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O Brasil precisa aprender a respeitar a Constituição.

Entrevista do sócio, Dr. Pierpaolo Bottini, à Revista Isto É.

Uma confusão entre a política e o direito penal faz que as pessoas se indignem com os resultados da Justiça, mas o professor de Direito Penal da USP, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que é preciso “dar ao Direito Penal o que é do Direito Penal”. O jurista, embora tenha seu posicionamento político, prefere fazer suas considerações a partir das leis e diz que a sociedade pode mudar as regras do jogo, enquanto isso tem que conviver com o que está escrito na Constituição. Ele discute a prisão em segunda instância, as fake news, liberdade de imprensa, o futuro da Operação Lava Jato e a lavagem de dinheiro — tema do seu último livro. A respeito do governo Bolsonaro. Bottini entende que o presidente precisa ser responsabilizado pelos crimes apurados na CPI da Covid e pela intervenção na Polícia Federal. Mas adverte que, em ambos os casos, as ações jurídicas precisam de respaldo político.

LEGALISTA O jurista Pierpaolo Bottini entende que é preciso separar bem a política do ordenamento jurídico GABRIEL REIS© GABRIEL REIS LEGALISTA O jurista Pierpaolo Bottini entende que é preciso separar bem a política do ordenamento jurídico GABRIEL REIS

Um estado democrático consegue conviver com um presidente que ameaça o STF?

O presidente claramente cometeu uma atitude autoritária incompatível com a nossa Constituição quando ameaçou o Supremo Tribunal Federal. Acho que ele tem que responder judicialmente e politicamente. A questão é até que ponto as nossas instituições democráticas se sentem impactadas e qual é o instrumento que elas têm de reação? E eu acho que um instrumento importante foi a CPI da Covid, que investigou e identificou indícios sérios da prática de crimes. Os resultados estão com o Ministério Público Federal e a Procuradoria-Geral da República. Creio que o procurador Augusto Aras, apesar de ter sido nomeado pelo presidente, vai ter isenção. Ele é uma pessoa séria, com histórico e vai analisar com todo cuidado e competência.

© Edison Rodrigues

A apologia ao descumprimento das medidas sanitárias contra a Covid é elemento suficiente para responsabilizar o presidente que deveria ser um exemplo

A CPI da Covid identificou nove crimes do presidente. Qual deles o senhor pensa ser o mais grave?

Acho que têm vários. Crime de incitação, como a invasão de hospitais. Crime de incentivar o descumprimento de medidas sanitárias, como não usar máscara. Crime de espalhar a pandemia. A prescrição de cloroquina mostra o pouco caso com a pandemia. A apologia ao descumprimento das medidas sanitárias contra a Covid é elemento suficiente para responsabilizar o presidente, que deveria ser um exemplo. As declarações de Bolsonaro não representam apenas a fala de uma pessoa. Parte dos cidadãos pode entender que aquilo é uma fala oficial, que foi apresentada com base em estudos e análises, como deveria ser.

O senhor entende que o presidente quer oficializar a pedalada fiscal com a aprovação da PEC dos Precatórios?

Depois de aprovado pelo Congresso, o ordenamento jurídico começa a permitir o uso do dinheiro dos precatórios. Então não haveria um crime. Eu vejo nesse caso apenas opções políticas. Que podem ser eleitoreiras ou não, essa é a discussão. Temos que separar no Brasil o que é o mundo da política do universo do Direito Penal. Não pode se criminalizar as ações políticas o tempo todo, senão vamos ficar o tempo todo na lógica do impeachment. A opção econômica e a linha administrativa não podem ser punidas. A não ser, é claro, se houver uma malversação de dinheiro público, corrupção ou algum ato de descumprimento de norma sanitária. Vamos dar ao Direito Penal o que é do Direito Penal.

Bolsonaro é investigado por intervir na Polícia Federal. O senhor acha que depois do mandato o presidente e seus filhos podem ser presos?

Do ponto de vista jurídico, o presidente, enquanto está no exercício do mandato, não responde por atos estranhos às suas atribuições. No caso, existe uma relação com o seu cargo. Porque ele falou na intervenção da Polícia Federal. Para que ele seja processado e responsabilizado enquanto está no mandato é necessária uma autorização da Câmara dos Deputados, o que parece não ter condições políticas de acontecer. Depois de deixar a Presidência, isso não é mais necessário e ele pode ser processado em primeira instância. Eu acho que os atos do presidente da República e de membros da sua família vão caminhar quando acabar o mandato. Se eles vão ser presos ou não vai depender muito do processo.

Como o senhor avalia o quadro da sucessão presidencial em 2022?

Se nada mudar, vai ter um segundo turno entre Lula e Bolsonaro. Não existe espaço para um terceiro candidato. Até por conta da máquina do governo federal. E o Lula tem uma popularidade robusta. O PT já ficou no poder por três mandatos e meio e me parece ser uma social democracia que segue as regras do jogo. Por outro lado, historicamente, todo presidente, desde a redemocratização, foi para o segundo turno. Apesar da pandemia, dos desmandos e da inflação, Bolsonaro segue competitivo para essa eleição.

O STF interviu na política quando concedeu condições ao ex-presidente Lula disputar as eleições?

Foi uma decisão correta, porém tardia. O STF decidiu sobre a competência e reconheceu que a Justiça de Curitiba não era o lugar correto para se julgar os casos de Lula. Fazia anos que esse caso estava em Curitiba e a defesa do ex-presidente apontava essa incompetência. Ele passou 580 dias presos com a defesa dizendo que aquela Justiça não era competente. Depois de todo esse tempo, o STF julgou algo que para mim parecia evidente. Independentemente do mérito, Curitiba não tinha competência para julgar o caso e era claro e evidente. A demora do Judiciário criou uma crise de imagem, criou um desgaste.

