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Os crimes de perigo abstrato e o Supremo Tribunal Federal

Pierpaolo Cruz Bottini 1

Observatório da Jurisdição Constitucional – 2010

 

O crime de perigo abstrato é fruto da moderna técnica legislativa penal.

Ainda que no passado constassem, aqui e ali, tipos penais deste porte, é no final do século XX que tal técnica ganha corpo e espaço, tanto na legislação como nos estudos acadêmicos2.

A ânsia pela prevenção, pela intervenção antecipada do controle penal, por controlar o acaso e a tragédia decorrente de inúmeros riscos assumidos pela sociedade atual, leva o legislador a estabelecer como penalmente relevante o mero comportamento, independentemente de seu resultado de perigo ou de lesão. Não é por acaso que a produção legislativa penal atual tem como núcleo o tipo de perigo abstrato (Lei n. 11.705/2008 – Lei Seca, Lei n. 11.343/2006 – Lei Antidrogas, Lei n. 11.105/2005 – Lei de Biossegurança, Lei n. 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento).

No Supremo Tribunal Federal, o enfrentamento da legitimidade da aplicação destes dispositivos sempre despertou interesse e controvérsia. A atual discussão sobre os requisitos para reconhecer a relevância penal do porte de arma desmuniciada (RHC 89.889) ou do simples porte de munição (HC 90.075) decorre da controvérsia sobre a natureza e a abrangência dos crimes de perigo abstrato, que certamente pautará discussões futuras sobre a aplicação do novo tipo de embriaguez ao volante (CTB, art. 306).

A questão central sempre será é legítimo condenar alguém por agir conforme o tipo penal, mesmo quando não demonstrada a capacidade lesiva da conduta, mesmo potencial ou abstrata? O descumprimento da norma, per se, pode fundamentar a punição mesmo que nenhum bem jurídico, mesmo em tese, possa ser afetado pelo comportamento? Este procedimento está de acordo com um modelo constitucional que limita o direito penal à função de proteção de ataques lesivos a bens jurídicos, de maneira proporcional e subsidiária?

A questão remete à forma de interpretar e aplicar os crimes de perigo abstrato. Sobre o tema, destacam-se três posições (a) a previsão legal dos crimes de perigo abstrato é inconstitucional;

(b) os crimes de perigo abstrato são importantes e necessários para fazer frente aos novos riscos; e (c) os tipos penais de perigo abstrato são constitucionais, desde que interpretados de forma restritiva e limitada pelo aplicador da lei.

No primeiro caso, encontram-se alguns autores que apontam o conflito intransponível entre os crimes de perigo abstrato e os princípios da exclusiva proteção a bens jurídicos e da lesividade, advogando por sua inconstitucionalidade3.

Não nos parece a opção mais adequada. A própria Constituição Federal, em seu art. 5 º, XLIII, estabelece que o crime de tráfico de drogas é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Ora, o crime de tráfico de drogas é um crime de perigo abstrato, que prescinde do resultado para sua configuração. Não é necessário que o usuário seja lesionado, que use a droga, seja exposto a perigo, ou a compre. Sendo assim, parece que tal técnica legislativa, ainda que questionável, não se mostra incompatível com o Texto Maior.

Pode-se alegar que, nestes casos, não se trata de crime de perigo abstrato, mas crime de lesão do bem jurídico coletivo “saúde pública”. Nessa hipótese, a lesividade estaria presente na configuração delitiva. Mas, nesse caso, a discussão sobre a materialidade dos crimes de perigo abstrato perde todo o sentido, já que todo crime desta espécie, de alguma forma, viola um bem jurídico coletivo, nem que seja o bem espiritualíssimo “segurança pública” ou “paz social”. Logo, todos os crimes de perigo abstrato seriam crimes de lesão e, portanto, constitucionais, afirmação que acaba por legitimar qualquer tipo penal desta natureza, e por despir o raciocínio de qualquer potencial crítico sobre a atividade legislativa.

