Skip to main content

UK Criminal Finances Act: Reforço legal contra a evasão fiscal e o movimento global de combate às práticas empresariais ilícitas

Paulo Teixeira Fernandes, Victor Duarte Almeida e Danilo Emanuel Barreto de Oliveira

O Criminal Finances Act traz hipóteses de extraterritorialidade, equiparando o alcance jurisdicional dado aos casos de evasão fiscal ao dado aos casos de suborno, como já estabelecido pelo UK Bribery Act, de 2010.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Assim como o produto mundial bruto1 apresentou crescimento nas últimas décadas, também aumentou a magnitude do volume das lavagens de dinheiro, de todas as espécies. Intimamente ligado às práticas de lavagem de dinheiro está o financiamento do terrorismo, que, não por acaso, também cresceu agudamente nas últimas décadas.

Nesse contexto, em 2015, o relatório da Avaliação Nacional de Riscos do Reino Unido, documento elaborado pelo HM Treasury (Departamento de finanças públicas) e pelo Home Office (Ministério do Interior)2, identificou três grandes aspectos a serem enfrentados no país: a evasão fiscal, a lavagem de dinheiro e o financiamento de regimes terroristas. Dessa forma, o relatório concluiu pela necessidade de mais ferramentas legais no combate a essas condutas.

Para propiciar a efetivação dessas medidas de combate, em abril de 2016, o Governo do Reino Unido publicou um plano de ação contra a lavagem de dinheiro e o financiamento terrorista3. Um dos resultados desse plano foi a elaboração do Criminal Finances Act4, norma que endurece o combate à evasão fiscal e a possível financiamento do terrorismo, em vigor desde o dia 30 de setembro de 2017.

Seu texto traz novas espécies de infrações corporativas, responsabilizando objetivamente as organizações e as sociedades empresárias que não apresentarem procedimentos adequados na prevenção de evasão fiscal por pessoa a elas associada.

O Criminal Finances Act traz hipóteses de extraterritorialidade, equiparando o alcance jurisdicional dado aos casos de evasão fiscal ao dado aos casos de suborno, como já estabelecido pelo5 UK Bribery Act, de 2010. Também estabelece novas medidas buscando repreender a lavagem de dinheiro, a corrupção e o financiamento ao terrorismo, facilitando a recuperação de produtos de crimes por meio do aumento da prerrogativa de algumas autoridades, como no caso das UWO (Unexplained Wealth Orders) – requisição de explicação sobre ativos aparentemente desproporcionais e de origem suspeita.

Esse, aliás, é ponto de destaque no movimento global de combate a más-práticas institucionais: a interseção entre corrupção, lavagem de dinheiro e terrorismo; e o reforço da importância do compliance nas instituições e organizações.

O Brasil também sente e responde aos reflexos de tal evolução. Tem-se notado o aumento da participação do país em grupos de discussão e integração de políticas internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento terrorista, como o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF) e o Grupo de Ação Financeira da América Latina contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFILAT).

Na seara legal o Brasil também adotou ferramentas de combate a tais práticas, como a Lei da Empresa Limpa (lei 12.846/13), que reforça o combate à corrupção com a responsabilização objetiva de pessoas jurídicas e sua hipótese de alcance extraterritorial, duas notórias características dessa tendência global de aumento da luta contra atos de corrupção.

Contra o branqueamento de ativos, o país possui a lei federal 9.613/98 (“Lei de Lavagem e Capitais”), que, paralelamente à lei federal 12.846 e às determinações da Carta-Circular 1, de 1º de dezembro de 2014, do Conselho de controle de Atividades Financeiras (“COAF”)6, dá base a uma possível responsabilização objetiva de pessoas jurídicas por inobservância do devido cuidado na prevenção de lavagem de dinheiro, embora doutrina e jurisprudência divirjam sobre a questão.

Tendo em vista as transformações na legislação do Reino Unido, o alinhamento de políticas mais rígidas no combate aos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão fiscal em âmbito global e a sensibilidade do Brasil a esses temas, faz-se mister a compreensão de alguns pontos trazidos pelo UK Criminal Finances Act, vislumbrando-se eventual influência no ordenamento brasileiro.

