O Brasil atravessa, no setor público, um apagão de informação voltada ao debate da política sobre drogas. Com restrições deliberadas à transparência e à difusão de conhecimento científico, e diante de intenso processo de disseminação impulsionada de mensagens desprovidas de evidências e dados técnicos, caminhamos ao retrocesso nas políticas de acesso à saúde no Poder Executivo, com olhar quieto do Legislativo e do Judiciário.
A divulgação da maior e mais recente pesquisa científica sobre uso de drogas no país está embargada há um ano e meio pelo Ministério da Justiça e agora também pelo Ministério da Cidadania. Conduzida pela Fundação Oswaldo Cruz, nossa mais respeitada instituição de pesquisa em saúde pública, ela traça um panorama amplo do uso de substâncias psicoativas no Brasil, cujo conteúdo poderia ajudar a descortinar um emaranhado de mitos sobre o assunto.
No último mês, o Senado aprovou, às pressas, o projeto de lei 37/2013, de autoria do agora Ministro da Cidadania, Osmar Terra, que altera a atual lei sobre drogas (Lei 11.343/06). O texto descartou todas as mudanças propostas pelos próprios senadores em seis anos de debate. Tudo para que o projeto pudesse seguir diretamente para sanção presidencial, antes de importante julgamento no Supremo Tribunal Federal.
A aprovação do projeto se deu, também, para evitar o positivo embate de ideias e a incorporação das contribuições feitas pela Comissão de Juristas designada em 2018, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para elaborar uma nova legislação sobre drogas. A Comissão – composta por ministros do Superior Tribunal de Justiça, desembargadores, juízas, promotor e procuradora da República, advogados, professores e o respeitável médico Dr. Dráuzio Varella (1) – avaliou os projetos em trâmite no Senado e na Câmara e ouviu dezenas de especialistas e entidades de diversos campos e opiniões. Em seis meses de trabalho, consolidou uma proposta equilibrada e avançada sobre o assunto e avançou na descriminalização e previsão de critérios objetivos para distinguir usuário e traficante.
Tornando esse momento ainda mais crítico, há poucos dias, foi adiada a conclusão do julgamento no Supremo Tribunal Federal, que decidirá se é ou não constitucional a criminalização do porte de drogas para exclusivo uso pessoal. Três ministros – Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin – já decidiram que é inconstitucional criminalizar o usuário de drogas ilícitas, entre outros motivos, por se tratar de evidente violação dos comandos constitucionais sobre dignidade humana, liberdade, autodeterminação e privacidade. Esses votos estão em linha também com o enfoque constitucional de garantia de acesso à saúde pública, afastando o peso do sistema penal sobre a já preocupante situação de inúmeros usuários e seus familiares. O país espera, há cinco anos, a conclusão desse julgamento.
Em todos esses movimentos institucionais, a questão mais urgente é o tratamento a ser dado ao usuário de drogas pelas políticas públicas no país, se o usuário será tratado como criminoso, na forma prevista pela legislação hoje em vigor, pela jurisprudência ainda existente e pela posição de parte do Governo Federal, ou se teremos o avanço esperado de alterar esse cenário para uma abordagem voltada à saúde do usuário e ao fortalecimento das políticas de prevenção e redução de danos. A descriminalização do usuário é parte essencial desse avanço.
A descriminalização do usuário não significa legalização de drogas, nem tampouco apologia às drogas, cujos malefícios são honesta e abertamente reconhecidos. Importante deixar claro que a discussão sobre a legalização de drogas não é objeto do projeto de lei da Comissão de Juristas e do julgamento no Supremo Tribunal Federal. As drogas continuarão a ser apreendidas e traficantes seguirão sendo processados e condenados.
O julgamento no STF e a proposta de projeto de lei da Comissão de Juristas poderão significar, na esfera de análise constitucional e legal, respectivamente, a modernização da política sobre drogas. E esse avanço retiraria o país da posição de lanterna na corrida sobre o tema no mundo ocidental. Mais de 30 países do Ocidente já descriminalizaram o usuário, incluindo todos os grandes países da América Latina, como Argentina, Colômbia e México, estes dois últimos com históricos problemas relacionados ao tráfico de drogas. Em nenhum desses países, a descriminalização provocou o alardeado grave aumento do uso de drogas ilícitas.
