* Este artigo foi produzido para apresentação no seminário no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), realizado em 28/8/2019.
Se formos explorar o campo semântico da expressão “criminalização da advocacia” é preciso advertir que, obviamente, não estamos dizendo que o advogado não pode praticar crimes no exercício da profissão. Exceção feita à imunidade material por manifestações relacionadas à discussão da causa, podemos ser alvo de ações e investigações criminais.
Se o advogado recebe algo produto de crime e a esconde ou guarda, prática receptação. Idem se guarda drogas no cofre do seu escritório ou participa da elaboração do plano para a prática de um assalto. Pode sonegar impostos se recebe honorários e não os declara e recolhe o que é devido, ou mesmo lavar dinheiro se por meio de um contrato fictício recebe valores estratosféricos e os repassa a terceiros como propina ou ao próprio cliente como meio de torná-lo lícito.
Mas quando usamos a expressão “criminalização da advocacia”, não estamos aludindo a nenhuma prática criminosa propriamente dita como as acima exemplificadas. Estamos falando de algo canhestro que tem a ver com a intimidação do advogado que incomoda a atuação repressiva. Ora com a indevida identificação do advogado com seu cliente, ora com a busca de provas no escritório do profissional da defesa ou mesmo com o questionamento dos seus honorários recebidos como contraprestação pelo trabalho.
Mas há coisas mais bizarras como a identificação do trabalho do advogado com a prática de obstrução de justiça. Até mesmo manifestações nos autos e lançadas na discussão da causa, em defesa do réu ou investigado, são tomadas como criminosas. A imunidade constitucional cede passo ao furor punitivo.
A demonização do advogado
Junto com a maré montante da agenda punitiva vem a desgraça do advogado. Ora apontado como um estorvo, ora visto como cúmplice do acusado ou investigado. Assim é que, a propósito de um artigo na Folha de São Paulo que o Min. Fachin publicou, o desembargador Rogério Medeiros Garcia de Lima, do TJ-MG, enviou a seguinte carta para o painel dos leitores daquele jornal:
“Aplaudo o ministro do Supremo Luiz Edson Fachin pelo lúcido e corajoso artigo ‘Prescrição criminal e impunidade’ (Tendências /Debates, 11/10/2015). O nobre juiz certamente enfrentará a sanha dos defensores da bandidagem, mas terá o apoio das pessoas de bem deste país.”
O artigo do Ministro, a despeito de bem escrito, pode até ser considerado lúcido por aqueles que concordam com a proposta contida no PLS 658, de autoria do Senador Álvaro Dias [1], mas nada tem corajoso. Faz coro ao atual “sentimento de impunidade”. Caminha, portanto, com a maioria.
O ponto, porém, é a forma pela qual os advogados são retratados: “defensores da bandidagem” e, na melhor das hipóteses para nós advogados, somos pessoas do mal, já que as “de bem” vão apoiar a tese do ministro. Seria o caso de se perguntar: e os que não sendo advogados eventualmente discordem da tese do ministro, seriam o quê?
Mais enfático, quando se julgava o Mensalão (AP-470), o conhecido Arnaldo Jabor, cineasta licenciado, retratou a cena judiciária da seguinte forma:
“O STF parecia um palco armado: os advogados dos réus numa tribuna, a imprensa, convidados VIPs. Os advogados se movem em sincronia como discretos bailarinos de ternos, com expressões céticas ou quase cínicas, um tédio proposital nas caras, ostentando a tranquilidade profissional de pistoleiros bem pagos antes de sacar a arma no duelo. (…)
No voto do Lewandowski vimos seu desejo de deixar patente na TV que é resistente a pressões de nossa “rasteira” opinião pública. Quis também exibir cultura jurídica cravejada de citações, criando um mecanismo de defesa preventivo que transmuta sua fama de lento em ‘independência’ minuciosa. O julgamento vai oscilar entre a pressa e a lentidão. Pelos freios e embreagens, a defesa dos réus se fará por meio de chicanas retardadoras, por atrasos programados, por bloqueios e ‘questões de ordem’ com cascas de banana.”
