Juristas apontam caminhos que Bolsonaro pode usar para tentar escapar de condenação no STF
Advogados do ex-presidente podem sustentar que o entorno de Bolsonaro atuou sem sua anuência e que os militares seriam os verdadeiros beneficiários de um golpe; além disso, eles tendem a explorar nulidades processuais e a parcialidade de Moraes e vão buscar levar o caso ao plenário do STF
Após ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), o ex-presidente Jair Bolsonaro já articula com sua defesa estratégias para afastá-lo das acusações. Entre as principais frentes de argumentação, juristas apontam que os advogados de Bolsonaro devem sustentar que o entorno do ex-presidente atuou sem sua anuência, apontando os militares como principais beneficiários da suposta trama golpista, além de argumentarem que os crimes imputados não chegaram a ser executados e, portanto, não seriam passíveis de punição. Por outro lado, segundo eles, a defesa também deve apontar uma parcialidade do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), entre outros aspectos do provável processo.
Ao Blog do Fausto Macedo, a defesa rejeitou a tese de que Bolsonaro tentou implementar um golpe. Segundo os advogados do ex-presidente, o clima após as eleições de 2022, quando uma parcela dos eleitores ficou inconformada com a derrota do ex-presidente, “pode ter dado azo a toda sorte e latitude de cogitações inconformistas”, mas nega que Bolsonaro tenha cogitado um golpe. “Bolsonaro jamais deu espaço à discussão de qualquer medida que não fosse absolutamente legal, legítima e pacífica.”. A defesa também negou que Bolsonaro tenha intenção de fugir ou se abrigar em uma embaixada.
A denúncia apresentada pela PGR contra Bolsonaro foi encaminhada ao ministro Alexandre de Moraes nesta terça-feira, 18. Além da tentativa de golpe de Estado, o órgão atribui ao ex-presidente os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, liderança de organização criminosa armada, dano qualificado por violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, e deterioração de patrimônio tombado – todos supostamente cometidos com o objetivo de reverter o resultado das eleições de 2022, que garantiram a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro foi notificado no dia seguinte para apresentar a defesa prévia e, com isso, foi aberto um prazo de 15 dias para a manifestação dos denunciados. Concluída essa etapa, a Primeira Turma decidirá se recebe a denúncia. Caso seja aceita, Bolsonaro se tornará réu, e o processo terá início.
Um dos primeiros pontos que a defesa deve explorar, explica o jurista e ex-presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Renato Vieira, é a tentativa de desvincular Bolsonaro da suposta trama golpista. A estratégia será argumentar que não há uma relação direta de comando entre o ex-presidente e as ações planejadas por seu entorno, sustentando que ele não teria dado ordens nem participado ativamente dos atos investigados.
Vieira explica que essa linha de defesa busca sustentar que Bolsonaro não seria o principal beneficiado com a suposta trama, mas sim os militares de seu governo, como o general Mário Fernandes, preso no final de 2024 e um dos denunciados pela PGR. Segundo as investigações, Fernandes teria sido um dos principais responsáveis pela elaboração do plano “Punhal Verde e Amarelo”, que previa o assassinato do presidente Lula , do vice-presidente Geraldo Alckmin e de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O jurista avalia, porém, que, além das provas apresentadas pela PGR serem robustas e indicarem a participação direta de Bolsonaro em todas as etapas do suposto plano golpista, a aplicação da teoria do domínio do fato dificulta a estratégia da defesa. A teoria sustenta que uma pessoa pode ser responsabilizada por atos ilícitos cometidos por subordinados se tiver controle sobre as decisões e ações do grupo, ainda que não os execute diretamente.
“No caso de Bolsonaro, a teoria se aplica porque, como presidente da República, ele estava no topo da estrutura de poder e praticou uma série de atos que não apenas sugerem, mas demonstram que ordenava ou, no mínimo, permitia que seus aliados adotassem medidas para tentar romper a ordem democrática”, explica.
Para o criminalista e coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Marcelo Crespo, outra linha de defesa será sustentar que, nos crimes contra a ordem democrática, como golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito, não houve atos executórios, apenas atos preparatórios – que não são puníveis pela legislação brasileira. Crespo explica que, embora a legislação preveja a punição para a tentativa desses crimes — do contrário, uma vez consumado o golpe, não haveria como responsabilizar os envolvidos —, existe uma linha tênue entre a mera cogitação e a efetiva execução do delito. O desafio, explica, está em delimitar o momento em que a articulação de um golpe deixa de ser apenas planejamento e passa a configurar atos concretos de execução.
“Será a primeira vez que iremos ver a Corte julgar essa questão e, apesar das provas serem fortes, a defesa irá explorar esse ponto”, diz.
A entrada do criminalista Celso Vilardi na defesa também sinaliza uma nova estratégia: questionar possíveis falhas processuais, diretas ou indiretas, em etapas anteriores da investigação. O foco será identificar possíveis violações a procedimentos do processo penal ou a direitos previstos na Constituição, visando comprometer a validade das provas. Vilardi é conhecido por sua atuação nessa linha, tendo obtido a anulação de provas em casos de grande repercussão, como na Operação Lava Jato, no Mensalão e na Operação Castelo de Areia.
