A defesa acadêmica da esterilização: um precedente perigoso
A notícia de que um juiz determinou a esterilização compulsória de Janaina, uma pessoa em situação de rua, espanta. Um promotor de Justiça pediu a laqueadura da mulher, “mesmo contra a sua vontade” diante de sua sexta gravidez, da dependência química e de “não possuir condições de criação dos filhos”.
O magistrado alegou que o procedimento contou com a concordância da esterilizada. Realmente, há uma certidão de cartório em que ela manifesta adesão ao procedimento. Porém, o próprio Ministério Público relata que, às vezes, Janaina “demonstra desinteresse (na esterilização) ao não aderir aos tratamentos”, e o Tribunal de Justiça reconheceu que existiam indicações de que a mulher “mostrou-se reticente e em alguns momentos resistente à sua realização”.
Assim, havia ao menos dúvida razoável sobre a real concordância de Janaina com o procedimento de esterilização. Um juiz prudente marcaria uma audiência, ouviria a mulher, procedimento compatível com a gravidade do ato. Mas não, decidiu em caráter liminar pela laqueadura, como se esterilizar alguém em situação de rua fosse urgente, que pudesse ser feito sem um cuidadoso processo legal. E ordenou a “realização do procedimento de laqueadura compulsória no momento do parto”. Convenha-se, o uso do termo compulsória não parece condizente com um ato inegável de concordância daquela submetida à operação.
Como dito, tudo isso espanta.
Mas espanta mais quando se constata que uma professora de Direito Penal, da Universidade de São Paulo, a quem respeito como colega de departamento, defendeu a decisão em redes sociais. E não o fez sob o argumento de que aquela mulher teria aderido ao tratamento, como o juiz, mas alegando que o princípio da autonomia individual de uma cidadã não pode passar por cima dos direitos de terceiros e das crianças, e que a decisão do magistrado evitou que a mulher fosse submetida a “gestações e abortos sucessivos”.
Desde o primeiro ano de Direito, no primeiro manual, lê-se que a Constituição brasileira consagra a dignidade humana e a autonomia da vontade, de forma que o Estado protege o direito de cada um construir livremente seu mundo de vida, desde que não afete o mesmo direito de terceiros. O poder público pode construir políticas, direcionar condutas e mesmo obrigar os cidadãos a determinadas prestações, destinadas à justiça social. Mas jamais usar a prisão ou a intervenção corporal compulsória para forçar qualquer indivíduo a viver de acordo com qualquer padrão.
Assim, mesmo que a vida na rua fosse uma opção de Janaina — e não deve ser, porque a condição de rua no mais das vezes não é desejada, mas fruto da exclusão social —, tal escolha seria protegida por um Estado plural, e não legitimaria intervenções corporais compulsórias com objetivo de evitar a reprodução daquele que vive de forma distinta, mesmo que miserável.
Justificar tal ato na proteção dos direitos das crianças, como propõe a professora, não é possível. A uma porque fundar restrição de direitos fundamentais sobre direitos individuaisde pessoas inexistentes não parece coerente. A duas porque, mesmo que isso fosse possível, as titulares dos direitos, as crianças, que nasceriam do ventre daquela mulher, não tiveram a oportunidade de se manifestar sobre a pretensa proteção. E se pudessem, não seria absurdo que recusassem a gentil oferta, pois deveriam escolher entre uma possível vida nas ruas ou não nascer, não existir.
Imagino que Felipe, Maria Rita, Luan Gabriel, Santiago Henrique e Antonia Eduarda, filhos nascidos da mulher esterilizada, se consultados, respondam que preferem viver, mesmo em adversas condições, do que não ter vindo ao mundo. Assim, a suposta proteção propalada pela professora talvez fosse educadamente rejeitada pelo próximo descendente da vítima da laqueadura. Mas a ele não foi dada essa opção. A operação foi feita e Janaina é estéril.
Poderia a professora argumentar que a laqueadura não teve o escopo de evitar o nascimento de crianças em situações de rua, mas sucessivas “gestações e abortos” de Janaina. Não é aceitável uma intervenção corporal compulsória, por parte do Estado, com base na presunção de que uma mulher, só por ser pobre, vá cessar uma gestação. E, deixando de lado toda a discussão sobre o aborto e o direito ao corpo, não consta que a vítima tenha interrompido gestações — ao contrário, teve vários filhos. É verdade que eles estão em casas de acolhida, mas ainda assim estão vivos e a ausência de recursos materiais não lhes tira esse direito — como tirou dos eventuais futuros filhos de Janaina.
Milhares de mães pobres, em situação de rua, criam seus filhos em adversas condições. Com difícil acesso à saúde, à educação, às politicas habitacionais, sofrem preconceito e têm condições parcas para garantir um mínimo de dignidade. Mas esse, francamente, é problema de um sistema econômico excludente, e não das mães que lutam pela sobrevivência.
O Estado não tem a faculdade de interferir em direitos fundamentais, como a integridade física e a capacidade reprodutiva, em nome do que quer que seja. Mesmo o mais sagrado dos direitos sucumbe ante a autonomia de uma mulher, na sua capacidade de decidir se deve ou não engravidar.
Churchill dizia que o totalitarismo é a barbárie organizada pelo Estado. Quando os discursos de ódio deixam as telas do computador e justificam atos arbitrários e ilegais, praticados pelo Estado, algo sugere a espreita do regime de exceção. É um perigoso precedente. E quando o precedente é louvado por uma docente, que produz e reproduz conhecimento para centenas de jovens estudantes, através de uma cátedra respeitada, a comunidade acadêmica deve perceber o sinal amarelo, senão vermelho, e vir a público expor os riscos envolvidos, a temeridade desse tipo de pensamento, e convidar a sociedade à reflexão.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.