Skip to main content

“Militares perceberam que o golpe seria uma aventura desastrosa”, diz jurista Pierpaolo Bottini

Criminalista e professor de Direito Penal da USP, Pierpaolo Bottini é um dos mais importantes advogados do País e chegou a ser cotado para compor o Supremo Tribunal Federal (STF) na vaga aberta, em maio, pela aposentadoria de Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça e Segurança Pública. Aos 47 anos, Bottini se destacou no plano nacional pela defesa de parlamentares, empresários e executivos acusados de desvios na Operação Lava Jato, da qual é um dos maiores críticos por, segundo ele, falta de transparência nas decisões de magistrados que atuaram no caso. Durante os dois primeiros governos de Lula, ele foi diretor do Departamento de Modernização Judiciária (2004 a 2005) e secretário da Reforma do Judiciário (2005 a 2007), ambos os cargos no Ministério da Justiça. Hoje, ele acha que o País está perdendo o controle do crime organizado e critica os que defendem o endurecimento das leis, como o fim das “saidinhas”, por entender que a superlotação carcerária só aumenta a mão de obra para as facções criminosas. Sobre a tentativa de golpe orquestrada por Bolsonaro e seus principais aliados, o jurista entende que ainda precisam ser feitas mais investigações até se chegar à prisão do ex-presidente, mas afirma que se não respeitar as medidas cautelares impostas a ele, o ministro Alexandre de Moraes pode decretar sua prisão preventiva.

O que achou do indiciamento de Bolsonaro pela PF após ter sido acusado pelo tenente-coronel Mauro Cid, na delação premiada, de ter mandado falsificar certificados de vacina do ex-presidente e da filha?
Nesse caso, para além do depoimento, há dados de corroboração que confirmam sua veracidade. Com o indiciamento, o delegado da PF reconhece que Bolsonaro é suspeito de participar da falsificação e, agora, depende do Ministério Público oferecer a denúncia para que a ação penal seja aberta.

Como analisa a liberação dos documentos relativos aos depoimentos dos generais pelo ministro Alexandre de Moraes, mostrando que Bolsonaro comandou a tentativa de golpe?
Temos de tomar cuidado porque são depoimentos de testemunhas. É necessário que haja provas para embasar os depoimentos. No entanto, as informações que surgem são as de que houve o envolvimento muito grave de autoridades de alto escalão numa tentativa de romper com o regime democrático, de alterar o resultado das eleições e decretar um estado de exceção sem qualquer razão que justificasse tal coisa. Não eram pessoas que estavam somente pensando em dar um golpe de Estado. Eles chegaram a planejar e a minutar, fazer reuniões, monitorar opositores e autoridades. Os documentos revelam o início de uma execução do plano de golpe de Estado.Nos depoimentos, o brigadeiro Baptista Júnior (ex-comandante da Aeronáutica) disse que o general Freire Gomes (ex-comandante do Exército) chegou a ameaçar Bolsonaro de prisão caso ele insistisse em continuar com as ilegalidades…
Para você ver a que ponto as coisas chegaram: um comandante militar da ativa teve de se manifestar dessa forma, mostrando o grau de fragilidade das instituições naquele momento. Sabemos que o comandante da Marinha (almirante Almir Garnier) apoiava a iniciativa do golpe e teria colocado as tropas sob seu comando à disposição para a ruptura. Isso representa um abalo no sistema democrático. Se isso for comprovado, terá de ser objeto de repressão penal.

No início, Bolsonaro queria fazer uma intervenção no TSE para cancelar a eleição e até prender o ministro Alexandre de Moraes e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. A intenção era impedir Lula de assumir a presidência, não é?
Exato. O objetivo era claro: questionar o resultado das eleições com base nas desconfianças sobre as urnas eletrônicas e questionar a lisura do pleito. A partir daí, usariam essas coisas como base para estabelecer um Estado de Sítio ou de Defesa e a prisão de autoridades. Em seguida, haveria a tomada do poder pelas armas. A falta de lisura das eleições seria o motivo, algo que estava sendo ensaiado desde muito tempo, ao longo de seu governo.

Tudo começou com a questão do voto impresso, que culminou depois com os militares fazendo aquela investigação na eleição, quando concluíram que não houve indício de fraude, né?
Sim. A gente percebe uma tentativa de buscar outros personagens para explicitar essa suposta fraude. Em determinado momento, eles falam de um técnico em tecnologia do interior de Minas Gerais e vão atrás de elementos para tentar justificar essa tomada de poder pelo golpe. Evidentemente, esses aspectos seriam secundários, né? Depois que acontece um golpe de Estado, em que o poder é tomado pela força, o motivo inicial acaba sendo deixado de lado. Mas eles buscavam como estopim uma justificativa que, na cabeça deles, era a falta de lisura eleitoral.

A intenção era a intervenção no TSE com a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), depois evoluiu para Estado de Defesa e, finalmente, para Estado de Sítio. Foi se agravando, em progressão, para a tentativa de golpe, que parecia iminente.
Os instrumentos discutidos juridicamente foram evoluindo, dentro de uma gravidade crescente. A GLO é um instrumento que já foi utilizado no regime democrático, mas é uma intervenção localizada. Estado de Defesa é a supressão de direitos e garantias fundamentais de forma localizada; e o Estado de Sítio já é a supressão em todo o território nacional. Então a gente vê que havia uma tentativa de busca por algum ato normativo jurídico que embasasse a tomada de poder pela força, que foi cogitada e tentada naquele momento.

