Anistia e conexão
Pierpaolo Bottini – 01/12/2012
A discussão sobre a interpretação constitucional do artigo 1º e do respectivo parágrafo 1º da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) é fundamental para esclarecer a abrangência e os efeitos deste diploma legal. Em outras palavras, a questão é: a lei – ao anistiar os crimes políticos e conexos – excluiu a possibilidade de punição dos delitos praticados pelos agentes do regime militar contra seus opositores durante o período ditatorial?
Considerando essa questão, o aspecto ora em discussão é: a tortura praticada por tais agentes pode ser considerada crime conexo aos crimes políticos eventualmente praticados pelos opositores do regime? A resposta é importante, pois, se afirmativa, implica no
reconhecimento da anistia àqueles que utilizaram deste método durante o regime de exceção.
A doutrina brasileira, com base no disposto nos diversos diplomas legais, classifica as diversas formas de conexão: (i) Conexão material: concurso formal, material ou crime continuado (CP, arts. 69, 70, 71); (ii) Conexão intersubjetiva por simultaneidade: duas ou mais
infrações praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, sem acordo mútuo de vontades (autoria colateral) (CPP, art.76, I, primeira parte); (iii) Conexão intersubjetiva por concurso: duas ou mais infrações praticadas por várias pessoas em concurso (com acordo
mútuo), embora diversos o tempo e o local (CPP, art.76, I, segunda parte); (iv) Conexão objetiva: duas ou mais infrações praticadas, quando uma delas visa facilitar ou ocultar a prática da outra (CPP, art.76, II); (v) Conexão probatória: quando a prova de uma infração
ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influírem na prova de outra infração (CPP, art.76, III); (vi) Conexão intersubjetiva por reciprocidade: duas ou mais infrações praticadas, por várias pessoas, umas contra as outras (CPP, art.76, I, última parte).
De todas as hipóteses, apenas as duas últimas poderiam fundamentar a conexão dos crimes de repressão com os crimes políticos praticados contra o regime militar. Todas as demais exigem uma unidade de desígnios ou o mesmo sentido de conduta.
Ainda assim, mesmo a conexão probatória e a conexão por reciprocidade não se sustentam nos casos em discussão, pois são institutos meramente processuais, cuja aplicação se presta apenas à racionalidade e à eficácia do exercício da jurisdição. Não faria sentido estender a anistia a um crime apenas porque a prova de sua ocorrência está ligada a outro delito beneficiado com o instituto (conexão probatória), ou porque sua realização é recíproca ao crime anistiado (conexão intersubjetiva por reciprocidade).
Ademais, em relação à última espécie de conexão mencionada, cabe destacar que sua caracterização exige a simultaneidade das agressões, no mesmo contexto fático, de forma que a reunião de feitos facilite a análise probatória e impeça decisões díspares.
Portanto, mesmo que este modo de conexão fosse apto a expandir a anistia aos crimes praticados por agentes da repressão militar, seria forçoso apontar a existência de simultaneidade de agressões. No entanto, tal simultaneidade não se verifica na prática de tortura e de outros crimes contra opositores do regime militar. Foram ações sistemáticas, planejadas, regulares, realizadas sobre vítimas já detidas, sob a custódia dos agressores.
Ora, em não havendo simultaneidade nem unidade de desígnio, não há conexão entre crimes políticos e os atos de tortura praticados pelos agentes de repressão no período de exceção brasileiro e, portanto, não incide a anistia sobre tais delitos.
Pierpaolo Cruz Bottini: Professor-doutor de direito penal da Universidade de São Paulo (USP), membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça