Nova regra da prescrição cria desproporcionalidade
22 de junho de 2010
Por Pierpaolo Cruz Bottini
A recentemente aprovada Lei 12.234/2010 traz novas regras sobre prescrição da pretensão punitiva. Com alterações no artigos 109 e 110 do Código Penal, o novo diploma legal põe limites à chamada prescrição retroativa, instituto que permitia reconhecer a prescrição entre a prática do fato e a denúncia, com base na pena aplicada pela decisão judicial condenatória posterior, após o trânsito em julgado da decisão para a acusação.
A redação anterior do Código estabelecia que a sentença com trânsito em julgado para a acusação fixava um novo patamar para o cálculo da prescrição, qual seja, a pena concretamente aplicada. Nesse caso, se entre a consumação do crime e o recebimento da denúncia, fosse constatado o decurso do prazo com base na pena concretamente aplicada, seria extinta a punibilidade do agente.
Com a nova lei, o cálculo da prescrição para o lapso entre a consumação do crime e o recebimento da denúncia se fará sempre com base no máximo da pena privativa de liberdade estabelecido pelo tipo penal. Não será mais possível aplicar a prescrição retroativa nestes casos, pela qual o cálculo se realizava com base na pena em concreto, caso fosse ultrapassado o lapso prescricional nesta etapa.
A novidade impõe reflexões.
O instituto da prescrição — admitido desde o século VIII pelo direito romano (Lex Julia de adulteriis)[1] se presta a inúmeros objetivos, dentre os quais evitar a eternização da persecução penal, garantir a duração razoável do processo (CF XXX), a utilidade da pena[2], e evitar o perecimento da prova pelo decurso do tempo[3]. Mas, mais do que tudo, a prescrição é uma face importante do principio da personalidade da pena, pois a aplicação da sanção após um largo período de tempo encontraria o agente do delito modificado, distante — para melhor ou pior — do estado de espírito e de caráter daqueles que ostentava à época do crime[4]. Seria como aplicar a sanção penal a alguém pelo comportamento de outro, porque, como explica SCHULTZ, o fundamento da prescrição está em “não ser o homem que está diante do tribunal aquele que praticou o delito”[5] .
O cálculo da prescrição se faz com base na gravidade do delito. Quanto mais desvalorada a conduta e lesivo o resultado, mais tempo será exigido para a extinção da punibilidade, em natural busca de proporcionalidade. Antes da definição da pena concretamente cabível ao autor o legislador decidiu que a base para o cálculo da prescrição será o máximo de pena prevista nos tipos penais. Parece lógica tal construção, vez que não há outro parâmetro para aferir a gravidade do crime que sua gravidade em abstrato.
Por outro lado, após o trânsito em julgado para a acusação, o patamar máximo da pena é alterado. A partir deste momento, a extensão ou modalidade da sanção poderá ser diminuída ou abrandada, de acordo com o sucesso dos recursos impetrados pela defesa, mas jamais aumentada, em razão da vedação da reformatio in pejus. Assim, a pena máxima a ser aplicada — caso a defesa fracasse em todas as tentativas de diminuir sua extensão — será a pena concretamente aplicada pela decisão da qual a acusação não recorreu. O grau intransponível e máximo da pena
será aquele fixado pela sentença ou acórdão que transitou em julgado para a acusação.
O fundamento desta nova medida de prescrição é compatibilizar o cálculo da extinção da punibilidade com o grau de culpabilidade do autor e de reprovabilidade do comportamento reconhecidos concretamente. Se o magistrado — ou o Tribunal — entendeu que o agente merece pena menor que o máximo previsto pelo tipo penal, e a acusação concordou, é evidente que o tempo de prescrição será menor, calculado pelo novo patamar máximo possível da pena[6].
