Em mais uma derrapada retórica que, segundo a imprensa internacional, está sepultando seu governo, o presidente Jair Bolsonaro atacou nesta quinta-feira (30/4), o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre Moraes — que desconstituiu a nomeação do diretor-geral da Polícia Federal escolhido pelo Planalto.
O resultado foi que o ministro do STF, um dos mais discretos e cautelosos, acabou por merecer o desagravo e a solidariedade de praticamente todos os setores da comunidade jurídica. Até mesmo da parte daqueles que entendem ter o presidente da República autonomia para nomear quem quiser para cargos tidos como de confiança.
Nesta quarta-feira (29), o presidente desautorizou a Advocacia-Geral da União e disse que iria recorrer da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que impediu a posse do delegado Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal.
Como a decisão sobre o caso foi monocrática, a AGU pode recorrer para que Moraes reavalie o próprio entendimento ou para levar o caso ao Plenário. Assim, caberia aos 11 ministros da corte decidir se a nomeação, de fato, deixou de observar os princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público, como afirmou Moraes.
Há uma discussão jurídica sobre se o processo ainda pode ser julgado ou se estaria “prejudicado”, termo usado para definir situações em que o ato atacado já não tem mais efeito, já que na tarde da mesma quarta o presidente revogou a nomeação. A desistência foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União.
As declarações desta quinta, no entanto, não pegaram bem no mundo jurídico. O ministro Gilmar Mendes foi um dos primeiros a se pronunciar sobre o assunto. “As decisões judiciais podem ser criticadas e são suscetíveis de recurso, enquanto mecanismo de controle. O que não se aceita — e se revela ilegítima — é a censura personalista aos membros do Judiciário. Ao lado da independência, a Constituição consagra a harmonia entre Poderes”, declarou.
O ministro Luís Roberto Barroso destacou a competência Moraes. “O ministro chegou ao Supremo Tribunal Federal após sólida carreira acadêmica e de haver ocupado cargos públicos relevantes, sempre com competência e integridade. No Supremo, sua atuação tem se marcado pelo conhecimento técnico e pela independência. Sentimo-nos honrados em tê-lo aqui”, afirmou.
Durante o julgamento em Plenário virtual do STF em que se referendou a decisão liminar que suspendeu a eficácia do artigo 1º da Medida Provisória 928/2020, que restringia a Lei de Acesso à Informação, outros ministros prestaram solidariedade a Alexandre, que relatava a discussão. O ministro Luiz Edson Fachin ressaltou a admiração pelo colega e a “honra de estar ao seu lado na bancada do Supremo Tribunal Federal”.
Já Carmen Lúcia afirmou que Alexandre é um ministro “que honra a magistratura brasileira como honrou a advocacia e honra sempre a carreira de magistério de Direito Constitucional”.
O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, disse ser testemunha do conhecimento do colega e a dedicação ao Direito e à causa pública em longa trajetória. “Eu o conheço desde 1986. Fica aqui o meu carinho, meu abraço virtual ao querido colega e amigo ministro Alexandre de Moraes.”
“A Associação dos Magistrados Brasileiros alerta sobre a necessidade de respeito à independência e à autonomia dos juízes, desembargadores e ministros para desempenharem suas funções constitucionais. No Estado de Direito, decisões judiciais devem ser cumpridas. Eventuais contestações devem ocorrer por meio dos recursos cabíveis e assegurados a todos os cidadãos”, disse em nota Renata Gil, presidente da AMB.
“Lamentável a postura do presidente de menosprezar e atacar um membro do Supremo Tribunal Federal por causa de uma decisão que não foi do seu agrado. Na democracia esse comportamento é inconcebível, o que parece demonstrar mais uma não estar à altura do elevado cargo que ocupa”, destacou o desembargador Jorge Maurique, ex-presidente da Ajufe.
O advogado Igor Tamasauskas destacou que a postura do presidente só serve para prejudicar ainda mais o quadro institucional brasileiro. “Decisão judicial deve ser cumprida. O ministro, constitucionalista de escola, identificou fatos graves para amparar uma decisão severa sobre as atribuições presidenciais. Competiria ao presidente demonstrar a inexistência desses fatos, nos autos, para pedir a reforma da decisão. Discutir em mídias sociais só conturbará mais ainda o já delicado quadro institucional brasileiro.”
“Todo cidadão tem o direito de crítica de qualquer decisão judicial, de qualquer esfera. O que se espera é que as relações entre Poderes de Estado respeite a urbanidade necessária e os limites dos próprios poderes. Creio que neste tema específico será aberta a oportunidade do STF rever os limites que o Judiciário possui para não ingressar na esfera do Poder Executivo. O Judiciário não pode tudo”, disse Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP.
Para o tributarista Igor Mauler Santiago, “a nomeação de um ministro do STF parte do presidente, mas passa pelo crivo do Senado”. “É também fortemente escrutinada pela comunidade jurídica, inclusive pela própria Corte. Quem supera todos esses testes está muito além da amizade, ainda que esta acaso exista em alguma situação concreta.”
“O presidente da República se equivoca ao equiparar o STF a um clube para o qual chamamos apenas amigos. É evidente que ninguém indica desconhecidos para o cargo. Deve haver uma empatia, a confiança de que ele desempenhará bem suas funções, a certeza sobre seu caráter. Mas reduzir esse momento solene a um ato de camaradagem revela a falta de clareza que o presidente tem sobre o papel e a importância do STF”, declarou o professor e criminalista Pierpaolo Bottini.
Indicado em 2017 pelo presidente Michel Temer, Moraes, então ministro da Justiça, assumiu no mesmo ano a vaga do ministro Teori Zavascki, morto em acidente aéreo. Assim como Temer, Alexandre é graduado em Direito e constitucionalista, área que analisa e interpreta a Constituição de 1988.
Em entrevista ao UOL também nesta quinta-feira (30), o ex-presidente Lula, no entanto, criticou a decisão monocrática de Alexandre. Na opinião do petista, a atitude do ministro só se justificaria caso ficasse provado que Ramagem cometeu algum ilícitio que o impedisse de ocupar o cargo. O ex-presidente afirmou que as indicações cabem ao presidente da República.
“Não pode um único juiz da Suprema Corte tomar atitude de evitar. Não podemos permitir que as instituições ajam politicamente. […] Que a pessoa prove que o delegado tem um ilícito, aí sim ele está correto [em barrá-lo]”, disse.