Onze anos antes, já havia sentido na própria pele o estigma que recai sobre o advogado, sobretudo o criminalista, na defesa do juiz Nicolau dos Santos Neto. Aconteceu após ganhar uma liminar no Superior Tribunal de Justiça [2] para revogar outra concedida no TRF da 3ª Região, em mandado de segurança manejado pelo MPF como um Habeas Corpus às avessas, isto é, para dar efeito ativo a recurso que não o tem e sujeitar o recorrido desde logo à prisão.
Indignado, em horário nobre, o jornalista Boris Casoy, conhecido pelo sensacionalismo, disse, sem nenhum pudor, que “enquanto os pobres ladrões de galinha mofavam na cadeia, o advogado do juiz Lalau, pago a peso de ouro com nosso dinheiro rapinado, conseguia sua liberdade”. É de doer, mas a queixa-crime oferecida foi trancada pelo extinto Tacrim-SP em nome do direito de crítica. Sim, todos sabemos: pimenta nos olhos dos outros é refresco…
O retrato da figura do advogado, não é de hoje, é o pior possível. Isso já ocorreu em relação àqueles que atuaram na defesa de supostos contrarrevolucionários na Revolução Francesa, levados à guilhotina, e, depois, no episódio do capitão Dreyfus, na França do fim do século XIX, e em Israel quando se julgou John Demjuk, acusado de crimes gravíssimos praticados no campo de concentração de Treblinka.
No Brasil, o caso mais emblemático deu-se com o saudoso Evaristo de Morais Filho, que defendeu o então presidente Collor e, depois, com Marcio Thomaz Bastos quando defendeu o apelidado Carlinhos Cachoeira.
Em um Estado Democrático de Direito, qualquer acusado, ainda que culpado, tem direito à defesa; e, claro, à melhor defesa. O escândalo, segundo Alan Dershowitz, não está em que ricos sejam primorosamente defendidos e sim quando pobres não o são! [3]
Há um descompasso medonho, assustador, entre o formidável elenco de garantias atribuídos ao investigado e, depois, ao imputado e, por fim, ao sentenciado, na Constituição Federal e a realidade. Não apenas pelo que falam os exaltados âncoras nos jornais televisivos, mas também por aquilo que vem decidindo nossos tribunais.
A nova moda é a obstrução de Justiça
Deu-se que na operação “boca livre”, que apurava desvio de recursos da Lei Rouanet, a delegada de Polícia Federal queria ouvir um investigado como testemunha. Dito investigado sofrera busca e apreensão em sua casa e na sua mesa de trabalho na empresa, além de ter negado, por duas vezes, pedidos de condução coercitiva formulados pela delegada. Testemunha ele, definitivamente, não era e, portanto, jamais poderia ter sido ouvido sob o compromisso legal de dizer a verdade.
Para impedir que a burla de etiquetas gerasse uma monstruosidade, impetrei com meu colega de escritório um Habeas Corpus em favor do investigado a fim de lhe garantir o direito ao silêncio. Aliás, o STF cansa de dizer que o investigado é sujeito de direitos desde a fase pré-processual, como o demonstrou o Ministro Sepúlveda Pertence ao julgar o HC 82.354 e reconhecer o direito de o advogado do investigado ter acesso às informações constantes do inquérito. Na mesma linha o Ministro Celso de Mello:
“Não se pode desconhecer, considerado o modelo constitucional vigente em nosso País, que qualquer pessoa sujeita a medidas de investigação penal qualifica-se como sujeito de direitos, dispondo, nessa condição, mesmo na fase pré-processual, de garantias plenamente oponíveis ao poder do Estado (RTJ 168/896-897, Rel. Min. Celso de Mello), pois – não constitui demasia reafirmá-lo – ‘A unilateralidade da investigação penal não autoriza que se desrespeitem as garantias básicas de que se acha investido, mesmo na fase pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado, atos de persecução criminal’ (RTJ 200/300, Rel. Min. Celso de Mello).”
É que a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de persecução penal por parte do Estado (STF, Pet 5700, decisão monocrática, DJe 23.09.2015).
A 11ª Turma do TRF, por maioria de votos, deferiu a ordem em decisão assim ementada:
“O exame dos autos demonstra que a despeito de o paciente estar sendo tratado como testemunha, sofreu os efeitos decorrentes da medida cautelar de busca e apreensão que, ao que parece, voltaram-se à apuração de materialidade e autoria delitivas. Além disso, a autoridade policial que preside o inquérito viu ser indeferida, por mais de uma vez, a condução coercitiva do paciente, medida voltada, nos termos em que requerida, a investigados, e não testemunhas, como ressaltado pelo e. relator, em sua decisão liminar.
