Decisão confunde mera inadimplência com sonegação fiscal e enxerga apropriação indébita onde não existe
Gustavo Brigagão
18/03/2020
No final de janeiro, a Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) organizou um proveitoso debate em São Paulo – transmitido ao vivo pelo JOTA – que teve por objeto o surpreendente rumo que tomou o julgamento do RHC 163.334 pelo Plenário do STF, ao confirmar decisão que havia sido proferida pela 1ª Seção do STJ no sentido de tornar crime o não pagamento de ICMS declarado.
Participaram do evento promovido pela ABDF o advogado que representou os contribuintes impetrantes do habeas corpus (HC), o tributarista Igor Mauler Santiago, e o criminalista Pierpaolo Bottini, que atuou no caso como representante dos amici curiae FIESP e FECOMERCIO-SP.
Qualquer que seja o ambiente em que esse debate se dê – e no acima mencionado não foi diferente – é marcante a perplexidade de todos com a criação pelo Poder Judiciário de um novo crime tributário, não previsto em qualquer dispositivo legal em vigor.
Exatamente por esse motivo, a decisão proferida no referido RHC fere frontalmente os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, aplicáveis de forma específica e enfática a ambos os ramos do Direito em exame, tanto o Penal quanto o Tributário.
De fato, entre todas as hipóteses mencionados na Lei 8137/90, a única que guardaria algum grau de comparabilidade com os fatos examinados no julgamento seria a referida no seu artigo 2, II, pelo qual é crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos” (os grifos são nossos).
Vê-se que o tipo penal acima descrito se refere a dois elementos cuja presença – de um ou de outro – é absolutamente necessária à configuração da prática do crime: a existência de tributo (i) “descontado” ou (ii) “cobrado” pelo sujeito passivo resultante de obrigação tributária nascida nas mãos de terceiros que com ele transacionem.
O primeiro caso se dá, por exemplo, no Imposto sobre a Renda descontado na fonte (IRF), e o segundo, no ICMS devido por substituição tributária (ICMS-ST). Essas são situações em que o valor do tributo é, em si, “descontado” ou “cobrado” daquele com quem o Fisco mantém relação jurídico-tributária direta, ou seja, o real contribuinte do imposto.
Nessas hipóteses, apesar de não manter relação de sujeição passiva direta com o Fisco, o agente retém ou cobra o tributo do seu real contribuinte. Se recebido o valor e não realizado o seu repasse aos cofres públicos, aí sim, restará configurada a prática da “apropriação indébita tributária”, prevista no artigo 2, inciso II, da Lei 8137/90.
Na forma em que se dá a incidência do ICMS próprio – situação objeto de julgamento no RHC 163.334 –, o contribuinte não desconta nem cobra do consumidor final qualquer imposto que seja por este último devido.
A relação jurídico-tributária se estabelece diretamente entre o vendedor da mercadoria, contribuinte do imposto, e o Fisco. O único valor que o vendedor cobra do consumidor final tem a natureza de preço, e não de tributo.
O imposto é inserido nesse preço como custo e é destacado na nota fiscal para fins de mero controle, por força de expressa determinação da legislação aplicável nesse sentido (art.13, §1º, I, da LC 87/96).
Não há, portanto, no ICMS próprio, como indica a própria nomenclatura utilizada, tributo devido pelo consumidor final que seja, no ato da venda, dele retido ou cobrado pelo vendedor da mercadoria.
O ICMS incidente na operação é valor que resulta de obrigação ex lege configurada e estabelecida exclusivamente entre o vendedor da mercadoria (varejista) e o Estado. Como qualquer outro custo, o ICMS próprio deve ser considerado na formação do preço e nele inserido, para que seja economicamente repercutido ao consumidor final.
Mutatis mutandis, é o que ocorre com os valores devidos aos fornecedores das mercadorias vendidas. Embora o custo a eles relativo tenha sido considerado na composição do preço – e, portanto, repercutido ao consumidor final –, não há que se falar em qualquer relação jurídico-obrigacional entre esse consumidor e os fornecedores do varejista.
Se esses fornecedores não receberem o que lhes for devido, estaremos diante de mera inadimplência do varejista, e jamais de apropriação indébita de valores que lhe tenham sido entregues pelo consumidor final para mero repasse aos referidos fornecedores.