Pois bem, com base nesta ideia de proporcionalidade, que o legislador de 1984 estabeleceu a chamada prescrição retroativa. Não se tratava de uma novidade. Já em 1923, o Decreto 4780 previa que a prescrição seria calculada pelo “máximo da pena abstractamente cominada na lei ou a que for pedida no libelo, ou, finalmente, a que for imposta na sentença de que somente o réu houver recorrido” (artigo 35)[7]. Também o Supremo Tribunal Federal já havia assentado a prescrição retroativa desde 1961, diante de reflexões do ministro Nelson Hungria sobre a incoerência de calcular a prescrição pela pena in abstracto diante de uma pena concreta estabelecida em decisão transitada em julgado para a acusação (HC 38.186). Inicialmente, a posição do Supremo Tribunal Federal reconhecia a prescrição retroativa apenas para o período entre o recebimento da denúncia e a decisão condenatória, mas com o passar dos anos acabou por reconhecer a incoerência de negar a prescrição retroativa ao período entre o cometimento do fato
e o recebimento de denúncia, em voto notável de VITOR NUNES LEAL, em 1963, no HC 40003: “Pergunto: o efeito retroativo da prescrição pela pena concreta alcança também o lapso de tempo decorrido entre o delito e o oferecimento da denúncia? Parece-me que sim, porque o recebimento da denúncia interrompe a prescrição, mas no pressuposto de que não se tenha consumado, tal como acontece com a sentença condenatória, para quem admito a prescrição pela pena concreta. Num e noutro caso, o que está em jogo é o efeito retroativo da prescrição, alcançando o período transcorrido anteriormente ao ato interruptivo. Se esse efeito retroativo se produz em relação à sentença condenatória, que interromperia a prescrição não consumada, o mesmo se deve dizer do recebimento da denúncia, que só interromperia a prescrição, quando ainda não verificada.” (STF, HC 40.003, Rel. Min. Vitor Nunes Leal, publ. 18.09.1963)
O raciocínio é evidente: se há um novo patamar máximo de pena fixado pelo juiz, fundado na culpabilidade do agente e na reprovação do comportamento, constatados na instrução, é com base nele que serão estabelecidos os prazos de prescrição, que valem até mesmo para o período entre o cometimento de delito e o recebimento da denúncia — período para o qual valia a prescrição com base na pena máxima apenas diante da ausência de elementos para fixação da pena concreta.
É justamente esta prescrição retroativa válida para o espaço entre o fato e o recebimento da denúncia, consagrada no mesmo ano pelo Supremo Tribunal Federal na súmula 146[8], e posteriormente pelo legislador de 1984, que fixou a
regra da prescrição retroativa no parágrafo 2º do artigo 110 do Código Penal, que foi abolida pela lei em comento, ao mencionar expressamente que a prescrição não pode “em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”.
Indaga-se, em primeiro lugar, por que a pena concreta fixada pelo magistrado pode retroagir para o cálculo da prescrição entre o recebimento da denúncia e a sentença condenatória, mas não entre a prática do fato e a denúncia? Qual o elemento distintivo que justifica a diferença de tratamento?
Por outro lado, negar efeito retroativo à pena concreta para o cálculo da prescrição parece ferir os princípios da culpabilidade, da isonomia e da proporcionalidade. Imaginemos que duas pessoas pratiquem o crime de furto, uma delas é primária, e agiu contra vítima adulta, em situação de normalidade institucional, tendo reparado o dano após o inicio do processo e confessado espontaneamente a prática do delito; outra é reincidente, agiu contra criança durante calamidade pública, não reparou o dano nem confessou a prática do delito.
É evidente aqui a diferença nos graus de culpabilidade e de reprovabilidade da conduta, embora ambos tenham incidido no mesmo tipo penal. A pena concreta será distinta, menor para o primeiro caso, maior para o segundo, nos termos do artigo 59 e seguintes do Código Penal. Da mesma forma, o período para prescrição será distinto após a condenação transitada em julgado para a acusação, pois distinto o desvalor dos comportamentos. Também será diferente o prazo prescricional aplicado entre o recebimento da denúncia e a decisão condenatória, porque esta
prescrição retroativa está em vigor.
No entanto, o prazo para prescrição entre a prática do ato e o recebimento da denúncia será idêntico para os dois delitos, pautado pelo máximo da pena em abstrato. Mas não há razão plausível para que o tempo de prescrição contado após o recebimento da denúncia seja diferente daquele contado antes deste fato.