Por tais razões, diante da confusão e indefinição acerca da real situação do paciente, este deve ser tratado como investigado, para que não haja risco de prejuízo ao exercício de seu direito de defesa.” [4]
Curioso que a delegada, no seu relatório final, registrou que a defesa ao impetrar o Habeas Corpus e obter liminar havia obstruído a justiça. Sim, e para completar deveria ter dito que o Tribunal, ao conceder a ordem, também praticou o crime.
O absurdo da situação fala por si só. Ou a delegada não sabe no que consiste o crime de obstrução de justiça ou não sabe o que é a essência da advocacia. Seja como for, a pessoa que se queria ouvir como testemunha, foi, ao final, devidamente indiciada e, depois, denunciada. Parece que alguém queria enganar a justiça.
A combinação da estratégia de defesa
Outro tema interessante atina com a questão de saber se o advogado que combina com os outros colegas, defensores dos corréus, a versão a ser apresentada na polícia ou em juízo. É representativa de obstrução de justiça?
No conhecido caso da prisão preventiva do ex-governador Paulo Maluf, o Pleno STF concluiu que a prisão era de uma “ilegalidade flagrante” e anotou: “compreende-se no direto de defesa estabelecerem os corréus estratégias de defesa” (HC n. 86.864, rel. Min. Carlos Velloso, DJe 16/12/2005).
Em poucas palavras, a combinação de versão pelos réus ou investigados, trata-se de ação que não pode ser de qualquer forma incriminada ou punida, muito menos com uma prisão preventiva. Ainda mais quando não há o que ser protegido.
É o que também mereceu destaque do Ministro Carlos Velloso no corpo do aresto:
“No caso, conforme vimos, a prisão foi decretada por conveniência da instrução criminal (CPP, art. 312). Os requisitos autorizadores da prisão, em tal hipótese, são (…)
No caso, alicerçou-se o decreto de prisão no fato de o paciente ter procurado aliciar um dos có-réus, o Sr. Vivaldo Alves, o que se constatou ‘nos diálogos gravados no monitoramento telefônico autorizado’ pelo juízo (fl.135).
(…) os diálogos que foram monitorados revelam conversa do paciente com outro corréu e não com testemunha. Dir-se-á que isso seria irrelevante, porque teria havido tentativa de aliciamento em detrimento do interesse da Justiça. Mas a esse argumento poderia ser oposto este outro, que diz com o direito de defesa: o direito de os corréus estabelecerem estratégia de defesa”.
E o Ministro Marco Aurélio, trouxe outro aspecto ao debate:
“Aludiu-se, é certo, à tentativa de se interferir na produção da prova. Assustei-me, de início, com essa assertiva, porque dou ao vocábulo ‘prova’ sentido próprio, não envolvendo – porquanto ninguém está compelido a colaborar com o Judiciário para a própria condenação – a participação, em si, dos agentes, ou seja, a combinação para ter-se este ou aquele procedimento, enquanto isso objetive apenas atos a serem praticados pelos agentes, pelos acusados no processo-crime ou no inquérito. A entendermos que, no caso, os acusados não podem estabelecer uma estratégia, como disse da tribuna o Dr. Batochio, ter-se-á de caminhar também para idêntico trato em relação não mais à autodefesa, mas à defesa técnica e, quem sabe, também prender os senhores advogados”.
A situação não é excepcional, é excepcionalíssima.
Portanto, fica evidente que a “combinação” narrada não pode ser vista como obstrução da justiça. E não pode ser vista como qualquer ato ilegal ou contrário ao processo.
O tema, porém, merece nova reflexão à luz da figura criminal da obstrução de justiça, instituída em 2013, enquanto que o julgado do STF é de 2005. Primeiro: esta figura só se aplica aos casos em que há organização criminosa. Portanto, em processo com dois réus seria possível combinar suas versões sem que houvesse a caracterização do crime em apreço. Idem, com mais réus se tratasse apenas de associação criminosa.
