Mais reflexões sobre a lei 12.403/11
Autor: Pierpaolo Cruz Bottini
A aprovação da Lei 12.403/11 demonstra que a discussão serena e racional de propostas legislativas produz bons resultados. O texto final é produto de longos debates acadêmicos e parlamentares, iniciados em 2001, com a apresentação da primeira proposta de revisão das regras sobre cautelares penais por uma comissão de juristas presidida pela Professora Ada Pellegrini. Anos depois, o projeto foi apontado como uma das quatro propostas mais importantes para a reforma processual penal pelo 1º Pacto por um Judiciário mais Rápido e Republicano, firmado pelos três Poderes da República em 2004. Passado mais um longo período, a proposta foi finalmente aprovada e sancionada na íntegra.
Os textos e artigos trazidos por esse Boletim sobre o tema esmiúçam os diversos aspectos da nova lei, e certamente seus efeitos serão ainda objeto de saudáveis controvérsias. De qualquer forma, a criação de medidas cautelares além da prisão é bem-vinda, porque permite a superação da medíocre dicotomia do processo penal, pela qual o juiz não dispunha de alternativa diferente da prisão para assegurar a ordem processual e a aplicação da lei penal. Era a prisão ou nada. Alguns magistrados, ainda, lançavam mão de outros instrumentos, como a retenção de passaportes ou a proibição de frequência a determinados lugares, mas a aplicação destas cautelares inominadas sempre foi polêmica e cercada de indagações sobre sua legalidade.
O texto legal põe fim à insegurança ao possibilitar a aplicação de cautelares diferentes da prisão nos arts. 317 e 319 do Código de Processo Penal.
Digna de nota, na nova lei, a vedação da prisão cautelar em crimes com penas iguais ou inferiores a 04 anos. Fica afastada a privação da liberdade processual nos casos em que a pena final será restritiva de direitos ou multa, consagrando a ideia de que o instrumento cautelar deve ser proporcional à eventual pena. Também merece destaque o fato da nova lei reafirmar o caráter excepcional da prisão processual ao determinar que ela será aplicada apenas quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, exigindo do juiz uma fundamentação a mais quando da decretação da preventiva: a razão da dispensa de outras cautelares.
Dentre inúmeras outras novidades, ainda é relevante mencionar a definição dos institutos do flagrante e da preventiva como sucedâneos. Pelo texto legal, o magistrado, ao receber o flagrante, deve relaxar a prisão, transformá-la em preventiva ou conceder liberdade provisória. Com isso, o réu privado de liberdade no processo ou está preso em flagrante – situação efêmera – ou está em prisão preventiva. Fica explícita a impossibilidade do réu ficar preso por dois motivos:(i) pelo flagrante e (ii) pela preventiva, bem como fica afastada a estranha, inusitada, mas recorrente situação anterior, na qual o magistrado revogava a prisão preventiva pela ausência dos requisitos do art. 312 e o réu continuava preso pelo flagrante inicial.
Em suma, a nova lei merece todos os elogios. Mas há um ponto que exige reflexão: a ausência de previsão da detração diante da aplicação de medidas cautelares distintas da prisão. O Código Penal dispõe, no art. 42, que será computado, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro – a detração.
Se o réu aguardou preso preventivamente o andar do processo, é natural que esse tempo seja descontado da pena final, ainda que a qualidade e a natureza das prisões cautelar e definitiva sejam distintas. A supressão do direito de locomoção para salvaguardar o processo será compensada na pena final.
Ocorre que não há previsão legal da detração nos processos em que a cautelar aplicada é distinta da prisão. Para os casos em que o réu for submetido, por exemplo, à prisão domiciliar ou ao monitoramento eletrônico durante a instrução, a lei não explicita desconto na pena final, o que parece inadequado. Se a detração da prisão tem por fundamento o princípio da equidade e a vedação ao bis in idem,(1) deve o instituto ser estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos do cidadão, seja a liberdade de locomoção, seja outro qualquer.
Com base nisso, o projeto de alteração do Código de Processo Penal (PLS 156), atualmente em discussão no Congresso Nacional, prevê que o tempo de recolhimento domiciliar será computado no cumprimento da pena privativa de liberdade, na hipótese de fixação inicial do regime aberto na sentença (art. 607) e que, substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nesta será computado o tempo de duração das medidas cautelares previstas pela proposta (parágrafo único).
Da mesma forma, o Código Penal português prevê o desconto total do tempo de pena de prisão caso o réu tenha sofrido, no curso do processo, detenção, prisão preventiva, ou obrigação de permanência na habitação(art. 80º, 1, grifos nossos).(2) Também o Código Penal espanhol estabelece que se abonarán, en su totalidad, para el cumplimiento de la pena impuesta, las privaciones de derechos acordadas cautelarmente (sección 6ª, art. 58, 2) e que cuando las medidas cautelares sufridas y la pena impuesta sean de distinta naturaleza, el Juez o Tribunal ordenará que se tenga por ejecutada la pena impuesta en aquella parte que estime compensada (art. 59, sem grifos).(3)
Enfim, os textos citados revelam a adequação da previsão da detração para cautelares distintas da prisão, a sugerir a revisão pontual do Código Penal para a adequação da detração a essa nova realidade legislativa.
No entanto, a ausência de menção à detração para cautelares distintas da prisão no ordenamento não impede sua aplicação pelo juiz, que, por analogia, pode beneficiar o réu com uma interpretação ampla da abrangência do instituto para além da prisão. Parece-nos possível, por exemplo, descontar o tempo passado em prisão domiciliar da eventual pena de prisão definitiva em regime aberto, ou o período processual no qual o réu foi proibido de frequentar determinados lugares da pena restritiva da mesma natureza, se essa for a condenação. Caso a cautelar e a pena tenham naturezas distintas – como na hipótese da cautelar de prisão domiciliar e a pena de prisão em regime fechado – o tempo descontado poderá ser o mesmo, mas é possível construir pela jurisprudência uma fórmula que permita deduzir proporcionalmente – com base na razoabilidade – algo da sanção para detrair a cautelar aplicada.
Mas, a par de questões pontuais como essas, a nova lei é bem-vinda. Como qualquer novo ato, ainda será debatida e revolvida pelos operadores do direito e pela academia sob todas as perspectivas. No entanto, sua aprovação e sua sanção integral demonstram como a articulação entre Poderes e a racionalidade podem produzir normas que contribuam para um processo penal mais eficaz e civilizado, que contribua para a segurança pública e, ao mesmo tempo, respeite a dignidade humana e os princípios constitucionais dela decorrentes.
NOTAS
(1) FRANCO, Alberto Silva; BELLOQUE, Juliana. Comentários aos arts. 41 a 60., In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coords.). Código Penal e sua interpretação. 8. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 277.
(2) Disponível em , acessado em 12.05.2011
(3) Disponível em , acessado em 12.05.2011.
Pierpaolo Cruz Bottini
Advogado.
Professor Doutor de Direito Penal da USP.
Coordenador regional do IBCCRIM.