Pelo contrário, descriminalizar o usuário tem permitido salvar vidas. Por isso, a Organização Mundial da Saúde, desde 2014, defende a descriminalização do uso de drogas em todos os países. Sem a ameaça de serem processadas ou mesmo presas, pessoas que por razões distintas são usuários problemáticos de drogas acabam por ter mais acesso aos serviços de saúde. Seja porque possuem menos temor ou vergonha, seja porque o sistema de saúde os acolhe com mais segurança. No caso de uma overdose, isso representa a diferença entre a vida e a morte.
O acesso à saúde também permite controlar ou curar doenças como HIV, hepatites virais e tuberculose. No Brasil, o HIV é dez vezes mais comum entre usuários frequentes de crack do que na população em geral. Diagnosticar precocemente e tratar essas doenças entre quem usa drogas também diminui sua transmissão para quem não usa drogas, salvando mais vidas e reduzindo custos de tratamento.
Essa estratégia, que busca garantir cuidados de saúde para quem usa drogas, mesmo que não consiga parar, é conhecida como redução de danos. Pela sua eficácia, cientificamente comprovada, para evitar mortes e melhorar a qualidade de vida tanto de quem usa quanto de quem não usa drogas, a redução de danos é recomendada pelas Nações Unidas (ONU) juntamente com a descriminalização dos usuários. O Brasil, que pode ter políticas dessa natureza agora abandonadas por parte do Governo Federal, aumentaria a eficácia desse trabalho se descriminalizasse o uso de drogas.
Ao combinar essas duas estratégias, Portugal, com quem temos evidentes afinidades culturais, tornou-se uma referência mundial em políticas de drogas. Podemos tomá-la como inspiração ou insistir na velha política de “guerra às drogas”, na qual a primeira vítima é a verdade.
O Brasil não pode mais desperdiçar recursos da polícia, do Judiciário e do sistema prisional numa guerra que persegue, processa e ainda prende pessoas que portam pequenas quantidades de drogas para uso próprio. O país possui recursos escassos e finitos. Tais recursos deveriam ser direcionados para prevenção e garantia de acesso à saúde de milhares de usuários e seus familiares.
A sociedade brasileira precisa voltar a discutir a política para pessoas que usam drogas com ética e conhecimento científico, olhando para a nossa realidade e aproveitando as melhores experiências internacionais. É preciso incorporar os avanços legislativos feitos no Congresso Nacional com o projeto de lei elaborado pela Comissão de Juristas, assim como os relatórios das comissões do Senado Federal ignorados na aprovação do projeto de lei 37/2013. Finalmente, o STF não pode adiar, sem definição urgente de nova data, o julgamento sobre o assunto. Esse tempo custa vidas.
*Leon Garcia. Doutor em Saúde Pública pela Universidade de Londres. Psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Foi coordenador-adjunto da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde e diretor da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) do Ministério da Justiça.
Beto Vasconcelos. Advogado. Membro da Comissão de Juristas para revisão da lei sobre drogas. Pós-graduado pelas Universidades de São Paulo e Federal de Santa Catarina. Ex-Secretário Nacional de Justiça.
(1) Presidente: Marcelo Navarro Ribeiro Dantas (Ministro do STJ), Vice-Presidente Rogério Schietti Machado Cruz (Ministro do STJ), Relator: Ney de Barros Bello Filho (Desembargador do TRF-1), Antônio Drauzio Varella (Médico), Amanda Torres de Lucena Diniz Araújo (Juíza Federal), Beto Ferreira Martins Vasconcelos (Advogado), Cibele Benevides Guedes da Fonseca (Procuradora da República), Joelci Araújo Diniz (Juíza), José Theodoro Corrêa de Carvalho (Promotor de Justiça), Joaquim Domingos de Almeida Neto (Desembargador do TJ/RJ), Maurício Stegemann Dieter (Professor), Pierpaolo Cruz Bottini (Professor), Walter Nunes da Silva Junior (Juiz Federal), Tatianna Ramalho de Rezende (Especialista).
O Estado de S.Paulo – SP (04/06/2019)
Leon Garcia e Beto Vasconcelos* |
|