Está cada vez mais claro que só escapamos do pior porque o general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Jr. não toparam o golpe. Se dependesse do almirante Garnier estaríamos hoje em um estado de exceção?
Sim. Acho que foram vários motivos. Claro que essas peças foram importantes, mas também temos de lembrar que houve ali um rechaço internacional a esse golpe, em que vários países mandaram um recado muito claro: que o Brasil teria problemas na comunidade internacional se rompesse com o regime democrático. Houve também a resistência do Poder Judiciário. Essa resistência fez com que alguns militares percebessem que seria uma aventura desastrosa, uma aventura sem um final feliz.

Podemos dizer que, em função dos documentos divulgados, Bolsonaro foi o arquiteto dos ataques às sedes do Três Poderes?
A gente precisa colher mais provas a respeito disso, mas tudo indica que existe essa relação, porque seria muita coincidência você ter a cúpula de um governo no mês de dezembro discutindo ativamente e abertamente um golpe de Estado e, algumas semanas depois, pessoas ocupando prédios públicos com o mesmo objetivo. Seria mera coincidência? No Direito Penal tudo precisa ser provado, não existem meras presunções, mas tudo indica que essas provas estão surgindo e vão levar essas pessoas a responderem também pelos atos de 8 de janeiro.

Já existem elementos para que Bolsonaro seja condenado e preso?
Ainda não existe nem mesmo uma denúncia formulada. Só existem depoimentos, ainda que muito contundentes, que podem levar a provas também contundentes. Mas eu acredito, e os próprios investigadores também, que é preciso investigar mais para estabelecer esse link importante entre as reuniões e as tratativas do 8 de Janeiro, que é o início da execução de tudo isso. No entanto, é importante a tomada de medidas cautelares contra os principais envolvidos. É necessário que as autoridades monitorem Bolsonaro e seus ministros, porque se houver indícios de que estão aliciando testemunhas, destruindo provas, combinando versões com outros acusados ou tentando fugir para não se submeterem à aplicação da lei penal, então são cabíveis uma série de medidas, inclusive a prisão preventiva. Além de Bolsonaro há investigações contra os generais Augusto Heleno e Braga Netto, além do general Paulo Sérgio e do almirante Garnier. Eles também devem ser punidos?
Pelos elementos que foram levantados até o momento, eles tiveram uma participação ativa e muito próxima a Bolsonaro nessa elaboração e execução do golpe de Estado. É uma conduta grave. A gente não está aqui diante de uma mera cogitação, de um mero planejamento sem conseqüências. Essas pessoas buscaram romper o regime democrático. A gente precisa mostrar que, no nosso país, isso é inaceitável e intolerável. Todas as pessoas que participaram de alguma forma desse planejamento precisam sofrer as consequências previstas em lei. Como vê a discussão da criminalização da maconha, que passou na CCJ do Senado, enquanto a descriminalização está sendo proposta no STF. Das duas propostas, qual é a mais plausível?
Com todo respeito que o Senado merece, as suas propostas vão na contramão da descriminalização do uso de drogas. O mundo já chegou à conclusão que o usuário de drogas, em especial o viciado, precisa de tratamento e não de repressão penal. Qualquer pessoa que conviva com alguém que é viciado na família, sabe que ela precisa de acompanhamento terapêutico, e não de prisão. Quando você criminaliza o uso de drogas, está fechando as portas da assistência pública à saúde, dizendo para elas que a única alternativa que têm é a repressão penal. Isso não funcionou em nenhum lugar do mundo. Então, o que a gente tem visto em vários países, em especial na América Latina, é a descriminalização do uso. O tráfico vai seguir sendo crime, sendo combatido, mas pelo menos o uso não será criminalizado.

O STF está formando maioria pela descriminalização. Falta um voto para se fazer a distinção entre usuário e traficante. Nessa votação ainda inconclusiva, os ministros tendem a fixar que o portador de menos de 60g de maconha é só consumidor e não traficante. É uma boa dosagem?
Divergências entre os ministros são normais. Alguns defenderam 100g e outros, como o ministro André Mendonça, defenderam 10g, mas fixou-se uma maioria até o momento por 60g. Acho uma boa quantidade. Participei de uma comissão que apresentou um projeto de lei na Câmara dos Deputados, da qual fizeram parte o médico Dráuzio Varella, o ministro Ribeiro Dantas, o desembargador Ney Belo, e nós apresentamos uma proposta que fixava alguns patamares. Mas o importante é que seja fixado objetivamente as quantidades e a diferença entre usuário e traficante como pede o STF. Se você deixar na mão da autoridade policial, no momento da apreensão, para que ela aponte se a pessoa detida é usuária ou traficante, é um grande risco. Muitas vezes a análise é carregada de preconceitos. Uma pessoa que porta determinada quantidade de drogas é considerada usuária se for apreendida num bairro nobre da cidade e, se for branca, é liberada. Já se for negra, e é pega com a mesma quantidade na periferia, ela pode ser enquadrada como traficante.

Fonte: https://istoe.com.br/militares-perceberam-que-o-golpe-seria-uma-aventura-desastrosa-diz-jurista-pierpaolo-bottini/

back