Responsabilidade Objetiva

Tradicionalmente na Common Law, segundo a Doutrina da Identificação, as organizações possuem personalidade jurídica própria, distinta e separada da personalidade individual de seus diretores e sócios. Esse princípio tem sua origem no conhecido caso “Salomon v A Salomon & Co Ltd.”, leading case7 para o estudo do direito empresarial e da personalidade jurídica em todo o mundo. Por essa doutrina, as organizações só podem ser responsabilizadas por um comportamento criminoso de seus empregados se seus membros de cúpula estiverem cientes ou for demonstrado dolo na prática de tais condutas. Um efeito da prevalência da Doutrina da Identificação é a baixa taxa histórica de condenação de empresas por crimes fiscais, econômicos e financeiros no Reino Unido, como sugere o chamamento para estudos “Corporate Liability for Economic Crime”8, levantado pelo Ministério da Justiça do Reino Unido, em janeiro de 2017.

Todavia, a partir do Criminal Finances Act, empresas e organizações poderão ser criminalmente responsabilizadas se falharem na prevenção de casos de facilitação da evasão de taxas por uma pessoa associada, independentemente de conhecimento ou coordenação dos membros de cúpula para a conduta em questão. Um efeito dessa mudança é a diminuição da possibilidade de cegueira deliberada9 daqueles que possuem o condão de averiguar um eventual ato de lavagem de dinheiro e, ainda assim, deixam de fazê-lo.

Mais ainda, a organização poderá ser responsabilizada mesmo que não tenha obtido qualquer tipo de benefício econômico a partir da evasão fiscal. Por meio do termo “falha em prevenir”, o Criminal Finances Act traz a responsabilização objetiva da facilitação em casos de evasão fiscal, alinhando sua legislação às recomendações do GAFI 10, grupo no qual o Reino Unido participa conjuntamente com o Brasil e outros trinta e cinco países.

Novas Infrações

Duas novas infrações criminais corporativas foram estabelecidas com a promulgação do Criminal Finances Act: “Seção 45 – a falha em prevenir a facilitação de evasão de taxas devidas ao Reino Unido”; e “Seção 46 – a falha em prevenir a facilitação da evasão de taxas internacionais”.

Diferentemente da legislação brasileira em que a Lei de Lavagem de Capitais disciplina a observância de procedimentos e cuidados para a prevenção da lavagem de dinheiro às pessoas físicas e às pessoas jurídicas, são sujeitos ativos das infrações do UK Criminal Finances Act apenas as pessoas jurídicas, não se aplicando o disposto nas seções 45 e 46 às pessoas naturais.

Assim sendo, para uma organização ser considerada culpada dessas infrações, as autoridades devem provar os seguintes requisitos: (i) evasão fiscal criminosa realizada por um contribuinte (seja esse um indivíduo ou uma organização); (ii) facilitação de evasão fiscal, envolvendo comportamento deliberado e desonesto por um empregado, agente ou outra pessoa agindo a interesse ou em vantagem da organização; e (iii) falha da organização em prevenir seu associado da prática de facilitação criminosa.

Estando presentes os requisitos e manifestada qualquer uma das duas infrações, as penalidades resultantes da condenação podem incluir multas sem limitação legal de valor, bem como a potencial proibição na competição de contratações futuras com o governo.

Alcance extraterritorial

As duas novas infrações trazidas pelo UK Criminal Finances Act têm implicações globais para as empresas, ou seja, tanto dentro quanto fora do Reino Unido. De maneira diversa à Lei de Lavagem de Capitais, que não estabelece hipóteses especiais de extraterritorialidade, na norma do Reino Unido caso exista evasão de taxas britânicas, qualquer companhia estabelecida em qualquer lugar do mundo poderá ser responsabilizada, sendo suficiente para isso que a mesma seja incorporada ao Reino Unido ou tenha filial no país. Já no caso de evasão fiscal de taxas estrangeiras, apenas companhias incorporadas ou operantes no Reino Unido podem ser responsabilizadas pela falha em prevenir que pessoas associadas facilitem a evasão fiscal.

A infração da seção 46 requer “criminalidade dual”, isto é, que a facilitação da evasão fiscal seja infração criminal tanto no Reino Unido quanto na jurisdição internacional, não requerendo, entretanto, condenação na jurisdição estrangeira para que a persecução seja iniciada no Reino Unido, sendo necessário para tanto, o consentimento do Diretor de Persecuções Públicas e do Diretor do Serious Fraud Office.