Isso porque, no exemplo acima, a relação jurídica se estabelece única e exclusivamente entre o varejista e os fornecedores, e não entre estes e os consumidores finais. Da mesma forma, o ICMS próprio. A relação jurídico-tributária se estabelece entre o Fisco e o varejista, e não entre o Fisco e os consumidores finais.
A ausência de recolhimento do ICMS próprio configura, portanto, mera inadimplência, e não a apropriação indébita tributária prevista no dispositivo de lei acima comentado.
Pelos votos proferidos por alguns ministros no julgamento do RHC, a impressão que se tem é a de que julgavam hipótese diversa, que nada tinha a ver com os fatos relatados nos autos. De fato, falavam em sonegação, quando o caso julgado tinha por objeto o mero não pagamento de ICMS próprio DECLARADO – situações absolutamente incompatíveis entre si.
Falavam em dolo e em fraude, sem que tivesse sido demonstrado nos autos qualquer prática do contribuinte que fundamentasse qualquer conclusão no sentido de que esses elementos estariam presentes.
Com efeito, o fato de o ICMS ser próprio e ter sido “declarado” demonstra, em si, a impossibilidade da configuração de sonegação ou fraude por parte do contribuinte impetrante do referido HC. O mero não pagamento do tributo não pode chegar a tanto.
Pelos votos proferidos por alguns outros ministros, verificou-se que eles se fundamentaram no argumento de que o precedente firmado pelo próprio STF, em sede de repercussão geral, relativo à impossibilidade de o ICMS integrar a base de cálculo do PIS/Cofins – por ser receita do Estado, e não do contribuinte – seria demonstração inequívoca da existência de apropriação indébita tributária, nas hipóteses em que o respectivo montante não fosse recolhido aos cofres públicos.
Com a devida vênia, esse argumento também não procede. O precedente relativo à integração do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins tratou do conceito de receita e fixou o entendimento de que o valor correspondente ao ICMS recebido do consumidor final pelo contribuinte não estaria nela inserido, para esses fins específicos. Consequentemente, o valor do imposto estadual não poderia sofrer a incidência daquelas contribuições.
Ora, o fato de o ICMS não ser considerado receita própria do contribuinte para fins específicos do PIS/Cofins não tem o condão de deslocar a sujeição passiva do ICMS incidente na venda da mercadoria para o consumidor final que a adquire. Essa relação, como demonstrado acima, se estabelece exclusivamente entre o Fisco e o varejista, contribuinte do imposto. Esse varejista segue, portanto, sem “descontar” ou “cobrar” impostos de terceiros.
Logo, não há a configuração do crime por absoluta falta de adequação da hipótese ao tipo penal previsto no art. 2 da lei 8137/90, configurador da apropriação indébita tributária.
O que temos, portanto, é que, além de não estar amparado em qualquer fundamentação jurídica consistente, porque confunde mera inadimplência com sonegação fiscal e enxerga apropriação indébita onde não existe, o entendimento alcançado no julgamento do RHC 163.334 acabará, com a devida vênia, por incentivar contribuintes que declaram os seus impostos, mas não os pagam – por não terem, por exemplo, caixa para fazê-lo – a simplesmente deixar de declará-los e, aí sim, praticar crime de sonegação fiscal.
Esse entendimento acabará, também, por afugentar investimentos no país, tanto atuais quanto futuros. Afinal, quem investirá em uma nação que prende os seus contribuintes por mera inadimplência, mesmo que não envolvidos em qualquer prática de sonegação?
No Brasil, a Constituição determina que não há prisão por dívidas, e as tributárias não estão entre as exceções a essa regra. Isso é também o que preceitua o artigo 7, inciso VI, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), da qual o Brasil é parte signatária.
Um outro aspecto dessa questão é a incoerência desse precedente do STF com a jurisprudência dele próprio e do Superior Tribunal de Justiça, sobre aspectos que também se referem ao mero não pagamento de tributos (inadimplência).
Com efeito, a jurisprudência do próprio STF é pacífica no sentido de expressamente vedar as denominadas sanções políticas, pelas quais o Fisco se utiliza de instrumentos de coação para forçar o contribuinte a pagar os tributos. São exemplo dessa jurisprudência os enunciados das Súmulas 70, 323 e 547, que, respectivamente, proíbem as autoridades fiscais de interditarem o estabelecimento do contribuinte em débito, apreenderem as suas mercadorias, ou impedirem o exercício das suas atividades profissionais, com o objetivo de coagi-los ao cumprimento das suas obrigações tributárias.