Soa, de saída estranho que numa hipótese não haja licitude e, idêntico comportamento, quando praticado no âmbito de processos que envolvam a tipificação de organização criminosa, permita a identificação do crime de obstrução de justiça.
Penso que, como corolário do direito constitucional ao silêncio, os réus têm o direito de não se autoincriminar, podendo até mentir em juízo. Assim, não se há de identificar, mesmo nos casos de imputação de organização criminosa, o delito de obstrução de justiça pelo fato de corréus ou seu advogados combinarem versões. Admitir o contrário, além de um tratamento díspar entre os réus acusados de integrar organização criminosa e os que não são, significaria um embaraço à amplitude do direito de defesa. Seria como instituir de forma oblíqua o dever de colaborar com o Judiciário para a condenação como disse o Ministro Marco Aurélio.
Explico. O réu pode continuar a permanecer em silêncio ou mesmo oferecer a versão que mais lhe convém. Todavia, a prevalecer a ideia de que há crime na combinação de versões, deveria fazê-lo solitariamente. O fato é que o regramento constitucional que institui a amplitude do direito de defesa conjugado com o direito de permanecer em silêncio, expressa o corolário da amplitude do direito de defesa, tendo sempre presente a possibilidade de o réu não ser punido pelo que afirma, ainda que inveridicamente e que o juiz dará às versões apresentadas o valor que entender adequado.
Advogado “quadrilheiro”
Advogados dos Sem Terra ou de moradores que ocupam imóveis urbanos abandonados são apontados como quadrilheiros para utilizarmo-nos de uma antiga nomenclatura do Direito Penal por advogarem reiteradas vezes para os invasores e seus líderes.
O fato é inadmissível e merece atenção da OAB e de todos os advogados, pois isso, indiretamente, nos atinge a todos. Identificar o advogado com a prática criminosa questionada é uma forma covarde de acuá-lo.
Lavagem de dinheiro no recebimento de honorários
Os assim chamados honorários maculados representam uma vexata quaestio e muita água vai rolar até que a jurisprudência se sedimente. Não se cuida aqui dos casos em que o advogado, como dito acima, lava dinheiro por meio de um contrato fictício, recebendo valores estratosféricos para repassar, no todo ou em parte, a terceiros como propina ou ao próprio cliente como meio de tornar o ativo lícito. Aqui vamos tratar do caso em o advogado ou a banca recebe o dinheiro relativo aos honorários que, ao depois, se comprova serem produto de crime do cliente.
De saída vale observar que o Projeto de Lei 3787/2019, de autoria da Deputada Bia Kicis (PSL), que altera a Lei 9.613/98 para introduzir no art. 9º os prestadores serviços de advocacia, bem como altera o Código Penal, introduzindo o § 3º-A em seu art. 180, e altera o Código de Processo Penal, introduzindo o § 3º em seu art. 330.
Em resumo pretende-se impor ao advogado ou a banca o dever de identificar o cliente, manter registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, recebimento de honorários advocatícios, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente, nos termos de instruções por esta expedidas.
Ademais, a vingar o PL, os advogados “deverão comunicar ao Coaf ou, na sua falta, ao órgão regulador ou fiscalizador da sua atividade, na periodicidade, forma e condições por eles estabelecidas, a não ocorrência de propostas, transações ou operações passíveis de serem comunicadas nos termos do inciso II.”
Enquanto não for aprovado dito PL ou proposta congênere for aprovada, o advogado que recebe dinheiro para elaborar defesa técnica de investigado ou acusado criminalmente não o faz “para ocultar ou dissimular” tais valores. Recebe o valor econômico como devida contraprestação por um serviço legal e efetivamente prestado, e não com a intenção, com o dolo, de ocultar ou dissimular valores provenientes de qualquer crime que seja.
Na lição de Rodolfo Tigre Maia, a marca essencial do art. 1º, §1º, da Lei 9.613/98 “reside no desejo de dissimulação ou ocultação (…) consubstanciando um especial fim de agir (que deverá obrigatoriamente integrar o dolo ao nível do tipo subjetivo”. [5]
Assim, só estaria caracterizado o crime de lavagem de dinheiro se o advogado agisse com a especial intenção de ocultar ou dissimular a utilização de valores provenientes de crimes considerados antecedentes pela legislação penal. É o que faz, por exemplo, o advogado que, sabendo da origem criminosa dos valores, cobra honorários a maior (do que realmente seriam efetivamente devidos) e devolve parte do valor a seu cliente em espécie, impedindo que se siga o rastro do dinheiro.
