parquet resolve não prosseguir com determinada investigação ou formular denúncia, requerendo o arquivamento do inquérito, ao juiz não é dado substituir sua manifestação e instaurar ex officio a ação penal. De acordo com o art. 28 do Código de Processo Penal, eventual discordância do magistrado a respeito do juízo emitido pelo Ministério Público permite que ele encaminhe os autos para reexame pela própria instituição.[77] E é só. A avaliação final sobre a pertinência do oferecimento de denúncia, sobre a confirmação do arquivamento ou a continuação das investigações continuará a pertencer ao Ministério Público, que é o dominus litis. Confira-se o teor do dispositivo:

“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.

Verifica-se, assim, que cabe ao Ministério Público “dizer definitivamente acerca do não ajuizamento de ação penal, isto é, em relação ao arquivamento de inquéritos policiais ou de peças de informação”.[78] Naturalmente, essa prerrogativa do Parquet se aplica, inclusive, às investigações e inquéritos conduzidos perante o Supremo Tribunal Federal, mas aqui há uma importante particularidade.

É firme e tradicional a orientação do STF, no sentido de que, sendo o Procurador-Geral da República – que atua perante o STF – o chefe da instituição do MPF, não cabe qualquer controle sobre a sua decisão de não oferecer a denúncia. De acordo com o STF, é do PGR a “última palavra” sobre exercício da ação penal pública nos casos submetidos à sua apreciação. Nesse sentido, registrou o Min. Luís Roberto Barroso, em recente decisão:

“(…) a jurisprudência consolidou o entendimento de que é vinculante o pedido de arquivamento do inquérito efetuado pelo Procurador-Geral, que o juiz não pode determinar o oferecimento de denúncia ou o seu aditamento, nem tampouco realizar diligências investigatórias por conta própria. Esse quadro não se altera nem mesmo nos casos em que o inquérito se desenvolve desde logo perante o Judiciário, por força da existência de foro por prerrogativa de função. Mesmo nessa situação peculiar, o relator não assume a direção do inquérito, limitando-se a acompanhar os procedimentos e a decidir sobre a admissibilidade das medidas sujeitas à reserva de jurisdição”. [79]

Destaca-se, nessa linha, a existência de vasta jurisprudência no sentido de que os pedidos de arquivamento efetuados pelo Procurador-Geral da República são vinculantes para a Suprema Corte, de que são exemplos os paradigmas abaixo:

“O art. 129, I, da Constituição da República, atribui ao Ministério Público, com exclusividade, a função de promover a ação penal pública (incondicionada ou condicionada à representação ou requisição) e, para tanto, é necessária a formação da opinio delicti. Como já pontuou o Min. Celso de Mello, ‘a formação da opinio delicti’ compete, exclusivamente, ao Ministério Público, em cujas funções institucionais se insere, por consciente opção do legislador constituinte, o próprio monopólio da ação penal pública (CF, art. 129, I). Dessa posição de autonomia jurídica do Ministério Público, resulta a possibilidade, plena, de, até mesmo, não oferecer a própria denúncia” (HC 68.242/DF, 1ª Turma, DJ 15.03.1991). Apenas o órgão de atuação do Ministério Público detém a opinio delicti a partir da qual é possível, ou não, instrumentalizar a persecução criminal (Inq-QO 2.341/MT, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 17.08.2007)”.[80]

“Na hipótese de existência de pronunciamento do Chefe do Ministério Público Federal pelo arquivamento do inquérito, tem-se, em princípio, um juízo negativo acerca da necessidade de apuração da prática delitiva exercida pelo órgão que, de modo legítimo e exclusivo, detém a opinio delicti a partir da qual é possível, ou não, instrumentalizar a persecução criminal. 5. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assevera que o pronunciamento de arquivamento, em regra, deve ser acolhido sem que se questione ou se entre no mérito da avaliação deduzida pelo titular da ação penal”.[81]

O Plenário do STF, no âmbito da AP 470, chegou, inclusive, a afirmar o caráter “juridicamente impossível” de pedido formulado ao Tribunal para que determinasse ao PGR o oferecimento de denúncia: “Ademais, o pedido de que este Tribunal determine que o Procurador-Geral da República denuncie o Presidente é juridicamente impossível”.[82]

