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A nova lei de criptoativos e a lavagem de dinheiro

A lei não resolverá todos os problemas, mas é um importante passo para criar um contexto de trocas de ativos e de investimentos mais confiável e menos permeável às atividades criminosas

A recente quebra da FTX, empresa do ramo de criptoativos, gerou uma onda mundial de preocupações com a falta de regras claras sobre o funcionamento das instituições que oferecem serviços de compra, venda e custódia de ativos digitais. Além disso, recentes investigações policiais revelaram o uso dessas plataformas para a lavagem de dinheiro oriundo de infrações penais. Nesse contexto, o legislador brasileiro, sensível aos apelos por um maior controle no setor, decidiu discutir e votar a norma sancionada esta semana – a Lei nº 14.478/22, que regulamenta as atividades das prestadoras de serviços de ativos virtuais.

Vale uma breve passada de olhos no objeto da lei, e em algumas de suas disposições.

Criptoativos são representações virtuais de valor, que podem ser adquiridas, vendidas, transferidas ou usadas para pagamentos ou investimentos. Uma das formas de se obter um ativo digital é acessar uma prestadora de serviços especializada e comprar aquele que lhe pareça mais atrativo, como um bitcoin, um ethereum, um litecoin. A partir de então, é possível usá-lo para adquirir bens ou serviços – caso a contraparte aceite aquele ativo – ou para guardá-lo como investimento.

As operações realizadas nesse setor são registradas por um sistema de blockchain – uma espécie de livro-razão compartilhado e distribuído por milhares de dispositivos conectados a uma mesma rede -, de forma que não se pode apagar ou esconder as transações e os endereços que enviaram e receberam ativos digitais.

Como se trata de uma forma nova de inteiração financeira, há aspectos que merecem maior atenção. Uma delas é seu possível uso para a lavagem de dinheiro, para a ocultação de bens de origem criminosa.

Ainda que as negociações com ativos digitais sejam registradas no sistema blockchain, como dito, seus beneficiários podem ser anônimos. É possível adquirir criptoativos sem que o adquirente seja identificado, bastando para isso o acesso à internet e um endereço eletrônico, de forma que as pessoas envolvidas nas transações podem permanecer ocultas. Para além disso, a facilidade de sua transferência para outros países, em questão de segundos, faz desse setor um atrativo para aqueles que querem mascarar recursos ilícitos.

A Chainanalysis, instituto que fornece dados, software, serviços e pesquisas para agencias governamentais, bolsas, instituições financeiras e empresas de seguros e cibersegurança, publicou em 2020 um relatório que apontava a movimentação, no ano anterior, de US$ 1,8 bilhão em bitcoins de possível origem criminosa, transferidas para plataformas de compra e venda de ativos virtuais. No famoso caso Wannacry, hackers responsáveis por um ataque cibernético mundial a milhares de computadores exigiram o recebimento dos pagamentos para suspender as agressões em bitcoins pela facilidade de ocultar seu destino por meio de inúmeras transações eletrônicas em diversos países. O mesmo aconteceu no caso Silkroad, em que bitcoins eram utilizados para o pagamento de compras no mercado on-line de ilícitos. No Brasil, no âmbito da chamada Operação Spoofing, a Polícia Federal identificou que o responsável pela coleta ilegal de dados de celulares de autoridades públicas recebeu pagamentos para fornecer tais dados através de bitcoins.

Tais casos não maculam o mundo dos ativos digitais. Ainda que sejam eventualmente usados para a prática de crimes, tais instrumentos são relevantes para facilitar transações, desburocratizar formas de pagamento e criar ambientes novos de investimento longe dos aparatos estatais. O que parece necessário é regulamentar alguns aspectos desse ambiente para garantir a segurança dos usuários e reduzir a incidência de seu manejo por grupos criminosos.

Nesse cenário, a aprovação da Lei nº 14.478/22 é bem-vinda. Não se trata de regular os criptoativos em si, mas as empresas que prestam o serviço para sua compra, venda, transferência e custódia – chamadas exchanges. Pelas novas regras, tais instituições somente poderão funcionar se autorizadas por órgão público específico – que deve ser o Banco Central do Brasil – que também supervisionará o exercício de suas atividades.

Talvez a inovação mais importante tenha sido a inclusão de tais empresas no rol de pessoas sensíveis da lei de lavagem de dinheiro. Trata-se de uma lista de setores usados com mais frequência para a prática do crime, como o bancário, o de corretagem de imóveis, de leilões de arte ou de comércio de bens de luxo. Os profissionais que atuam nessas áreas têm a obrigação de colaborar com o Poder Público na prevenção à lavagem de dinheiro, acompanhando atividades de seus clientes e informando ao Coaf atos suspeitos de ocultação de bens.

A inclusão das prestadoras de serviços de ativos virtuais nessa lista é um importante passo para evitar que esse seja um campo atrativo para a lavagem de dinheiro. Abre-se a possibilidade de maior fiscalização e controle, com a participação da iniciativa privada. Caberá agora ao Banco Central do Brasil, órgão com experiência nesse setor, detalhar as regras que deverão ser seguidas, as informações a cadastrar e os fatos passíveis de comunicação ao Coaf.

Com tais mecanismos, o serviço prestado pelas exchanges será regulado e seu uso mais seguro. A interação com o Poder Público na prevenção da lavagem de dinheiro tornará mais difícil o manejo dessas empresas para encobrir operações ilícitas, garantindo-se um ambiente de negócios mais sólido. A lei não resolverá todos os problemas, mas é um importante passo para criar um contexto de trocas de ativos e de investimentos mais confiável e menos permeável às atividades criminosas.

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Valor Econômico 23/12/2022

https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/12/23/a-nova-lei-de-criptoativos-e-a-lavagem-de-dinheiro.ghtml

 

 

 

 

 

 

 

 

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