Acordo de leniência para apurar cartel merece reflexão
Por Pierpaolo Cruz Bottini
A recente noticia de que a Siemens usou a leniência e entregou dados relevantes sobre crimes de corrupção e concorrenciais envolvendo governos e outras instituições, coloca novamente no foco dos debates o polêmico instituto jurídico da delação premiada, especialmente no que concerne ao delito de cartel. Por isso, volto a tratar do tema, com algumas preocupações.
O Brasil tem dado passos largos para a estruturação de um marco legal e administrativo adequado para a repressão ao cartel. A nova lei do sistema brasileiro de defesa da concorrência (Lei 12.529/2011) aprimorou a inibição de tais práticas, e ofereceu diversos instrumentos para que o poder público tenha sucesso na empreitada. No entanto, alterações recentes no regimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de março deste ano, trouxeram alguma perplexidade para operadores de Direito e merecem reflexão.
As autoridades competentes para combater o cartel no Brasil têm à sua disposição uma série de instrumentos para a descoberta do ilícito e seus mentores. Desses, destacam-se dois: a leniência e o compromisso de cessação de prática, ambos previstos na Lei 12.529/2011. São mecanismos que oferecem aos participantes de carteis a oportunidade de colaboração com os órgãos públicos para desmantelar a organização, em troca de benefícios ou da extinção da punição. Além de facilitar a investigação e a identificação de provas, tais institutos enfraquecem os laços de confiança que sustentam o cartel, uma vez que estimulam a delação.
Pela leniência, o autor do cartel que coopera efetivamente com as investigações tem por prêmio a extinção/redução da pena administrativa e evita processo ou condenação criminal. Para isso, é necessário que o colaborador seja o primeiro a se apresentar às autoridades (no caso de pessoas jurídicas) e confesse sua participação nos atos ilícitos.
Já no compromisso de cessação de prática de cartel, o representado compromete-se a cessar a atividade lesiva e a pagar contribuição pecuniária ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, em troca do arquivamento do processo administrativo no Cade, caso cumpridas as condições fixadas. Não há exigência prevista em lei de confissão de ilícito, nem de colaboração com investigações, mas também não há menção a qualquer benefício penal. Ou seja, a celebração do compromisso não impede o processo pelo crime de cartel contra aquele que o assinou.
Conceituados os institutos, passemos à polêmica: a regulamentação pelo Cade dos contornos do compromisso de cessação de prática de cartel. Em primeiro lugar, o Regimento Interno do órgão prevê que o compromissário deverá, além de cessar a conduta e pagar o valor pecuniário, colaborar com as apurações no processo administrativo. Ou seja, impõe uma obrigação não prevista expressamente em lei, aproximando o instituto da leniência. Em segundo lugar, o mesmo documento determina que o signatário deve reconhecer a participação na conduta investigada, exigindo, portanto, uma confissão não imposta pela norma.
Com isso, fica o possível compromissário em um dilema jurídico de difícil solução. De um lado lhe é oferecida a oportunidade de cessar a prática de cartel em troca do arquivamento do processo administrativo. De outro, impõe-se a confissão da participação no crime sem a garantia da extinção da ação penal. Ou seja, o signatário do termo fica protegido das sanções administrativas, mas é muito provável que seja processado criminalmente e que tenha contra si suas próprias declarações prestadas ao Cade, onde reconheceu o comportamento delitivo.
Ainda que o signatário do compromisso seja uma pessoa jurídica — contra a qual não caberá ação penal — a confissão cria o risco de um processo criminal para as pessoas físicas que a integram, com elementos fortes para a acusação, uma vez que a própria instituição reconheceu a prática do delito em seu seio. Em suma, a assinatura do termo de compromisso equivale a uma nota de culpa confessa, que será usada para instruir uma ação penal contra o próprio signatário ou seus integrantes.
Resultado: a possível inibição da assinatura de termos de compromisso. Poucas empresas ou pessoas aceitarão com tranquilidade confessar a prática de um crime em troca da imunidade administrativa, sem que a ameaça de um processo penal fique afastada. Mas, mesmo que tal situação não ocorra, mesmo que aumente o número de compromissos, restará a iniquidade de exigir-se uma confissão e uma colaboração não previstas em lei.
Pode-se até compreender a intenção de reduzir os benefícios do termo de compromisso, com o objetivo de direcionar os participantes de cartéis para a leniência, uma vez que ela é mais efetiva do ponto de vista da investigação. Mas
parece que tal finalidade não pode ser obtida com a torção dos parâmetros legais, exigindo-se — quando a lei não prevê — que o investigado produza prova contra si mesmo para posterior uso em ação criminal.
Por isso, ou bem se altera o regimento do Cade para afastar a exigência supralegal da confissão no compromisso de cessação, ou bem se modifica a Lei 12.529/2011, garantindo-se ao compromissário a mesma extinção de punibilidade penal prevista para a leniência (ou ao menos uma redução significativa de pena). Do contrário, o acordo de cessação de conduta, que pode ser um mecanismo importante no combate ao cartel, será relegado à condição de um instrumento periférico do sistema de defesa da concorrência.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 10 de setembro de 2013, 8h00