Um exemplo dessa estratégia já pôde ser observado no pedido julgado e negado pela ministra Cármen Lúcia no início de fevereiro. A defesa de Bolsonaro questionou a atuação do ministro Dias Toffoli, alegando que ele teria designado de forma irregular o ministro Alexandre de Moraes como relator do inquérito das fake news. Segundo os advogados, essa designação permitiu que Moraes concentrasse múltiplas investigações sob sua relatoria, incluindo o inquérito das milícias digitais, que forneceu elementos para outras apurações, como a do suposto golpe de Estado, resultando na denúncia da PGR. Caso a ministra tivesse acolhido a argumentação da defesa, investigações conexas poderiam ser invalidadas, comprometendo até mesmo a apuração da suposta trama golpista.
Crespo avalia que a estratégia é legítima e se baseia na garantia de que o Estado respeite os direitos previstos na Constituição. Ele destaca que, assim como a defesa de Lula conseguiu apontar nulidades processuais na Lava Jato, a de Bolsonaro pode tentar o mesmo caminho no futuro. “Agora acho mais difícil, mas o Tribunal é político. Com uma nova composição, pode ser possível”, afirma.
Uma das frentes passíveis de contestação por nulidade pela defesa de Bolsonaro é a delação premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid. Os advogados do ex-presidente têm questionado as sucessivas mudanças nas declarações de Cid ao longo dos diversos depoimentos que integram o acordo de colaboração, homologado por Moraes em 2023. “Cada palavra de Cid precisa ser respaldada por provas, e essas variações nos depoimentos podem abrir brechas para contestação”, explica Crespo.
Além das dúvidas sobre a delação de Cid, a defesa também deve explorar questionamentos sobre a imparcialidade de Moraes, que já vem sendo contestada e pode futuramente embasar pedidos de nulidade. O professor de Direito Penal e jurista, Aury Lopes Jr., avalia que o ministro deveria se declarar suspeito, uma vez que as investigações indicam que os envolvidos teriam planejado crimes contra o Estado Democrático de Direito com ações direcionadas especialmente contra Moraes. Para Aury, essa circunstância deveria levar Moraes a considerar a possibilidade de se declarar impedido de julgar o caso — entendimento compartilhado por Crespo e Vieira.
O professor de Direito Penal da USP, Gustavo Badaró, reforça que, além da questão jurídica, a imparcialidade de um magistrado deve também ser percebida pela sociedade. Ele cita a teoria da aparência de imparcialidade, adotada pela Corte Europeia de Direitos Humanos, para avaliar questionamentos sobre a neutralidade de juízes.
“Não basta que o juiz seja imparcial; ele também deve, aos olhos da sociedade, parecer imparcial, para que a sociedade acredite na legitimidade do julgamento”, explica. Para Badaró, o mais adequado seria o afastamento de Moraes do caso. “É mais prudente que ele se retirasse do processo, até para evitar futuras brechas processuais”, conclui.
Após a apresentação da denúncia, a competência é transferida para outro juiz, garantindo a imparcialidade no processo. Embora essa regra se aplique apenas à primeira instância, Aury considera contraditório que Moraes tenha defendido esse modelo e, ao mesmo tempo, continue à frente do caso. “Seria mais prudente que ele se afastasse do processo, até para evitar futuras brechas processuais”, explica.
Uma vez que Bolsonaro se torne réu, o caso será julgado pela Primeira Turma, o que pode abrir uma nova frente de contestação, avalia Luiz Gomes Esteves, professor do Insper e pesquisador da USP. Em regra, cabem às turmas do STF o julgamento de temas penais, enquanto crimes comuns cometidos pelo presidente da República, pelo vice e por outras autoridades de cúpula, como os próprios ministros do tribunal, devem ser processados e julgados pelo Plenário — entendimento que, no entanto, se aplica apenas a quem está no exercício do cargo.
Esteves ressalta, porém, que o regimento interno do STF prevê que, em casos de grande complexidade ou relevância jurídica, o relator não apenas pode, mas deve encaminhar o julgamento ao Plenário. “Seria mais legítimo que esse caso fosse para Plenário”, diz.
Os criminalistas Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, e Pierpaolo Bottini concordam que a defesa tem margem para contestar a tramitação do caso na Primeira Turma, mas avaliam que a tendência é que o julgamento permaneça nesse colegiado. Kakay, porém, argumenta que a gravidade da acusação e a repercussão do caso justificariam uma análise pelo conjunto dos ministros. “Deveria ir ao Plenário pela relevância do caso”, resume.
O deslocamento do caso para o Plenário pode ser mais favorável a Bolsonaro tanto pelo potencial de prolongar o processo, possivelmente estendendo-o até 2026 – ano eleitoral, o que aumentaria a pressão sobre a Corte –, quanto pela presença dos ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça, indicados por Bolsonaro. Ambos já divergiram da maioria do tribunal em casos semelhantes, como nos julgamentos dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Os dois podem, por exemplo, solicitar vista – mecanismo que permite a um ministro adiar a decisão para análise mais detalhada, com prazo de devolução de 90 dias corridos –, além de levantar questionamentos processuais que atrasem o julgamento.
“Caso seja contestado, tem chance de ir para o Plenário. Esse é um julgamento histórico”, completa Marcelo Crespo.
Fonte: https://www.estadao.com.br/politica/juristas-apontam-caminhos-que-bolsonaro-pode-usar-para-tentar-escapar-de-condenacao-no-stf/?srsltid=AfmBOooKL-bT_KYMn0PpADPvqdJge8fPWkVgQy_6IY7NAuax0W62xznG