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O desafio de regular as bets

Caminho para consolidar mercado legítimo deve observar proteções aos usuários, ao fisco e à segurança pública

Fernanda Garibaldi

Advogada, é mestre e doutora em direito (USP) e diretora-executiva da Zetta, associação de empresas de tecnologia que oferecem serviços financeiros digitais

Pierpaolo Cruz Bottini

Advogado e professor de direito penal da USP

Em 1941, a Lei das Contravenções Penais previa a proibição dos jogos de azar, embora a existência de cassinos fosse tolerada. De lá para cá, muita coisa mudou. Cassinos foram proibidos e fechados, e o jogo se tornou monopólio das casas lotéricas, geridas pelo poder público e limitadas em número e extensão.

O que não mudou, contudo, foi o intento humano de tentar manipular a sorte, arriscando a ganhar ou perder em eventos que dependem do acaso. A voracidade pelas apostas inflou uma extensa atividade paralela, no qual despontou o jogo do bicho, capitaneado por agentes às margens da lei, mas não tão às margens da sociedade.

Passado meio século, o mercado legal de apostas foi reaberto. A aprovação da lei 13.756/2018 criou um regime de autorização para a exploração privada das apostas de quota fixa e determinou um prazo de dois anos, prorrogável por mais dois anos, para sua regulamentação. Nesse período, proliferaram as bets, empresas que exploram os mais variados tipos de apostas, com sedes no Brasil e no exterior.

Movimentaram valores impressionantes, patrocinaram times de futebol e impactaram o mercado de bens de luxo, com a aquisição de aeronaves, automóveis e obras de arte. Com o fim da clandestinidade, o jogo tornou-se um personagem oficial das propagandas, arenas e redes sociais.

Em 2023 foi promulgada a lei 14.790, que pôs de pé as primeiras regulamentações, em uma tentativa de conter um crescimento desgovernado do mercado de apostas esportivas, proteger o consumidor e evitar que o setor fosse usado para a lavagem de dinheiro. O governo definiu regras para o cadastramento das empresas no Ministério da Fazenda, estabeleceu diretrizes para sua tributação e determinou a retirada do ar das casas de apostas sem pedido de outorga na Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA). Em outras palavras, deu um passo para sanear o setor.

Mas há mais a ser feito. O crescente endividamento da já combalida população brasileira com o jogo é preocupante. Ainda que não haja consenso sobre valores, impressionam os volumes gastos no setor pelos beneficiários do Bolsa Família. Empresas de varejo e de ensino sentem os impactos da troca de bens de consumo e educação por fichas de apostas, e cresce a preocupação com o endividamento e o possível vício de adolescentes nos cassinos virtuais.

Tais problemas não são argumentos para demonizar o setor. Gostemos ou não, os jogos e apostas como entretenimento existem desde os tempos imemoriais, e é preciso assegurar que esse tipo de entretenimento seja legítimo e não atividade criminosa. Por isso, não parece adequado defender o regresso a um sistema de proibição total, ou uma política de paternalismo excessivo —mas alguns cuidados são importantes na regulação do setor.

Um deles: resguardar a idoneidade e seriedade do mercado de bets.

É necessário aprimorar regras de supervisão e funcionamento das empresas; restringir certas formas de publicidade, em especial as direcionadas aos jovens, e o uso de cartões de crédito ou formas de endividamento para apostar; definir critérios de compliance e de prevenção de lavagem de dinheiro. É importante que as empresas do setor comuniquem atividades suspeitas de seus clientes às autoridades de inteligência financeira e preservem dados e informações a respeito de suas operações.

Outra cautela é proteger o consumidor de tais serviços, para que não se torne um jogador patológico. Para além dos danos sociais do superendividamento das famílias, é preciso pensar nos danos psíquicos à saúde do apostador adicto —o SUS e os CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) não estão equipados para lidar com esse problema.

Por fim, como se trata de um mercado que movimenta bilhões de reais, deve-se resguardar o interesse do Estado brasileiro como ente arrecadador. Uma vez que está concedendo —por meio de outorga— a exploração de atividade considerada de alto risco para o usuário, deverá receber a contrapartida em tributos (aplicáveis à casa de apostas e ao apostador, a depender do valor do prêmio), de modo que possa reverter tal arrecadação em benefício da sociedade.

É um caminho longo a ser percorrido, e a solidez dos primeiros passos será decisiva para a consolidação de um mercado regulado, seguro e capaz de promover uma atividade econômica legítima, com as proteções necessárias aos usuários, ao fisco e à segurança pública.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/10/o-desafio-de-regular-as-bets.shtml

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