Afastando-se um pouco da análise exclusiva do elemento subjetivo do tipo penal em questão, Rodrigo Sánchez Rios, na excelente obra Advocacia e Lavagem de Dinheiro, discorrendo sobre as chamadas condutas neutras, ensina:
“quando o advogado recebe honorários maculados atuando na defesa do agente ao qual se lhe imputa a prática de um delito antecedente ao branqueamento, esse profissional não revela com sua conduta nenhum sentido objetivamente delitivo, situando-se dentro dos limites do risco permitido (…) resultará evidente sua boa-fé ao limitar sua atuação ao âmbito do procedimento criminal instaurado em desfavor do suposto autor do delito prévio, usando de todos os mecanismos legais conferidos pelo sistema normativo. Nessa posição, a conduta do advogado permanece como neutra e não adquire relevância penal, pois não cria um risco juridicamente desaprovado”.[6]
Rodrigo de Grandis, Procurador da República, já afirmou com razão que “ao nível do tipo objetivo, ou seja, sem se cogitar se o advogado tem ciência da origem espúria dos recursos, não haverá a criação de um risco desaprovado ao bem jurídico protegido (…) e a ocorrência desse risco no resultado na conduta do defensor em receber honorários fruto de um crime antecedente. Inviável, assim, cogitar de imputação penal pelo crime de ‘lavagem’ de dinheiro, ainda que tenha o causídico utilizado, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos no artigo 1º da Lei 9.613/1998”. [7]
Tais considerações aplicam-se igualmente ao crime de receptação (art. 180, do Código Penal), realçando-se a lição de Nélson Hungria: “Indaga-se se comete receptação o advogado que recebe de um ladrão, seu constituinte, dinheiro ou objeto de valor, em paga de seus profissionais. A resposta deve ser negativa, pois, sob pena de se criar sério embaraço ao patrocínio do réu, o advogado não está adstrito a averiguar a procedência do que lhe é entregue a título de honorários, não estando excluída, aliás, a hipótese, muito plausível, de que o réu tenha sido socorrido por parentes ou amigos”. [8]
Ora, se a Constituição Federal garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, incisos LVI e LVII), não se pode obrigar o advogado a antecipadamente considerar culpado o cliente que o está contratando, o qual, na maioria dos casos, alega sua própria inocência.
Também não se pode exigir, nem mesmo presumir, que o cliente sempre confesse a prática do crime, seja ao advogado, seja às autoridades públicas. Ademais, é direito inerente ao “devido processo legal” a liberdade de o acusado escolher livremente o seu defensor, e isso não decorre apenas dos mandamentos constitucionais acima indicados, mas, antes, de direitos humanos mundialmente reconhecidos, contemplados, por exemplo, seja nos “Princípios Básicos do Papel dos Advogados”, aprovados pela ONU (cf. nr. 1), seja na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, artigo 8, n. 2, “d”.
Além disso, o advogado, que efetivamente elabora defesa técnica de seu cliente em inquérito policial ou ação penal e recebe a devida contraprestação pecuniária, o faz como imperativo ético e legal, que decorre da própria Constituição Federal, a qual expressamente diz que o “advogado é indispensável à administração da justiça” (art. 133); da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), que afirma, por seu turno, que “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social”.
Além disso, há que “no processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público” (Art. 2º, §1º e 2º); e, por fim, do Código de Ética e Disciplina da OAB prevê ser “direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado” (art. 21).
Assim, tal como o médico que recebe honorários para salvar a vida de seu paciente, ou do dono do supermercado que vende mercadoria a qualquer cliente, mesmo sendo ele um conhecido traficante, também não comete crime de lavagem de dinheiro o advogado que recebe honorários como contraprestação de serviços efetivamente prestados na elaboração de defesa técnica de seu cliente investigado em inquérito ou acusado em ação penal, razão pela qual é impossível investigar advogado constituído para defesa criminal em função dos honorários por ele recebidos.
