O bloqueio de bens de empresas em crimes de lavagem de dinheiro
O Estado de S.Paulo – SP (06/08/2019)
O bloqueio de bens de empresas em crimes de lavagem de dinheiro
Pierpaolo Cruz Bottini*
06 de agosto de 2019
Follow the money. A conhecida expressão revela uma estratégia eficaz de combate ao crime organizado: identificar o caminho dos recursos ilícitos, bloquear bens, e fazer com que a entidade delitiva morra de inanição, sem dinheiro para pagar seus membros ou funcionários públicos cooptados.
Nesse contexto, um dos importantes instrumentos à disposição da Justiça é a constrição de bens de pessoas físicas e jurídicas suspeitas de envolvimento no crime organizado. A ideia é imobilizar seus recursos durante o processo e assegurar sua perda e a reparação do dano em caso de condenação, esvaziando a organização delitiva de seu patrimônio material.
Mas alguns cuidados são necessários, em especial quando as medidas de bloqueio recaem sobre empresas.
Tem sido comum a constrição de bens de pessoas jurídicas em processos para apuração de lavagem de dinheiro praticadas por seus controladores, executivos ou gestores, especialmente quando há a suspeita que tais estruturas foram usadas para receber e armazenar recursos ilícitos.
As medidas cautelares reais nesses casos são possíveis, e às vezes até necessárias, desde que indicadas corretamente e fundamentadas de acordo com seus requisitos legais.
Não é o que sempre ocorre.
As constrições patrimoniais no processo penal podem ser divididas — grosso modo — em (i) sequestro e (ii) arresto (inscrição e registro de hipoteca legal e arresto prévio). No sequestro, bens são bloqueados diante da suspeita de sua origem ilícita, para garantir a perda do produto do crime ao final do processo, em caso de condenação. São recursos ou ativos sujos, provenientes do crime.
O arresto, por outro lado, recai sobre bens lícitos — seu objetivo é assegurar a reparação do dano causado pelo delito, o pagamento da multa e, subsidiariamente, das custas e despesas processuais.
São institutos distintos, com requisitos e finalidades diferentes, em especial quando o afetado não é parte no processo, como é o caso usual das empresas, das pessoas jurídicas cujos bens são constritos.
O sequestro pode incidir sobre o patrimônio do investigado/réu ou de terceiros. Se há suspeita de que aqueles valores tem origem ilícita, criminosa, é possível sua constrição, mesmo que em posse ou titularidade de pessoas não acusadas, que não fazem parte daquele processo. A empresa na qual o investigado ou réu exerce suas funções pode ser atingida pela medida, caso constatado que o produto do crime integra seu patrimônio.
Já no arresto, a situação é distinta. Os valores são acautelados para garantir a reparação do dano, pagamento de multas e despesas processuais, que serão exigidos quando da condenação (CP, artigo 91). Não se trata mais do produto do crime, mas de bens lícitos que serão usados para uma finalidade específica, ao final do processo.
Bem por isso, apenas o patrimônio de quem pode ser condenado pela Justiça penal pode ser arrestado. Apenas o réu pode ser instado a reparar o dano pela sentença criminal, pagar multas ou despesas processuais. Tal obrigação não se estende ou se comunica a terceiros, uma vez que a pena e seus efeitos são personalíssimos.
Portanto, o arresto não pode ser aplicado à empresa porque ela não pode ser condenada nem sofrer os efeitos da pena em processo que não é parte, não participa da produção da prova ou exerce o contraditório — a não ser em casos de crimes ambientais na qual ela seja ré.
Há quem sustente que o arresto sobre bens de origem lícita de empresas seria possível em casos de lavagem de dinheiro, diante do seguinte teor do artigo 4.º da Lei 9.613/98:
Art. 4.º O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes.
(…)
§ 2.º O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal
(…)
§ 4.º Poderão ser decretadas medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente da infração penal antecedente ou da prevista nesta Lei ou para pagamento de prestação pecuniária, multa e custas.
Ao prever a possibilidade de medidas assecuratórias de bens do acusado ou existentes em nome de interpostas pessoas, o artigo legitimaria o bloqueio de bens de pessoas jurídicas.
Tal interpretação exige alguma reflexão.
Uma leitura atenta do dispositivo revela duas espécies distintas de cautelares.
O caput permite a constrição de instrumento, produto ou proveito do crime, ou seja, de bens ilícitos. Trata-se de medida similar ao sequestro que, como já exposto, pode recair sobre bens do investigado ou acusado ou sobre interpostas pessoas, inclusive da empresa na qual ele exerce ou exercia suas funções.
Já os parágrafos 2.º e 4.º do mesmo artigo tratam de outra medida. Autorizam o bloqueio de bens para reparação dos danos, pagamento de prestação pecuniária, multas e custas. Atingem, portanto, bens de origem lícita.
Tais dispositivos tratam do arresto, da constrição de bens legítimos, e por isso mesmo são menos abrangentes que o sequestro do caput. Não há em tais parágrafos — como há no caput — menção à incidência das medidas sobre interpostas pessoas porque apenas o agente do delito, o réu ou investigado, pode ter bens afetados. Não há sentido bloquear bens de terceiros ou empresas para garantir efeitos de uma sentença que não será a eles imposta, porque limitada às partes no processo penal.
Terceiros podem ser obrigados a devolver bens de origem ilícita, mesmo que não sejam parte no processo (sequestro), mas não podem ser obrigados a reparar danos, pagar multas, prestações pecuniárias ou custas com seu patrimônio lícito, em razão de sentença imposta a outrem em processo do qual não foram parte e não exerceram o contraditório.
Isso não implica a impossibilidade de estender à empresa a responsabilidade solidária ou subsidiária de reparar o dano, e mesmo fundar tal pretensão em sua responsabilidade objetiva, mas tal operação é estranha à seara penal, sendo de competência da Justiça Civil a análise de tais pleitos.
Medidas patrimoniais são importantes. Talvez hoje sejam um dos aspectos mais relevantes do processo penal. Mas é preciso reconhecer e aplicar os institutos e respeitar seus requisitos. Sequestro e arresto não são fungíveis, recaem sobre pessoas distintas, e tem fundamentos diferentes. A confusão, além de atécnica, faz incidir sobre terceiros medidas restritas aos réus, produzindo injustiça e afetando a segurança jurídica.
*Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP
(Texto publicado na Revista Consultor Jurídico, edição de 5 de agosto de 2019)