Por outro lado, há autores que pugnam pela aceitação irrestrita dos tipos penais de perigo abstrato, de forma a legitimar a reação penal nesses casos sem nenhuma consideração sobre o caso concreto, sobre as características ou o contexto no qual se perpetrou determinado comportamento. Se a conduta é aquela descrita no tipo penal, cabe a intervenção penal, sem maiores reflexões críticas.

Dificilmente se encontrará um autor que defenda tal posição sem reparos ou limites. O mais comum são textos doutrinários que aceitam a aplicação automática dos crimes de perigo abstrato, sem referência às características concretas da conduta apenas em alguns casos. Assim, Roxin reconhece que, nos delitos abstratos de trânsito, há imputação mesmo quando, na situação fática e concreta, estiver totalmente excluída a possibilidade de lesão ou de colocação em perigo de bens jurídicos efetivos4, ou Jakobs, que aponta que os crimes de perigo abstrato, em geral, são delitos de desobediência, e exigem a atuação do sujeito conforme a norma mesmo quando descartada a periculosidade concreta da conduta5.

Por fim, há aqueles que defendem a necessidade de averiguação, em cada caso concreto, de um conteúdo materialmente injusto nas condutas tipificadas como perigo abstrato6. Não basta verificar se o comportamento é o mesmo descrito na norma penal. É preciso ir além e verificar se a ação tem potencial, mesmo que abstrato, para afetar o bem jurídico protegido pelo direito penal. Tratar- se-ia da exigência, direcionada ao juiz, para que apure se o comportamento carrega consigo uma capacidade, ainda que abstrata ou potencial, de afetar bens jurídicos dignos de proteção penal. Com isso, ficaria afastada a legitimidade da punição diante de condutas que, apesar de tidas como delituosas pela legislação, são inócuas concretamente.

Nessas hipóteses, surge como elemento essencial para a caracterização da tipicidade, mesmo nos crimes de perigo abstrato, a perícia meio de prova capaz de demonstrar a potencialidade lesiva da ação. Por se tratar de perigo abstrato, não se exige, por óbvio, a demonstração pericial do resultado lesivo, nem mesmo de real colocação em perigo de bens concretos, mas apenas a idoneidade da conduta para, em potência, afetar bens jurídicos.

Dessa forma, não bastaria que o réu possuísse arma sem autorização, ou dirigisse com 0,6 decigrama de álcool por litro de sangue, ou guardasse entorpecentes consigo. Seria imprescindível a demonstração da capacidade de funcionamento eventual da arma, da real afetação dos reflexos do motorista eventualmente embriagado, ou a averiguação de que a quantidade de droga apreendida pode colocar em risco outras pessoas que não o próprio agente usuário.

O Supremo Tribunal Federal, bem como outros tribunais, não tem posição consolidada sobre o tema. Ora exige a demonstração da capacidade lesiva da arma, nos crimes de porte7, ora a dispensa8. No que concerne ao tráfico de entorpecentes, costuma-se resolver a questão com recurso ao princípio da insignificância, que nada mais é do que a constatação da falta de materialidade do crime de perigo abstrato previsto na Lei n. 11.343/2006.

Nesse sentido, paradigmática a decisão da 1ª Turma do STF no HC 90.779/PR. Trata de comerciantes flagrados tendo em depósito produtos fabricados para o consumo em desacordo com as normas regulamentares e sem registro no Ministério da Saúde, ou seja, supostamente incursos no inciso IX do art. 7º da Lei n. 8.137/80. Ressalte-se que o tipo penal, no caso, é de perigo abstrato, pois descreve a ilicitude de uma conduta sem exigir resultado ou perigo de nenhuma espécie.

Discutiu-se, no caso em tela, a necessidade de laudo pericial para demonstrar a periculosidade dos produtos e sua real capacidade de afetação de eventuais consumidores, ou seja, a necessidade de aferir ou não o conteúdo material do crime de perigo abstrato.