Há, também, a jurisprudência pacífica do STJ – Súmula 430 – no sentido de que o mero não pagamento de tributo não é suficiente para fundamentar o redirecionamento da execução fiscal para os administradores da empresa, que só pode existir se houver a prática de ato que configure excesso de poderes a eles outorgados pelos estatutos sociais da empresa, ou infração à lei, o que o STJ entendeu inexistir no caso de mero não pagamento de tributo.
Ora, que sentido faz a existência de todas essas vedações aos possíveis abusos que venham a ser praticados contrariamente ao contribuinte, se, com esse novo posicionamento adotado pelo STJ e pelo STF, é possível a própria prisão do contribuinte? Que maior instrumento de coação poderia ser disponibilizado ao Fisco? Ou o contribuinte paga o tributo que deve, ou é preso!
A mera inadimplência não pode ser configuradora de crime em hipótese alguma, pelo menos enquanto vigente o atual arcabouço jurídico constitucional brasileiro.
No mesmo sentido, o voto do ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do ARE 999.425 (DJe 16.03.2017), pelo Tribunal Pleno do STF, em que se examinou a constitucionalidade da Lei 8137/90. Transcreve-se, abaixo, o trecho pertinente:
“(…) as condutas tipificadas na Lei 8137/1990 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos (…). Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco.”
Se há contribuintes que, apesar de declararem os seus impostos, buscam de forma contumaz financiar-se por meio do atraso no seu pagamento, que os fiscais, e não a polícia, corram atrás desses inadimplentes e lhes apliquem as medidas coercitivas e as exorbitantes penalidades tributárias já previstas na legislação – por sinal, entre as maiores do mundo.
Prender meros inadimplentes é injurídico e insensato!
Mas é com essa nova regra e situação que os contribuintes brasileiros terão que conviver daqui por diante. Note-se, ainda, que, por não se tratar o RHC de uma ação de controle concentrado, a decisão em exame não tem efeito erga omnes nem, muito menos, efeitos vinculantes para as instâncias inferiores, que não estão obrigadas, em tese, a seguir essa orientação do STF.
Como bem lembraram Igor e Pierpaolo, no debate referido no início deste artigo, essa ausência de natureza vinculante do precedente é, por um lado, boa porque permite que essas instâncias inferiores mantenham o entendimento que sempre preponderou na jurisprudência brasileira – o de que a mera inadimplência não é crime –, mas, por outro lado, é preocupante porque aquelas instâncias poderão criminalizar a conduta de mera inadimplência sem se ater aos parâmetros limitadores definidos pelo STF: necessidade da existência de contumácia e dolo.
Daí a importância dos embargos de declaração que, segundo nos relataram os mencionados debatedores, serão opostos nos autos do RHC para, entre outros pedidos, solicitar que sejam estabelecidas, de forma clara e precisa, os reais contornos daqueles dois conceitos. Somente isso propiciará que o contribuinte tenha exata noção das circunstâncias que terão que estar presentes para que ele possa vir a ser considerado praticante de inadimplência contumaz, com dolo específico de lesar os cofres públicos.
A imprensa noticia que é absoluta a falta de uniformidade entre as legislações estaduais no que se refere à definição de contumácia, o que gerará distorções concorrenciais e agravamento ainda maior da insegurança jurídica propiciada pela decisão proferida no julgamento desse RHC.
Note-se, ainda, que por se tratar de nova hipótese delituosa, não prevista em lei, deverá também ser esclarecido se, somente a partir do julgamento dos embargos acima referidos, poderá a inadimplência dolosa e contumaz vir a ser considerada crime. Afinal, é isso o que determina o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal, pelo qual só se considera criminosa a prática de ato após a criação de norma que a defina como tal.
No caso, essa garantia constitucional só poderá ser considerada observada após o julgamento dos citados embargos de declaração, quando, espera-se, serão dados os contornos necessários a que o contribuinte saiba com clareza o que não deve fazer.
Até então, reinará a insegurança jurídica.
Gustavo Brigagão – Presidente da ABDF – Associação Brasileira de Direito Financeiro. |