Palavra final sobre o criminalista e a democracia
Nada mais perigoso para a Democracia e para o Estado de Direito do que o vilipêndio ao direito de defesa, fundado em uma difusa ânsia pela condenação, pela prisão, por um espetáculo que satisfaça os mais íntimos desejos de vingança.
Garantir o direito de defesa é assegurar a racionalidade da punição. É fazer valer o mais importante limite ao arbítrio. Não por acaso tal direito está previsto na Constituição, no Pacto de San Jose da Costa Rica, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nos mais diversos tratados e convenções. É um direito humano contrapor à acusação argumentos, recursos e disposições legais que favoreçam o acusado.
Querer impedir o uso de boas defesas diante da avassaladora ansiedade pela condenação, além de ilegal, é covarde e imoral. Quando a sociedade, o Estado e a mídia voltam suas baterias contra o acusado, resta-lhe o advogado de defesa, muitas vezes o ultimo e único a lhe escutar, ouvir sua versão, e levá-la a Juízo para um julgamento justo. Como dizia Carnelutti “a essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada, ao lado do acusado, quando todos o apontam”. Retirar-lhe até isso, até esse último e no mais das vezes solitário apoio, é institucionalizar o linchamento.
Afora o mais, um advogado criminalista não pode – e não deve – efetuar qualquer espécie de filtro moral, em relação a seus clientes. O código de ética da advocacia expressamente assim o determina, ao estabelecer que “é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”. Aliás, se não fosse assim, um abominável criminoso seria solto, pois, sem defesa não há julgamento.
O criminalista, muitas vezes, se posta contra a maioria, na solitária tarefa de defender seu cliente. É, como diria Gramsci, um verdadeiro contrapoder. Esse é seu ofício, sua função, seu papel. Aqueles que formulam as mais contundentes críticas contra a defesa devem se lembrar que em um estado totalitário, o primeiro direito sonegado é o de defesa. Sem este, qualquer barbaridade é possível, porque praticada longe das vistas, sem contraponto ou enfrentamento.
O pressuposto da democracia é o diálogo, a dialética, o contraste de argumentos sem qualquer censura ou coação. Calar a defesa, criticar aqueles que a exercem, não diminui a impunidade e nem torna o país mais honesto e mais seguro. Apenas afasta um limite ao arbítrio, à violência, ao poder punitivo. E a supressão de limites atrai o abuso.
Sempre oportuna a lembrança de Rui Barbosa, para quem “Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar contornos definidos e inequívocos à condição que o limita”. E se quisermos impedir o arbítrio, o excesso e o abuso, é fundamental garantirmos o direito de defesa, aliás, se quisermos viver numa democracia, também.
[1] A ementa apresentada no site do Senado do dito Projeto diz o seguinte: “Altera o Código Penal, para estabelecer que, anulado o processo, o tempo transcorrido entre o ato declarado nulo e a publicação da decisão que reconheceu a nulidade deve ser desconsiderado para fins de contagem do prazo prescricional, salvo se a nulidade foi declarada a pedido e no interesse da acusação. Modifica as causas interruptivas da prescrição e o termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível”.
[2] HC n. 17.804, rel. no recesso o Min. Nilson Naves, DJ 09/8/2001.
[3] Letters to a Young lawyer, Nova Iorque, NY, 2001, p. 52: “The scandal is not that the rich are zealously defended; it is that the poor and middle class are not”. Inspirado no trabalho do grande advogados e professor norte Americano, Pierpaolo Botini, Celso Sanches Vilardi e eu escrevemos no ConJur o artigo intitulado: “Podem bons advogados defender pessoas más?”
[4] HC 0013253-74.2016.4.03.0000/SP, rel. p/ o acórdão Des. Fed. José Lunardelli, D.E 12/01/2017.
[5] Autor citado, Direito Penal Econômico: advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal, São Paulo, Saraiva, 2010, pág. 158/170.
[6] Lavagem de Dinheiro, Malheiros Editores, 1999, pág. 95.
[7] Lavagem de dinheiro, prevenção e controle penal, coordenador Carla Veríssimo Di Carli; Andrey Borges de Mendonça …[et al.], Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2011, p. 140.
[8] Comentários ao Código Penal, 2ª Edição, Revista Forense, Rio de Janeiro, 1958, Vol. VII, p. 321.