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O problema do devedor contumaz

  • Sonegadores que organizam sua atividade econômica em torno da ocultação e da fraude fiscal dispõem de benevolência rara
  • Marco legal prevê impedimento de fruir de benefícios fiscais, de participar de licitações e de formalizar vínculos com a administração pública

O Brasil é um país desigual. No campo econômico, jurídico e social, são evidentes as discrepâncias de tratamento político e jurídico entre as classes sociais, raças e gêneros.

Existem políticas em andamento para enfrentar ou reduzir tais desigualdades, como programas de redistribuição de renda, reformas tributárias com foco na tributação progressiva e ações afirmativas, dentre outras.

Todas são relevantes, mas é preciso cuidar do outro lado dessa moeda: os privilégios legais insustentáveis, que beneficiam certas pessoas e grupos, usados para proteger acúmulos de capital ilícito, e que colocam seus beneficiários em uma posição de desigualdade em relação a todos os demais integrantes da sociedade.

Falamos aqui dos sonegadores contumazes. Aqueles que, de forma reiterada, subtraem dos cofres públicos valores consideráveis, organizam sua atividade econômica em torno da ocultação e da fraude fiscal. São agentes econômicos que constroem seu patrimônio por meio de delitos fazendários, descumprem abertamente as regras seguidas pelos demais empresários e, por isso, têm vantagens econômicas substanciais. Trata-se de um número pequeno, cerca de 1.200 pessoas, que acumulam mais de R$ 200 bilhões em débitos tributários. Sua conduta afeta a livre concorrência, o ambiente de negócios e lesiona o fisco, dificultando o equilíbrio das contas públicas e o financiamento de programas sociais relevantes.

Não existe no Brasil um marco legal para o enfrentamento desse tipo de sonegação. Seus agentes recebem benefícios fiscais, participam de licitações, disputam concessões. Quando respondem pelo crime fiscal, podem aguardar tranquilos o trâmite processual até o final, até o julgamento de todos os seus recursos, porque, caso sejam condenados, sua punição será extinta se decidirem acertar suas contas com o fisco.

Quem pratica qualquer crime patrimonial comum, como furto ou apropriação indébita, é punido mesmo que restitua o bem ou ressarça o dano, a qualquer tempo. Já o sonegador, mesmo contumaz, deixa de ser castigado quando paga seu débito, ainda que depois de uma condenação definitiva, o que incentiva a protelação da satisfação do débito por anos e anos.

Nenhum outro país sério trata com tanta benevolência aquele que descumpre as regras fiscais com contumácia. Enquanto todos observam suas obrigações, esse devedor segue desassombrado, fazendo do crime a escada para suas conquistas patrimoniais, muitas vezes recebendo aplausos de uma sociedade desavisada.

Para enfrentar essa situação, está em discussão no Senado Federal o projeto de lei complementar 125/2022, que institui o Código de Defesa do Contribuinte. Dentre outras disposições, cria a figura do devedor contumaz: aquele que, no âmbito federal, tem contra si créditos tributários inscritos de valor igual ou superior a R$ 15 milhões, equivalentes a mais de 100% de seu patrimônio conhecido, e mantém essa situação irregular em pelo menos quatro períodos de apuração consecutivos —ou em seis períodos de apuração alternados, no prazo de 12 meses, desde que não existam justificativas consistentes para tal conduta, como calamidades, apuração de resultados negativos ou ausência de fraudes à execução fiscal.

Caso seja considerado contumaz, o devedor será impedido de fruir de benefícios fiscais, de participar de licitações, de formalizar vínculos com a administração pública (autorizações, licenças, habilitações, concessões) e será declarado inapto na inscrição do cadastro de contribuintes da respectiva administração tributária. Mais: não poderá ser beneficiado com a extinção da punição penal caso satisfaça os débitos, ficando revogado o inexplicável privilégio, ao menos em relação a esses agentes.

Quem faz do crime fiscal um trampolim para o sucesso empresarial deve ser tratado de forma diferente e com mais rigor. A medida é legítima e não demanda grandes argumentos em sua defesa. A dificuldade na tramitação do projeto de lei revela a resiliência e a força daqueles que se beneficiam de uma legislação anacrônica, abraçam privilégios mascarados e se esforçam para fazer do Brasil um país desigual em todos os aspectos.

Fonte:https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/10/o-problema-do-devedor-contumaz.shtml

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