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O crime de stalking para além das relações privadas

A criminalização da conduta e o desenvolvimento de políticas para inibir a prática são passos relevantes para proteger a liberdade e a intimidade das pessoas e a paz na convivência social

A perseguição é um ato de violência. Ainda que não haja agressão física, a ameaça, expressa ou implícita, e a perturbação psicológica dela derivada afetam profundamente a paz da vítima. Aquele que acorda todos os dias com uma mensagem ameaçadora, um post agressivo, uma alusão perturbadora, é afetado profundamente em sua integridade psíquica e
emocional.

Por muito tempo, a perseguição não foi considerada crime, em geral pela falta de ameaças contundentes ou agressões reais. A perturbação, ainda que sistemática e constante, não chamava a atenção das autoridades por ser insidiosa, dissimulada. Ainda que abalasse a vítima, não indignava o grande público pela ausência de violência efetiva. A partir de um aumento de casos de abuso entre ex-casais, nos quais um deles perseguia com regularidade o outro por meios físicos e digitais, causando transtornos na vítima em seus familiares, o stalking passou a ser criminalizado em 2021, definido como o ato de perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. A pena é de reclusão, de 6 meses a 2 anos, e multa, sendo
aumentada quando o crime é cometido contra criança, adolescente ou idoso, contra mulher por razões da condição de sexo feminino, mediante concurso de 2 ou mais pessoas ou com o emprego de arma.

Se no início tinha relação estreita com situações de violência doméstica ou de perseguições derivadas do rompimento de relações amorosas, o delito passou, nos últimos tempos, a ser reconhecido em diversos outros âmbitos: em relações trabalhistas, em que o patrão ou o empregado perseguem um ao outro em decorrência de ressentimentos mútuos ou pelo não cumprimento de determinadas obrigações; no âmbito acadêmico, em razão de pleitos não acolhidos ou de reprovações não esperadas; em relações societárias, por conflitos entre acionistas ou operadores de mercado; e mesmo entre fãs e seus artistas preferidos, quando a admiração se transforma em uma obsessiva perseguição para obtenção de atenção da vítima.

No âmbito político, institucional ou profissional, é comum que o stalking tenha o objetivo de intimidar manifestações ou o regular desempenho das atividades da vítima. O uso de milícias digitais contra magistrados, parlamentares, jornalistas ou advogados é uma forma de inibir sua atuação, restringir sua voz ou cercear suas opiniões e manifestações. Ocorrem quando são debatidas questões polêmicas, quando o profissional incomoda determinado grupo com sua atuação, ou quando deixa de favorecer expectativas artificialmente criadas. São casos em que, para além da liberdade da vítima, afeta-se a coletividade, o bem público representado por esses atores sociais.

O stalking ganha contornos graves quando praticado por meio de redes sociais, que potencializam a perseguição pontual e física por meio de postagens e mensagens compartilhadas com milhares de pessoas. O perseguidor divulga fatos íntimos, faz insinuações ou busca descredibilizar a vítima. Inúmeras pesquisas apontam que o Brasil seria, atualmente, o terceiro maior consumidor de redes sociais do mundo, com cerca de 130 milhões de pessoas conectadas e com acesso a plataformas, o que potencializa ataques e ofensas. Há casos em que os criminosos criam páginas, usam blogs ou influenciadores para abalar a tranquilidade do perseguido e de seus familiares, afetando sua paz com mais intensidade do que quando são utilizados os meios tradicionais.

Nesse contexto, é oportuna a criminalização do stalking, que permite não só o processo e a condenação dos agressores, mas também a tomada de medidas cautelares para fazer cessar a prática no momento de sua ocorrência, afastando o criminoso da vítima, suspendendo sua atividade digital ou proibindo-o de mencionar o perseguido em suas manifestações nas redes sociais. Há cada vez mais casos em que juízes proíbem réus de usar redes sociais, de frequentar determinados lugares ou vedem qualquer
alusão às vítimas por parte do acusado. Mas é preciso ir além. As polícias devem ser capacitadas e treinadas para investigar os fatos, encontrar a autoria de perseguições digitais por meio de quebras de sigilo e com o auxílio de aplicativos que colaborem na
identificação de IPs e endereços dos agressores. As plataformas e redes precisam auxiliar nessa tarefa, compartilhando informações e cumprindo medidas cautelares, nos termos da legislação. E os agentes políticos devem promover campanhas de esclarecimento e educação para comunicar a gravidade do ato e as consequências severas de sua prática.

Em uma época em que a informação é transmitida em frações de segundo, com a massificação de ataques reiterados ocorridos por meio digital, a tomada de consciência da seriedade do ato, a criminalização da conduta e o desenvolvimento de políticas para inibir sua prática são passos relevantes para proteger a liberdade e a intimidade das pessoas e a paz na convivência social.
Pierpaolo Cruz Bottini, Tiago Rocha e Pablo Naves Testoni são, respectivamente, advogado criminalista, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP e sócio do Bottini & Tamasauskas Advogados; advogado criminalista e sócio do Bottini & Tamasauskas Advogados; e advogado criminalista e sócio do Paoletti & Naves eTestoni Sociedade de Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser
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Fonte:https://valor.globo.com/legislacao/coluna/o-crime-de-stalking-para-alem-das-relacoes-privadas.ghtml

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