Um importante efeito da hipótese extraterritorialidade especial advinda do UK Criminal Finances Act, e do requisito de criminalidade dual, seria a possibilidade de persecução dupla 11 de uma empresa nos casos de crimes de lavagem de capitais, no Brasil e no Reino Unido, se cumpridos os requisitos de ambas as leis.

Prevenção Razoável

Enquanto a Lei de Lavagem e Capitais estabelece em seus artigos 10 e 11 os procedimentos específicos de cuidado para a prevenção de crimes de lavagem de dinheiro que deverão ser observados também pelas pessoas jurídicas no Brasil, no Reino Unido, os devidos cuidados a serem observados pelas empresas na prevenção da evasão fiscal foram publicados por um guia do departamento do governo britânico responsável pelo recebimento de taxas, o HMRC (Her Majesty’s Revenue and Customs)12. Os procedimentos recomendados servem como importante ferramenta probatória para se eximir de responsabilidade a organização que for alvo de investigações por conduta de facilitação de evasão fiscal. Os princípios se espelham em procedimentos já previstos no UK Bribery Act13, também incorporados pela Lei Anticorrupção do Brasil.

Em suma, são: (i) Avaliação de Riscos; (ii) Proporcionalidade dos procedimentos preventivos em relação aos riscos; (iii) Comprometimento da Alta Administração; (iv) Due Diligence; (v) Comunicação e Treinamento; (vi) Monitoramento e Revisão de procedimentos.

Unexplained Wealth Orders

O UK Criminal Finances Act também criou um processo pelo qual autoridades podem investigar fontes suspeitas de riqueza de pessoas supostamente envolvidas em crimes financeiros. Autoridades podem requerer explicações de indivíduos sobre a origem dos ativos que considerarem ser desproporcionais em sua renda por meio da Unexplained Wealth Order, UWO, isto é, uma requisição de explicação de riqueza suspeita.

A obtenção de uma UWO de um tribunal demanda as seguintes condições: (i) causa razoável que indique que indivíduo mantenha a propriedade em questão, e que o valor da propriedade seja maior que £50.000; (ii) indivíduo seja uma pessoa politicamente exposta ou que existam níveis razoáveis para se suspeitar que um indivíduo seja ou tenha se envolvido em crimes graves, ou uma pessoa relacionada com o indivíduo esteja.

Se uma pessoa submetida a uma UWO falha em cumprir com a ordem sem razoável justificativa, sua propriedade e rendimentos suspeitos podem ser congelados ou confiscados. Além disso, uma pessoa considerada culpada de uma falsa afirmação em resposta a uma UWO pode ser condenada a até 2 anos de prisão, à multa, ou a ambos.

Deferred Prosecution Agreements

Alternativa voluntária ao processo, o promotor pode conceder anistia aos acusados de práticas de evasão fiscal que concordarem em cooperar totalmente com as investigações, além de cumprir determinados requisitos, como o pagamento de multas, compensações, bem como a colaboração em futuras investigações. Essa possibilidade é permitida pela lei por meio de Deferred Prosecution Agreement (DPA), espécie de acordo de leniência.

Realizado sob supervisão de um juiz, convicto de que o DPA deve atender os interesses da justiça. Sendo os termos justos, razoáveis e proporcionais, o comportamento criminoso de uma empresa poderá ser integralmente reparado sem o peso de uma condenação, além de economia de tempo e custos resultantes da suspensão de processos.

Conclusão

A nova lei britânica é resultado de uma tendência global, envolvendo o Reino Unido, os Estados Unidos e outros órgãos internacionais no combate à evasão fiscal, à lavagem de dinheiro e a outros crimes financeiros.

A responsabilidade de organizações e empresas pela facilitação da evasão fiscal promovida por um de seus quadros agora se dá de forma objetiva, sendo despiciendo o intento ou consentimento dirigido por parte da cúpula de sócios ou diretores. A nova lei resulta em uma mitigação da Doutrina da Identificação, que estabelecia até então, distinção clara entre a personalidade jurídica da organização e a personalidade individual de seus quadros.

Assemelhando o tratamento dado aos casos de suborno pelo UK Bribery Act, o UK Criminal Finances Act aumenta substancialmente o poder de combate das autoridades britânicas contra empresas lenientes em relação a condutas de evasão fiscal promovidas por pessoa associada aos seus quadros. No âmbito internacional, o poder de combate foi incrementado, por meio da previsão de extraterritorialidade, bem como internamente, pela previsão das UWOs.

