O conceito de maus antecedentes para além do processo penal
Nos últimos anos, não foram poucas as críticas ao alargamento persecutório produzido pelas grandes operações policiais, em especial no âmbito da “lava jato”, recaindo invariavelmente contra a classe política e empresarial do país. Se de um lado os excessos impuseram marcas perpétuas naqueles cidadãos investigados e/ou denunciados, de outro, fomentaram o amadurecimento institucional que permitiu mudanças legislativas e jurisprudenciais capazes de mitigar aqueles exageros acusatórios.
Ainda que as prisões preventivas/temporárias sem fundamento, as buscas e apreensões indiscriminadas, as conduções coercitivas para prestar depoimento, dentre outras tantas ilegalidades, não ocupem mais o mesmo espaço na prática jurídica do dia a dia e nos meios de comunicação, há questões que ainda merecem especial atenção daqueles que anseiam a consolidação de um Estado de Direito pautado no respeito às garantias constitucionais.
Uma delas: a abrangência do conceito de maus antecedentes ou da idoneidade moral dos cidadãos.
No âmbito penal e processual, o termo antecedente é usado em diversas passagens legais, seja para definir a dosimetria da pena (CP, artigo 59) seja para fins processuais (CPP, artigo 6º, VIII), seja para a execução penal (LEP, artigo 5º).
Por muito tempo se discutiu se maus antecedentes abrigariam apenas aqueles condenados definitivamente, por decisões transitadas em julgado, ou se processos em andamento ou condenações não definitivas também integravam tal conceito. A primeira opção foi definida pela jurisprudência como a mais adequada a um sistema constitucional fundado na presunção de inocência.
O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 444: “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base” [1]. No Supremo Tribunal Federal, a tese foi fixada no julgamento do RE 591.054 (Tema 129), sustentando-se que: “A existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena”[2].
A superação da querela no âmbito penal não implicou o fim das confusões conceituais. No Direito Administrativo, no qual expressões como maus antecedentes e idoneidade são vezeiras para postulantes a cargos públicos ou para empresas em busca de concessões e autorizações, a ideia da presunção de inocência não parece fazer o mesmo sucesso.
Impacto no mercado de apostas
Não são raras as impugnações de candidatos em concursos públicos ou ao exercício de atividades privadas reguladas – como a advocacia – por maus antecedentes ou falta de idoneidade quando constatadas investigações ou ações penais em curso contra seus postulantes. Mais recentemente, o tema voltou ao cerne do debate jurídico a partir da expansão do mercado de apostas e da regulação do setor.
Disciplinado nas Leis Federais nº 13.756/2018 e 14.790/2023, a regulação da atividade das chamadas bets ficou a cargo do Poder Executivo, que fixou as regras e condições para a obtenção da autorização para exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa na Portaria SPA/MF nº 827, de 21 de maio de 2024.
Para a autorização do exercício da atividade, o requerente deve, dentre outras exigências, apresentar documentos que comprovem a idoneidade dos controladores, detentores de participação qualificada, beneficiários finais, administradores e responsável legal, dentre os quais a certidões negativas de antecedentes criminais.
Essa idoneidade tem sido interpretada como ausência de quaisquer ações penais ou investigações em andamento, de forma que a existência de inquéritos ou expedientes contra as pessoas físicas que representem a empresa interessada na autorização parece ser um fundamento para o indeferimento do pleito.
Não é a interpretação mais adequada.
A prerrogativa legal da autoridade administrativa para definir os requisitos necessários à autorização não significa que os preceitos constitucionais possam ser mitigados. Se a Constituição estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, artigo 5º, LVII), não é possível restringir um direito pela existência de acusações ainda não consolidadas, de qualquer espécie e natureza. Isso não significa, por óbvio, que o Estado não pode privar cautelarmente pessoas de poderes ou atribuições quando existam motivos concretos para tal fato, como nos casos de prisões preventivas, proibição de dirigir, de realizar certas atividades ou de frequentar certos lugares. Mas, para isso, é necessária a constatação concreta de sua necessidade,
acompanhada de fundamentação específica.
A suspensão automática de uma empresa do direito de pretender autorização para explorar a atividade de apostas porque um de seus representantes tem contra si investigação em andamento, além de confundir a idoneidade das pessoas jurídicas com as físicas, joga por terra a presunção de inocência. Nega direitos em decorrência de uma suspeita, sequer analisada por magistrado, sequer reconhecida pelo Ministério Público como capaz de sustentar uma denúncia. Se nem mesmo uma condenação não definitiva permite a supressão de uma série de direitos, que dizer de um inquérito ainda não concluído.
O entendimento do STF
Neste ponto, a irretocável manifestação do e. ministro Celso de Mello, ao apontar que a presunção de inocência “(…) irradia seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não criminais, em ordem a impedir, (…) que se formulem, precipitadamente , contra qualquer cidadão juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou , então, que se imponham ao réu restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado” [3].
Não é outra a posição do Pleno do STF, que ao tratar do conceito de idoneidade moral e da reputação ilibada no julgamento do RE 560.900, reconheceu que: “Sem previsão constitucionalmente adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal” [4]. (Tema 22)
Em seu voto, o e. ministro relator Luís Roberto Barroso, para além das críticas ao conceito, teceu considerações relevantes sobre a impossibilidade de inquéritos policiais ou processos criminais existentes contra um cidadão balizar a aferição da sua idoneidade moral.
“Eliminar candidatos a partir de cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, tais como “idoneidade moral”, mediante juízo subjetivo de banca examinadora, é incompatível com os princípios republicano, da impessoalidade e da ampla acessibilidade aos cargos públicos, na forma como devem ser pensados no atual contexto brasileiro. Num Estado Democrático de Direito, ninguém, por maior que seja sua retidão de caráter e conduta, está imune a ser investigado e até a responder a uma acusação penal, de modo que a simples existência de inquéritos ou processos não se presta a aferir a idoneidade moral” (Grifos nossos)
O Estado de Direito exige coerência e racionalidade. Se o sistema jurídico é um todo lógico e harmônico, a ideia de presunção de inocência deve irradiar para além do direito penal, de forma que não parecem consistentes quaisquer restrições de direito fundadas na prática de delitos não reconhecidos definitivamente em decisão judicial, exceto nos casos de medidas cautelares fundamentadas.
Pierpaolo Cruz Bottini é professor da Faculdade de Direito da USP, sócio do Bottini e Tamasauskas Advogados e integrante do Grupo de Estudos sobre Lavagem de Dinheiro da Faculdade de Direito da USP (Geld)
Tiago Sousa Rocha é advogado criminalista e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-nov-04/lavagem-afins/