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Crimes concorrenciais na nova Lei do Cade

No dia 29 de maio entra em vigor a Lei 12.529/11, a Lei do Super CADE, com inovações no marco regulatório da defesa da concorrência no Brasil. A nova estrutura do sistema confere maior racionalidade à política de combate às práticas lesivas à concorrência e organiza de forma mais eficaz as instituições desse setor.

Ainda que a nova lei tenha caráter eminentemente administrativo, existem algumas mudanças no campo do direito penal que merecem atenção por seus significativos efeitos, a seguir expostas.

Em primeiro lugar, houve uma descriminalização importante no setor da concorrência. Práticas como a venda casada ou o dumping deixam de ser passíveis de serem consideradas delitos, embora ainda possam ser punidas no campo administrativo. Restou como crime nesta seara apenas o cartel, o acordo lesivo entre concorrentes, ou com capacidade de lesionar a ordem econômica. Os relatórios do legislativo apontam que a manutenção apenas do delito de cartel é explicada porque esta prática pode ser apurada de forma imediata e objetiva – basta verificar o ajuste entre concorrentes – enquanto as demais condutas anticoncorrenciais exigem uma análise mais criteriosa do contexto econômico na qual foram realizadas, dos efeitos compensatórios, ou das consequências líquidas da conduta. E tal análise, pela sua complexidade, não é cabível dentro da estrutura do processo penal, sendo apenas viável na esfera administrativa.

Como a lei penal retroage para beneficiar o réu, todas as investigações e processos com base em crimes concorrenciais diferentes do cartel serão arquivados, extintas as penas aplicadas nos casos já julgados e retomada a primariedade daqueles condenados.

Uma segunda novidade é a ampliação dos efeitos da leniência, pela qual o acusado da prática anticoncorrencial colabora com as investigações para identificar os demais envolvidos e na obtenção de provas que comprovem a infração. Em troca, tem extinta ou reduzida sua pena administrativa. A celebração do acordo de leniência com a autoridade administrativa impede o início da ação penal e suspende o prazo de prescrição. Uma vez cumprido o acordo em todos os seus termos, fica extinta a sanção penal.

O acordo de leniência já existia na lei anterior, mas sua extensão agora é distinta. Antes, extinguia-se a punição apenas pelos crimes concorrenciais, como cartel. Agora também afasta a pena de crimes de licitação ou de formação de bando ou quadrilha, quando praticados junto com o crime de cartel. Essa ampliação facilitará a realização dos acordos, vez que confere segurança à pessoa que coopera com as investigações de que não será processada ou punida pelos crimes que ajudou a apurar, desde que esse auxílio colabore efetivamente com as investigações.

Um ponto preocupante é a conferência à Superintendência-Geral do CADE do poder de realizar inspeção in loco em empresas investigadas, com a faculdade de conferir livros comerciais, computadores e arquivos eletrônicos, podendo extrair ou requisitar cópias de quaisquer documentos ou dados eletrônicos sem autorização judicial.

Não se nega a importância dessa inspeção para que se colham dados e provas talvez importantes para a caracterização do cartel. Mas tal prática deveria vir acompanhada de controle do Judiciário, para evitar excessos e abusos. A permissão para verificar computadores e arquivos eletrônicos, bem como para extração de cópias sobre qualquer assunto que possa indicar cartel, pode implicar em uma extensa quebra de sigilo, cuja realização mereceria a autorização prévia de um magistrado. Certamente o dispositivo legal será questionado quanto à sua constitucionalidade.

Por fim, perdeu o legislador a oportunidade de solucionar um impasse importante: a competência para processar e julgar o crime de cartel. O debate sobre a atribuição da Justiça Comum ou da Justiça Federal para atuar nesses julgamentos contribui para a morosidade dos processos, vez que a lei não é clara sobre a questão.

O projeto de lei previa a competência da Justiça Federal para apurar todos os crimes de cartel, mas um erro formal de redação levou o Poder Executivo a vetar o dispositivo. Assim, a questão sobre a Justiça competente para tratar desses casos – em especial quando a prática do cartel afeta mais de uma unidade da Federação – continua em aberto.

Estas são as primeiras impressões sobre os reflexos penais da nova lei do CADE. Com o passar do tempo, é possível que surjam novas indagações e questões. No entanto, o natural desconforto com a inovação deve ceder espaço à percepção da importância da nova lei e aos avanços da proteção à concorrência dela advindos.

Pierpaolo Cruz Bottini, professor-doutor de Direito na USP, e Igor Tamasauskas, advogado especializado em direito administrativo. São sócios do escritório Bottini&Tamasauskas.

FONTE: Jornal Valor Econômico, 18 de junho de 2012, São Paulo.

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