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O fim da Secretaria de Reforma do Judiciário

29/03/2016

Com tristeza e apreensão recebemos a notícia de que a Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ) – órgão do Ministério da Justiça – foi extinta, em nome do equilíbrio fiscal. São sentimentos justificados não apenas pelo passado, pelos momentos marcantes vividos pela instituição na última década, mas pelo futuro. Seu fim significa a perda de um importante instrumento de articulação do Executivo com o Judiciário e com as demais instituições do sistema de justiça; a redução substancial de iniciativas voltadas para o conhecimento e a análise sobre a atuação do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da advocacia; e a diminuição de incentivos à elaboração de pesquisas sobre acesso à Justiça, sobre meios consensuais de realização de direitos e solução de conflitos, sobre causas da litigância, sobre as relações entre o Direito e a economia, sobre a violência e o sistema prisional.

A secretaria foi criada em 2003, no primeiro governo Lula, por iniciativa do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Poucos, no início, compreenderam o seu papel. Houve reação de setores do Judiciário, baseada em temores de que se trataria de uma intromissão, de uma ameaça à separação dos Poderes e ao princípio federativo. Mas logo a crise foi superada.

Aos poucos se percebeu que o Poder Executivo não tinha apenas o direito, mas também o dever de discutir o sistema de Justiça brasileiro. Em primeiro lugar, porque é o seu principal usuário, seja como autor, seja como réu em milhares de ações judiciais. Em seguida, porque o sistema de Justiça não compreende apenas o Judiciário e o ato de julgar, mas abrange políticas de acesso à Justiça, de redução de litigiosidade, de investimento e valorização de instituições importantes para os fins almejados. Ademais, eram recorrentes as críticas à distribuição de justiça, à falta de transparência, e se sucediam no Legislativo diferentes propostas de reforma.

A articulação entre Poderes para uma Justiça mais ágil e acessível foi produtiva e produziu efeitos. Com a participação decisiva da Secretaria de Reforma do Judiciário foi aprovada a Emenda Constitucional n.º 45, conhecida como da Reforma do Judiciário, que instituiu, entre outras inovações, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a súmula vinculante, a autonomia das Defensorias Públicas. Foram aprovados ao menos 25 projetos de lei que tornaram os processos civil, penal e trabalhista mais céleres. Dentre eles, os que simplificaram o rito do Tribunal do Júri e que admitiram a separação e o divórcio extrajudiciais.

A secretaria também incentivou a chamada “reforma silenciosa” do Judiciário, incentivando projetos de informatização e de racionalização importantes. Apoiou a “penhora online” em contas bancárias e veículos e articulou o processo eletrônico, dentre outras iniciativas de sucesso. Protagonizou a criação do Prêmio Innovare, valorizando iniciativas que ampliassem o acesso à Justiça, diminuíssem o tempo de tramitação de processos, aproximassem a Justiça da cidadania e favorecessem a inclusão. Além de tudo isso, a SRJ incentivou inúmeros projetos de desburocratização, de gerenciamento e de aperfeiçoamento da Justiça.

Por outro lado, a secretaria ofereceu diagnósticos precisos sobre o funcionamento do sistema de Justiça e sobre o perfil de juízes, promotores, defensores públicos e advogados públicos. Se hoje sabemos o número de processos em tramitação, o tempo médio de julgamento e a quantidade de dinheiro gasto com isso – informações imprescindíveis para o aperfeiçoamento do sistema –, isso se deve ao pioneiro trabalho do órgão extinto. Ressalte-se que anteriormente não existiam dados confiáveis sequer sobre o número de processos e de integrantes das instituições jurídicas.

Mas os feitos pretéritos importam menos. A política pública aponta para o futuro e o fim da secretaria significa perder a interlocução com o sistema judicial e com organizações da sociedade civil. Deixa-se de ter uma instituição voltada para o aprimoramento do acesso à Justiça, para a racionalização dos processos, que dedique tempo e recursos a diagnósticos, análises e implementação de políticas do Executivo voltadas para esse setor ainda problemático e complexo. Diagnósticos sobre as instituições do sistema de Justiça contribuem não apenas para conferir transparência, mas permitem a proposição de políticas institucionais fundadas em dados e informações.

Há quem diga que tais funções foram absorvidas por outros órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça. Mas este é parte do Poder Judiciário, integra a sua estrutura, porém não supre a necessidade de existir uma entidade do Executivo que reflita e oriente a atividade deste último diante do sistema de Justiça, pense em formas de reduzir a excessiva litigiosidade do poder público e de incentivar políticas de aprimoramento mais efetivas.

Sabemos que o equilíbrio fiscal é prioritário. Para isso bastaria cortar cargos e reduzir o orçamento da secretaria. No início, quando de sua criação, o órgão tinha apenas três cargos em comissão e praticamente nada de verbas. Ainda assim, desempenhou papel relevante, porque sua política não exige recursos, mas articulação. Não implica dinheiro, mas capacidade de compreender e organizar outros setores do poder público e da iniciativa privada, todos com capacidade e vontade de contribuir.

A extinção da Secretaria de Reforma do Judiciário e a transferência de suas atribuições para a Secretaria Nacional de Justiça representam perda institucional. Essa decisão pode parecer um sinal de menor entusiasmo do governo pela construção de um sistema judicial democrático, republicano, que envolva todos os Poderes num pacto por uma Justiça melhor, mais inclusiva, mais acessível, mais efetiva e mais racional.

*Pierpaolo Cruz Bottini, Sérgio Renault e Maria Tereza Sadek são respectivamente, ex-secretários de Reforma do Judiciário e cientista política

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