O que o senhor pensa das prisões por fake news determinadas pelo STF?

A Constituição garante a liberdade de expressão. Mas quando a liberdade de expressão é usada para incitar o ódio, disseminar o racismo, para fazer a apologia ao crime, você tem um limite previsto na legislação. O ministro Alexandre de Moraes deixou claro que o STF vai prender quem incitar o ódio e violência com a intenção de afetar a imagem de alguém. Se o Roberto Jefferson quiser defender qualquer regime político ele pode. Agora, quando ele diz que vai entrar no Supremo, dar um pescoção nos ministros e jogar eles no lago, ele está incitando a violência.

O que o senhor pensa sobre a liberdade de imprensa?

Historicamente a relação entre o poder e a imprensa sempre foi de incômodo mútuo. E ainda bem. Porque é assim que a imprensa cumpre o seu papel. Se o governo estiver muito confortável com a imprensa, alguma coisa estará errada. O governante reclamar da imprensa é natural. Mas quando isso se converte em ação para cercear a liberdade de expressão, com pronunciamento oficial, impedimento de jornalistas específicos de ter acesso à informação, então estamos numa seara mais grave que aproxima o governo do autoritarismo.

O senhor escreveu o livro “Lavagem de Dinheiro”, tema que dominou a política nos últimos anos. O cidadão entendeu a importância da discussão?

O crime de lavagem de dinheiro tem uma complexidade, uma sofisticação. Lavar dinheiro é esconder o produto do crime. Os casos aparecem em forma de escândalos e ficam públicos em operações. E só nesse momento é que as pessoas se dão conta da gravidade e ficam sabendo como isso impacta, inclusive, na vida delas e no desenvolvimento econômico do País. As pessoas não percebem de maneira clara e objetiva como isso drena dinheiro do serviço público.

É comum que o fruto da lavagem vá parar em outro País?

Não são todos os casos, mas é frequente. A pessoa que pratica um crime no Brasil quer distanciar o recurso da sua origem. O sujeito que, por exemplo, pratica corrupção ou tráfico de drogas no Brasil, o quanto mais longe ele deixar o dinheiro, mais difícil será desses valores serem rastreados e confiscados. É muito comum que se use doleiros e estruturas fora do País em paraísos fiscais para que esses valores não sejam repatriados.

Políticos são os principais responsáveis pela corrupção?

A corrupção, em regra, sempre tem um corruptor e um corrompido. Então para além do funcionário público, tem o interesse particular que busca algum tipo de vantagem. Não adianta só demonizar o sistema político. Tem que olhar também para aqueles que buscam esse tipo de vantagem. Para existir uma cultura de probidade e ética, também será preciso perceber que a questão não está limitada aos políticos. O setor privado precisa ser repensado para que a gente viva num País com segurança jurídica, transparência e ética.

© ANDRE DUSEK

O ministro Alexandre de Moraes deixou claro que o STF vai prender quem incitar o ódio e violência com a intenção de afetar a imagem de alguém

A Operação Lava Jato pode ressurgir com mais força?

Acho que a Operação Lava Jato perdeu uma ótima oportunidade de fazer um combate consistente à lavagem de dinheiro. Quando começou a exagerar, usar delações premiadas e conduções coercitivas fora dos requisitos legais. Isso acabou afetando a credibilidade de toda a operação. Agora o combate à corrupção é algo que tem que ter continuidade. O Ministério Público e a Polícia ainda têm um trabalho para fazer. Eles têm instrumentos legais para continuar com as investigações.

A candidatura do ex-juiz Sergio Moro pode contribuir com o debate nacional de combate à corrupção?

Acho que não. Moro não tem uma projeção ou força política no momento e nunca deveria ter tido. Porque, na verdade, o ato de julgar não pode visar projeção política. Não pode visar o apoio popular. O juiz é aquele que vive de acordo com a lei e nunca de acordo com o apelo popular. É claro que o Moro vai contar com o apoio de uma parte importante da população, mas me parece que tudo que foi revelado, enfraquece a pretensão eleitoral do ex-juiz. Não acredito que ele tenha força suficiente para representar a terceira via. Eu penso que o combate à corrupção tem que ser feito independentemente da bandeira política. Tem que ser um projeto institucional de estado e não de governo.

Qual a polêmica na prisão em segunda instância ?

A Constituição é muito clara. Ela diz que você não pode executar a pena antes do fim do processo, antes do trânsito em julgado. Não sou eu quem diz isso, é a Constituição. O Brasil precisa aprender a respeitar aquilo que foi estabelecido no ordenamento jurídico. A gente pode discordar e apresentar proposta de mudança. À lei não cabe interpretação, está escrito que a pena só será cumprida após o trânsito em julgado. Ou seja, após o fim do processo. Então é importante que a gente tenha maturidade institucional para respeitar a Lei.

Dentro do debate político, há algum grupo que possa levar o combate à corrupção até as últimas consequências?

Essa é uma questão importante. O combate à corrupção tem que ser apurado pela lei. A gente está falando de um crime, regido pelo Código Penal. E, portanto, a Polícia, o Ministério Público, o Poder Judiciário têm que aplicar a lei independentemente de quem é governo ou do contexto político. Então, sempre que for identificado um ato de corrupção, ele tem que ser apurado e julgado até as últimas consequências. A questão de combate à corrupção tem que acontecer independente da conjuntura política. Seja para efetivamente debater, seja para respeitar a lei. O combater ou não a corrupção independe de uma conjuntura política.

 

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