Não se questiona aqui, no entanto, a pertinência dos prazos prescricionais, a dificuldade de investigações, e sua eventual contribuição para a impunidade. O que se discute, em verdade, é a racionalidade de estabelecer prazos prescricionais distintos para situações factualmente idênticas – o mesmo crime antes e depois do recebimento da denúncia – e de estabelecer prazos idênticos para situações factualmente distintas – crimes diferentes, praticados por agentes distintos, com culpabilidade e reprovabilidade em graus diferenciados terão o mesmo prazo prescricional regulado pelo máximo da pena em abstrato. Aqui vale a lição de Alberto Silva Franco: “ocorre desrespeito ao principio da igualdade quando situações fáticas iguais são arbitrariamente cuidadas pelo legislador, como desiguais ou situações fáticas desiguais recebem, de modo arbitrário, tratamento igual”[9].
Há ainda uma questão em aberto, não enfrentada pelo texto legal, referente à hipótese de eventual desclassificação do delito pela decisão judicial. Imaginemos que alguém seja denunciado pela prática de lesões corporais graves — e a denúncia seja recebida — e, após a instrução, o magistrado entenda que se trata em verdade de lesões corporais leves. Caso tal decisão transite em julgado para a acusação, o lapso de prescrição aplicável para o período entre o recebimento da denúncia e a decisão será referente à pena de lesão corporal leve, e o prazo prescricional válido para o momento do ato até o recebimento da denúncia será o de lesões corporais graves — situação inconcebível no regime anterior, em que todos os prazos passavam a ser regulados pela pena em concreto do tipo penal da condenação.
Enfim, pode-se questionar a prescrição, os prazos, a morosidade judicial, e sua relação com a impunidade. O que não parece legítimo é criar distorções que comprometam o principio da proporcionalidade, fazendo incidir de forma idêntica a norma penal sobre comportamentos ontologicamente diferentes. A nova regra compromete a isonomia e o principio da culpabilidade (CF, artigo 5º, XLV), pois o tempo de prescrição deixa de ter relação com o contexto do crime concreto e passa a ser pautado apenas pela pena genérica, abstrata, mesmo após a instrução e a
individualização do tamanho da resposta penal.
A política criminal não pode transigir com princípios tão elementares, sob pena da banalização do direito penal e da turbação da racionalidade de um sistema que, pela sua violência e agressividade, exige serenidade e cautela daqueles que operam seus instrumentos.
“Tudo passa um dia. Há de passar, também, e ser esquecida, a ameaça do Estado de apanhar o delinquente. Nem o ódio dos homens costuma ser invariavelmente implacável e irredutível”
Basileu Garcia [10]
[1] LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Co, 1899, p.478
[2] WELZEL, Derecho penal alemán, 11ª ed., trad. Juan Bustos Ramirez, Santiago: Juridica del Chile, 1970, p.359
[3] Para uma visão abrangente sobre as teorias fundamentadoras da prescrição, vide MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal. Prescrição funcionalista. São Paulo: RT, 2000, p.88
[4] MAGALHÃES NORONHA, Direito penal, vol.1. São Paulo: Saraiva, 1981, p.413
[5] Citado em ZAFFARONI, Manual de direito penal brasileiro, Parte Geral, 3ª Ed. São Paulo: RT, 2001, p.753.
[6] BETANHO e ZILI in Código Penal e sua interpretação , São Paulo: RT, 2007, p.567
[7] SIQUEIRA, Galdino. Direito penal brasileiro. Brasilia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, P.737
[8] A PRESCRIÇÃO DA AÇÃO PENAL REGULA‐SE PELA PENA CONCRETIZADA NA SENTENÇA, QUANDO NÃO HÁ RECURSO DA ACUSAÇÃO.
[9] In Crimes hediondos, 5ª Ed., São Paulo: RT, 2004, p.63
[10] Instituições de direito penal. Volume I, Tomo II, 7ª Ed., coord. Maira Rocha Machado., Denise Garcia. São Paulo: Saraiva, 2008, p.369
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini & Tamasauskas, professor de Direito da USP e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2010