Pois bem. A celebração de acordo de colaboração premiada contendo o benefício de não oferecimento de denúncia contra os colaboradores, nos termos do art. 4º, § 4º, da Lei n. 12.850/2013, pode ser equiparada à decisão de arquivamento do inquérito policial, para fins de controle jurisdicional, na medida em que ambas envolvem o juízo sobre o oferecimento da ação penal pública por parte do seu titular. Portanto, se o Poder Judiciário não pode impor o exercício da ação penal pública no segundo caso, também não pode fazê-lo no primeiro. Trata-se de decorrência direta do princípio acusatório, e de aplicação analógica do art. 28 do CPP à hipótese.[83]

Como se sabe, a analogia consiste em técnica para colmatação de lacunas por meio da qual se aplica à hipótese não regulada uma norma jurídica que trate de questão similar, e que seja orientada pela mesma ratio.[84] Ora, não há regulação legal sobre controle jurisdicional dos acordos de imunidade celebrados pelo MP com colaboradores, com base no art. 4º, §4º, da Lei n. 12.850/2013. E a razão subjacente ao art. 28 do CPP, pela qual não se permite que o Judiciário se substitua ao MP na formulação da opinio delicti é o princípio acusatório. Permitir tal substituição geraria indevida confusão entre as funções estatais de acusar e de julgar, com inadmissível lesão à imparcialidade da jurisdição e à paridade de armas entre as partes processuais. Do mesmo modo, não se pode admitir dita substituição na hipótese de acordo de não oferecimento de denúncia, celebrado com base no art. 4º, §4º, da Lei n. 12.850/13, que geraria os mesmos problemas constitucionais. Como afirma o tradicional brocardo latino: Ubi eadem ratio, ibi aedem legis dispositivo (onde existe a mesma razão, aí se aplica o mesmo dispositivo legal). Entender o contrário significaria permitir ao magistrado que avocasse para si a tarefa de acusar – ou de impor a acusação – o que certamente não se compatibilizaria com nosso sistema constitucional. Trata-se, portanto, de uma analogia imperativa, irrecusável por força da Constituição.

Nesse sentido, confira-se o magistério de Andrey Borges de Mendonça:

“A nova Lei previu, no art. 4º, §4º, os chamados acordos de imunidade, já previstos no art. 26, item 3, da Convenção de Palermo e no item 37, item 3, da Convenção de Mérida, em que o MP deixa de oferecer a denúncia em face do colaborador, concedendo-lhe a garantia de que não será oferecida denúncia em face dele, em caso de cooperação substancial na persecução penal. (…)

No caso do acordo de imunidade, haverá o controle por parte do Judiciário, ao qual deve ser submetido o acordo para homologação, conforme será visto. Caso o juiz discorde do acordo de imunidade poderá aplicar o art. 28 do CPP, por analogia, pois se trata de hipótese de não oferecimento da denúncia. Assim, caso discorde do acordo, o Juiz poderá remeter o caso aos órgãos de cúpula do MP (Procurador-Geral de Justiça ou 2ª Câmara de Coordenação e Revisão). Porém, a decisão final é do MP, em decorrência do art. 129 da Constituição Federal.”[85]

Por outro lado, é à luz dessas impostergáveis balizas constitucionais – princípio acusatório, imparcialidade jurisdicional, titularidade da ação penal pública pelo MP – que deve ser compreendido o disposto no art. 4º, § 8º, da Lei n. 12.850/2013, que prevê a possibilidade de o juiz “recusar a homologação à proposta (de acordo de colaboração premiada) que não atender aos requisitos legais ou ajustá-la ao caso concreto”. Sob pena de inequívoca afronta aos referidos princípios constitucionais – diretrizes inafastáveis na exegese da legislação processual penal –, o preceito não pode ser interpretado de modo a justificar decisão judicial que imponha o exercício da ação penal ao MP, à sua revelia, embaralhando as funções de acusador e de julgador.

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