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EQUÍVOCO CONTRA AS DROGAS

Pierpaolo Cruz Bottini
06/06/2019

No último dia 5 foi sancionada a nova lei de drogas. O texto discorre sobre estratégias de prevenção, fortalece comunidades terapêuticas e altera penas para o tráfico, mas não inova no tratamento do usuário. Consumir drogas continua sendo crime.

Em outras palavras, o Brasil segue na linha de guerra às drogas, tratando usuários como inimigos do Estado que merecem repressão, e perde a chance de adotar programas em sintonia com a maior parte do mundo ocidental, que percebeu o consumidor como alguém que precisa de auxílio e tratamento, e não de penas ou ameaças.

Há resistência em avançar nessa seara, parte dela pela desinformação que envolve o debate, que confunde propositalmente a ideia de descriminalizar o uso de drogas com o incentivo ao consumo. São coisas distintas, até antagônicas.

Afastar o Direito Penal do consumidor é aprimorar a prevenção e facilitar o tratamento. É abrir um diálogo franco com os milhares de pessoas que lidam com entorpecentes. É possibilitar a acolhida, a assistência e mesmo a internação em casos mais delicados. É reconhecer que existem formas mais eficazes e úteis de cuidar do usuário do que a pena, cujo único efeito é afastá-lo de qualquer tentativa de superação do problema.

Enfim, é uma estratégia mais inteligente de reduzir o consumo dependente e problemático.

Vários países da América Latina (Uruguai, Argentina, Colômbia, Equador, Paraguai, Chile, Venezuela) e da Europa (Portugal, Holanda, Alemanha, Espanha, Itália) descriminalizaram o uso de drogas, sem mencionar os Estados Unidos, onde diversos estados adotaram a mesma postura. Poucas nações acreditam no Direito Penal como a melhor forma de lidar com o usuário, diante do nítido fracasso desse instrumento como política pública. Infelizmente, o Brasil continua entre elas.

Há quem argumente que a descriminalização do consumo de drogas é o primeiro passo para que se abram as portas ao tráfico legalizado e ao consumo desenfreado.

Não é verdade. Dos diversos países que afastaram o Direito Penal do usuário, poucos regularam o comércio de drogas. Na maior parte deles, o tráfico continua sendo crime. E, ao contrário das pessimistas previsões, o uso de drogas não se tornou comum. Mais do que isso, em países como Portugal percebeu-se uma redução no número de mortes por overdose e na contaminação de HIV após a descriminalização.

Para além de aprimorar a assistência ao usuário, a descriminalização do consumo liberaria recursos para segurança
pública. O tempo e o dinheiro gastos pela polícia para fiscalizar e reprimir o uso seriam melhor alocados para investigar as organizações para o tráfico e coibir delitos mais graves.

Enfim, há dados que apontam o acerto na descriminalização. Há motivos sólidos, razões fundadas. A própria ONU reconheceu em março deste ano a pertinência de substituir o Direito Penal por medidas alternativas em relação ao usuário nas Diretrizes Internacionais sobre Direitos Humanos e Políticas de Drogas.

No início deste ano uma comissão de juristas apresentou à Câmara dos Deputados uma proposta de alteração da lei de drogas que extinguia o crime de porte e plantio de drogas para uso próprio. Ministros do STJ, desembargadores, procuradores, juízes, advogados e médicos chancelaram o projeto, acreditando na possibilidade de uma política mais racional, de acordo com as boas práticas e experiências internacionais.

Mas o legislador brasileiro optou por outro caminho.

Um caminho juridicamente duvidoso, porque o STF começou a discutir a constitucionalidade do crime de uso de entorpecentes. Defensores públicos e entidades como o Instituto Igarapé e a Viva Rio defendem na Suprema Corte que punir o consumidor de drogas contrasta com o princípio da dignidade humana, previsto no art. 1º da Constituição, que garante a todos a liberdade individual de ação desde que não afetem bens ou interesses de
terceiros.

Três ministros já votaram para afastar o Direito Penal do usuário, em maior ou menor escala. A discussão foi suspensa, mas deve voltar em breve, acendendo mais uma vez o debate sobre o tema.

Enquanto isso, ficam mantidos no limbo da insegurança jurídica milhares de usuários de drogas, que esperam mais do que a ameaça de pena para lidar com seu complexo problema. Que esperam assistência, tratamento e uma dignidade que lhes permitam superar dependências e usos problemáticos de forma eficaz e racional.

Isso o legislador lhes subtraiu. Resta ao Judiciário dar a palavra final.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de direito penal na Universidade de São Paulo (USP)

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