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Política criminal para além da “lava jato”

No início de 2022, a ConJur promoveu um debate sobre estratégias de enfrentamento do crime organizado para além da “lava jato”, com procuradores, juízes, advogados e outros interessados no tema. Um primeiro debate contou com a participação do ministro Gilmar Mendes, do procurador-geral da República, Augusto Aras, da desembargadora federal Simone Schreiber, do advogado Walfrido Warde e do subscritor do presente artigo. Um segundo reuniu juízes federais para debater rumos da Justiça penal, com foco na experiência prática e nas dificuldades constatadas em casos concretos.

A iniciativa promoveu discussões mais do que necessárias.

Na esteira da ascensão da operação “lava jato”, estabeleceu-se uma falsa impressão de que a única forma eficiente de enfrentar o crime seria pelos métodos pouco ortodoxos — para dizer o mínimo — praticados naquele contexto.

Fixou-se uma ideia de que toda crítica às conduções coercitivas, às prisões pouco fundamentadas, ao vazamento de dados sigilosos, à parcialidade de magistrados, às condenações sem provas, implicaria a defesa de criminosos e suas práticas. Que qualquer debate sobre o enfrentamento à corrupção deveria passar pelo crivo de alguns poucos agentes públicos, consagrados por parte da mídia como portadores dos estandartes da boa vontade política e judicial.

É preciso deixar de lado esse maniqueísmo infantil. É importante compreender que é possível debater política criminal com outros personagens, discutir formas de enfrentar a corrupção dentro dos parâmetros da lei, com respeito ao devido processo legal e às regras estabelecidas, que passem ao largo do arbítrio e de excessos nas medidas de coerção.

E para isso não é necessário reinventar a roda. Há inúmeras experiências nacionais e internacionais que podem servir de parâmetro para a construção de alternativas viáveis.

No plano legislativo, é possível ir além da ciranda do aumento de penas e do rigor das punições propostas recentemente pelo governo federal — já reconhecidas como inúteis em diversos trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior. Mais importante é, por exemplo, organizar as regras de competência judicial, para evitar longas discussões sobre que juiz é competente para apurar cada delito, em especial em casos de crimes complexos, transnacionais e cibernéticos. Ainda é preciso atualizar as regras de prescrição, definir parâmetros para a quebra de dados nas investigações criminais, atualizar a legislação sobre drogas, racionalizar o procedimento de leniência de empresas que pretendem colaborar com o esclarecimento de crimes, definir com mais clareza o crime de obstrução de Justiça. No campo da lavagem de dinheiro, seria útil ampliar o número de profissionais obrigados a comunicar operações suspeitas, como aqueles que operam criptoativos e similares, dentre outros temas relevantes.

No plano administrativo, deve-se discutir a reformulação do Coaf, para dotar a entidade de maior estrutura e capacidade de gerenciamento de informações, a fim de garantir mais critério e efetividade na elaboração de relatórios e evitar investigações politicamente direcionadas. É preciso aprimorar os sistemas de cooperação internacional, para que operações de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal sejam conhecidas e apuradas.

E há ainda uma tarefa imensa no campo da gestão de informações sobre políticas de segurança, no qual é necessário implementar e aprimorar o Susp (sistema único de segurança publica), como recentemente defendeu o ministro Gilmar Mendes. Não é possível combater o crime organizado quando os estados não compartilham com a União informações de inteligência ou mesmo dados estatísticos, quando cada unidade federada compartilha esporadicamente dados, quando o país não conta sequer com um índice nacional unificado de esclarecimento de homicídios.

Enfim, há muito a ser discutido para além da “lava jato” e das propostas apenas punitivistas. Há pessoas capacitadas com vontade de apresentar ideias. Há universidades com alunos e professores debruçados sobre essas questões, com dados, estatísticas, e ideias a apresentar.

Rui Barbosa dizia que “mais vale simpatizar com o futuro, sondá-lo, dirigi-lo, do que deixa-lo fazer-se à nossa revelia”. É preciso organizar o futuro. Ir além dos adjetivos, dos brados de torcidas organizadas. Há muito a ser feito, e existem ideias boas na mesa, que merecem ao menos uma olhadela daqueles que se propõem a fazer deste país um local mais seguro e agradável para se viver.

 

Por Pierpaolo Cruz Bottini

https://www.conjur.com.br/2022-jul-11/direito-defesa-politica-criminal-alem-operacao-lava-jato

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