Postergar o debate sobre descriminalização é manter no limbo da insegurança jurídica milhares de usuários que esperam mais do que uma ameaça de pena ao lidar com a questão das drogas
O STF julgaria nesta quarta-feira a descriminalização do uso de drogas. Em debate, a constitucionalidade da atual lei de drogas que prevê penas para aquele que consome substâncias proibidas. Uma discussão importante, iniciada há três anos e postergada por sucessivos pedidos de vista, foi adiada mais uma vez.
Há quem sustente que o debate na Suprema Corte perdeu o objeto, porque o Congresso Nacional aprovou uma nova lei de drogas. Portanto não faria sentido discutir a validade de uma lei revogada.
Não é verdade.
Não se discute no Judiciário a atual ou a antiga lei de drogas, mas se a repressão criminal ao usuário de drogas contraria a Constituição Federal. De acordo com entidades como o Instituto Igarapé e a Viva Rio, punir o consumidor de entorpecentes contrasta com o princípio da dignidade humana, previsto no art. 1º da Constituição, que garante a todos a liberdade de ação desde que não afetem bens ou interesses de outros. Por contrariar um preceito constitucional, qualquer lei que criminalize o uso de drogas seria inconstitucional e não deveria ser aplicada.
O novo projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional mantém o uso de drogas como crime. Portanto, não inova ou altera nada. O conflito com a Constituição continua a existir, e a manifestação do STF sobre o tema segue necessária.
Necessária porque a definição sobre o papel do direito penal na prevenção ao uso de drogas no Brasil é elemento central para o desenvolvimento de qualquer política pública nessa área. É a pedra de toque que assentará se o Brasil seguirá na linha de guerra às drogas, tratando usuários como inimigos do Estado que merecem repressão ou adotará programas em sintonia com a maior parte do mundo ocidental, que perceberam o consumidor como alguém que precisa de auxílio e tratamento, mais do que penas ou ameaças.
O tema continua um tabu no Brasil porque se confunde a descriminalização com o incentivo ao uso de drogas. As questões são distintas. Afastar o direito penal do consumidor é possibilitar outras formas de prevenir o uso. É abrir um diálogo franco com as milhares de pessoas que lidam com entorpecentes. É possibilitar a acolhida, o tratamento, e mesmo a internação em casos mais delicados. É reconhecer que existem formas mais eficazes e úteis de cuidar do usuário do que a pena, cujo único efeito é afastá-lo de qualquer tentativa de superação do problema.
Enfim, é uma estratégia mais inteligente de reduzir o consumo dependente e problemático
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TENDÊNCIA GLOBAL
Inúmeros países da América Latina ( Uruguai , Argentina, Colombia, Equador, Paraguai, Chile, Venezuela) e da Europa ( Portugal , Holanda, Alemanha, Espanha, Itália) descriminalizaram o uso de drogas, sem mencionar os Estados Unidos, onde diversos estados adotaram a mesma postura. Restam poucos, dentre os quais o Brasil, que ainda acreditam no direito penal como melhor forma de lidar com o usuário, por mais nítido que seja o fracasso deste instrumento como política pública.
EDITORIAL: Uma questão de Saúde Pública
Há quem defenda que a descriminalização do uso de drogas é o primeiro passo para que se abram as portas ao tráfico legalizado e ao consumo desenfreado de drogas.
Outra inverdade. Dos inúmeros países que afastaram o direito penal do usuário, poucos regularam o comércio de drogas. Na maior parte deles, a conduta continua sendo crime. E, ao contrário das pessimistas previsões, o uso de drogas não se tornou comum. Mais do que isso, em países como Portugal o número de mortes por overdose foi reduzido após a descriminalização.
Para além de aprimorar a assistência ao usuário, a descriminalização do consumo libera recursos para segurança pública. O tempo e o dinheiro gastos pela polícia para fiscalizar e reprimir o uso seriam melhor alocados para investigar as organizações relacionadas ao tráfico, e para coibir delitos mais graves.
Enfim, há dados que apontam o acerto na descriminalização. Há motivos sólidos, razões fundadas. A própria ONU reconheceu em março deste ano a pertinência de substituir o direito penal por medidas alternativas em relação ao usuário nas Diretrizes Internacionais sobre Direitos Humanos e Políticas de Drogas.
Diante disso, é necessário que o tema seja discutido e resolvido em definitivo. Postergar o debate é manter no limbo da insegurança jurídica milhares de usuários de drogas que esperam mais do que a ameaça de pena para lidar com seu complexo problema. Que esperam assistência, tratamento e uma dignidade que lhes permita superar dependências e usos problemáticos de forma eficaz e racional.
Pierpaolo Cruz Bottini advogado e professor de direito penal da USP
04/06/2019 |