O Reino Unido, por meio do UK Bribery Act de 2010 e agora do UK Criminal Finances Act de 2017, caminha cada vez mais no sentido de exigir do ambiente empresarial britânico a existência e consolidação de efetivos programas de conformidade, que valorizem o contínuo monitoramento de riscos, a adoção de medidas proporcionais aos riscos inerentes do negócio, o comprometimento da cúpula de sócios e diretores e o devido dever de cuidado.

Em breves linhas, buscou-se realizar um panorama da nova legislação do Reino Unido no combate à evasão fiscal, à lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, traçando suas principais características e implicações, bem como, relacionando as novas regras ao ordenamento brasileiro.

E assim como tem ocorrido no combate à corrupção, o enrijecimento e a criação de novas regras para o combate à evasão fiscal, à lavagem de dinheiro e a outros crimes financeiros, em âmbito internacional, repercutirá fortemente no Brasil, sendo provável que o ordenamento jurídico brasileiro seja também influenciado, se modifique e caminhe na direção da regulamentação internacional.

__________________

1 Disponível em: Real GDP growth – Annual percent change. GDP growth (annual %) Acesso em: 20.dez.17.

2UNITED KINGDOM. UK National Risk Assessment. Acesso em: 20.dez.2017.

3Action Plan for anti-money laundering and counter-terrorist finance. Acesso em: 20.dez.17.

4UNITED KINGDOM. UK Criminal Finances Act.Acesso em: 20.Dez.2017. Acesso em: 20.dez.2017.

5UNITED KINGDOM. UK Bribery Act 2010. Acesso em: 20.dez.17.

6 BRASIL. Carta-Circular nº 1 de 1º de dezembro de 2014.Divulga os procedimentos a serem adotados pelas pessoas físicas e jurídicas submetidas à regulação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, para o cadastramento de que trata o inciso IV do art. 10 da lei 9.613, de 3.3.1998. Acesso em: 21.dez.17.

7 Para maiores informações, clique aqui. Acesso em: 21.dez.17.

8UNITED KINGDOM. Call for evidence on corporate liability for economic crime, from Ministry of Justice, soliciting opinions on how the identification doctrine impacts the enforcement of the criminal law against large corporate entities. Acesso em: 20.dez.17.

9 Pierpaolo Cruz Bottini conceitua a cegueira deliberada como instituto de origem jurisprudencial norte-americana pelo qual se aceita como dolosos os casos em que o agente se coloca em uma situação proposital de erro de tipo. Assim, tem dolo de lavagem de dinheiro não apenas o agente que conhece (dolo direto) ou suspeita (dolo eventual) da origem ilícita do capital, mas também aquele que cria conscientemente uma barreira para evitar que qualquer suspeita sobre a origem dos bens chegue ao seu conhecimento. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro na APn 470/MG. Revista dos Tribunais. São Paulo. v.102. n.933. jul. 2013. p.384-400.

10 Segundo Isidoro Blanco, professor de Direito Penal na Universidade de Alicante: “[…] Concretamente, el Grupo de Acción Financiera (GAFI), en sus recomendaciones dirigidas a los Estados, establece que “en la medida de lo posible, las sociedades mismas, y no sólo sus empleados, deberían quedar sujetas a responsabilidad penal. (recomendación n°7)” – CORDERO, Isidoro Blanco. Combate al Lavado de Activos desde el Sistema Judicial. Penalización de Lavado de Dinero: Aspectos Sustantivos, Principios y Recomendaciones Internacionales. 2007. p. 180.

11 “Um réu não pode ser julgado e processado duas vezes pelo mesmo crime, exceto se a análise de seu caso for feita por jurisdições de dois países diferentes e o crime afetar as duas nações”. Acesso em: 20.dez.17.

12 UNITED KINGDOM. Tackling tax evasion: Government guidance for the corporate offences of failure to prevent the criminal facilitation of tax evasion. HMRC. Acesso em: 20.dez.2017.

13UK Bribery Act 2010: Guidance to help commercial organizations prevent bribery.Acesso em: 20.dez.17.

_____________

*Paulo Teixeira Fernandes é advogado do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.

*Victor Duarte Almeida é advogado do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.

*Danilo Emanuel Barreto de Oliveira é colaborador do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.

back