Consta que o tribunal de origem seguiu o posicionamento majoritário, afastando qualquer necessidade de averiguação da real capacidade de afetação de bens jurídicos, já que os agentes teriam se comportado de acordo com a descrição típica.

Dispôs que “Cuidando-se de crime de perigo abstrato, desnecessária se faz a constatação, via laudo pericial, da impropriedade do produto para consumo”.

No entanto, o STF, em decisão paradigmática, decidiu da seguinte forma

“Por unanimidade, os ministros concordaram que o crime em discussão nesse habeas é formal (crime cuja consumação se resume à realização da ação, não importando se causou resultados), mas que é preciso a demonstração de que o produto está realmente impróprio para consumo para que se caracterize o crime”9.

Verifica-se, nesse caso, que a decisão abre precedentes para aplicação de seus fundamentos a outras hipóteses. Por exemplo, nos casos que envolvem os crimes de funcionamento de rádios sem autorização da autoridade competente. Será necessária perícia para definir se a rádio impugnada tem potência para afetar o sistema de comunicações de transportes aéreos, terrestres ou marítimos, bem jurídico protegido pelo tipo penal. Também nos crimes de porte de armas, será imprescindível perícia para avaliar se o instrumento tem potencialidade para afetar a integridade física ou a vida de outras pessoas.

Esta parece ser a posição mais acertada. Mantém-se o crime de perigo abstrato como um tipo penal válido, mas exige-se, para sua caracterização, a constatação de ao menos uma potencialidade lesiva na conduta, mesmo que abstrata.

Esta periculosidade, inerente ao comportamento, será o substrato sobre o qual se estrutura a legitimidade da punição.

Apenas com este sentido semântico o crime de perigo abstrato coaduna-se com o princípio da lesividade, e com um direito penal que tem por finalidade exclusiva a proteção de bens jurídicos. Apenas com tal interpretação será possível preencher o crime formal de conteúdo, de materialidade, sem, com isso, afrontar a vontade do legislador. Não se exige lesão, não se exige perigo concreto, mas requer-se, para a tipicidade da conduta, ao menos uma demonstração de sua capacidade potencial de causar dano, de sua periculosidade abstrata, afastando do direito penal condutas inócuas, irrelevantes, insignificantes, mesmo que sua realização esteja descrita no tipo penal como passível de incriminação.

 

  1. Professor. Doutor em Direito Penal pela USP e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça. Foi Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2005-2007).
  2. Ressalte-se que o X Congresso Internacional de Direito Penal (Roma, 1969) deu destaque aos crimes de perigo abstrato, revelando a importância do tema no século
  3. GOMES, Luis Flávio. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE NO DIREITO PENAL. São Paulo Revista dos Tribunais, 2002, 103; JESUS, Damásio E. CRIMES DE TRÂNSITO anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997), 3. ed. São Paulo Saraiva, 1997, p. 5; QUEIROZ, Paulo de Souza. DO CARÁTER SUBSIDIÁRIO DO DIREITO PENAL lineamentos para um direito penal mínimo. 2. ed. rev. e atual. Belo Horizonte Del Rey, 2002, p. 88.
  4. ROXIN, Claus. Derecho penal parte 2. ed. Madrid Civitas, 1997, p. 408-b.
  5. JAKOBS, DERECHO PENAL parte general. 2. ed. Madrid Marcial Pons, 1997, p. 212. No mesmo sentido, na Alemanha, CRAMER, BREHM e WOLTER, e na Espanha, MONTANES, e, no Brasil, GRECO, citados em BOTTINI, Pierpaolo Cruz. CRIMES DE perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007, p. 154.
  6. MEYER, SILVA SÁNCHEZ, MENDOZA BUERGO, TÓRIO LOPEZ, dentre outros, citados em BOTTINI, Pierpaolo Op. cit., 162 e s.
  7. RHC 057-8/SP, julgado antes da alteração da Lei de Armas.
  8. REsp 910.740/SC.
  9. Notícias STF de 17-6-2008.
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