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O Judiciário e seus efeitos na economia

01/02/2006

PIERPAOLO BOTTINI, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E SECRETÁRIO DA REFORMA DO JUDICIÁRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

O papel do Judiciário no desenvolvimento da economia nacional e no custo Brasil é de extrema relevância, mas pouco se tem estudado a respeito. As esparsas reflexões sobre o tema, no entanto, apontam para uma efetiva
relação entre a morosidade na prestação jurisdicional e alguns índices econômicos negativos, como as altas taxas
de juros e a restrição de crédito.

A evidente dificuldade em solucionar litígios através do Poder Judiciário e o custo que esta atividade impõe aos
litigantes desestimula o recurso aos meios formais de resolução de conflitos e deslegitima a própria Justiça. A constatação de que uma ação cível demora cerca de oito anos para ser finalizada, e parte significativa do objeto das demandas se perde nos custos com o longo tempo de espera, é responsável por afugentar investimentos e gerar um clima de desconfiança pouco propício à realização de transações financeiras e comerciais.

A cobrança de dívidas na Justiça é um processo longo e caro, e quem já passou pela experiência sabe que a atividade é semelhante a uma corrida de obstáculos, com várias possibilidades de protelações, interrupções, suspensões e procrastinações que retardam o resultado da ação. Estudos demonstram que a cobrança de um débito superior a R$ 50.000,00 na Justiça custa cerca de 70% deste valor e que a recuperação de um crédito de R$ 500,00 não compensa porque os gastos superam o próprio valor da ação. O tempo e o custo para a cobrança de dívidas pelo Poder Judiciário inibem iniciativas ousadas no campo da disponibilização de crédito e incentiva o não pagamento, a negligência no cumprimento de acordos e de contratos, desestabilizando o sistema comercial e financeiro brasileiro.

O custo da Justiça para o crédito fica evidente se comparadas as diversas formas de financiamento e as garantias
correspondentes. O crédito fiduciário com garantia real ou o crédito consignado apresentam juros muito menores do que um empréstimo sem lastro em bens, como é o caso do cheque especial. Claro que o custo do valor emprestado, neste último caso, será maior porque não existem bens que garantam a eventual execução por não pagamento. A discrepância dos juros cobrados é exorbitante porque, dentre outras coisas, nesta modalidade o credor terá que recorrer à Justiça e passar por longas etapas de processo de conhecimento e de processo de execução, que inclui a penhora de bens, a discussão do valor destes bens, a remessa a leilão para, finalmente, satisfazer sua pretensão. Este
processo pode levar anos e o risco de enfrentar o périplo de um litígio na Justiça é incorporado nas análises de investimento e é refletido, obviamente, no preço do crédito.

Diante dessa situação, algumas propostas são discutidas para transformar o quadro atual, especialmente
no plano legislativo. O Ministério da Justiça, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, em conjunto com o
Supremo Tribunal Federal, com o Instituto Brasileiro de Direito Processual e com entidades de magistrados e advogados, elaborou 26 projetos de lei que visam justamente aprimorar o sistema processual nacional na área civil, penal e trabalhista. O conjunto de projetos, denominado Pacto por um Judiciário mais Rápido e Republicano, foi apresentado ao Congresso Nacional em dezembro de 2004, por meio de um documento firmado pelo Presidente
da República, pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, pelo Presidente da Câmara e do Senado Federal. Esses projetos têm o escopo de transformar a prestação jurisdicional em um instrumento célere e eficiente para a resolução de conflitos, para a satisfação de pretensões fundadas e para a pacificação social.

Em 2005, duas dessas propostas foram transformadas em lei. A primeira (Lei 11.187/05) altera o regime dos agravos, recurso que uma das partes do processo interpõe para questionar as chamadas decisões interlocutórias,
que são as decisões tomadas pelo juiz no meio do processo, como permitir ou negar a oitiva de uma testemunha,
conceder ou negar uma liminar, dentre outras. Na sistemática anterior, os agravos, como regra, eram apresentados
e a questão era levada imediatamente ao tribunal, que deveria se manifestar sobre todos os incidentes que surgiam no desenrolar da ação. A proposta apresentada altera este regime. Agora, a parte que não concordar com a decisão interlocutória deve manifestar suas razões, que ficarão retidas no processo e só serão analisadas pelo tribunal ao final da ação, no momento da apelação. Ou seja, todos os questionamentos serão avaliados de uma só vez pelos órgãos judiciais superiores, com exceção dos casos de lesão irreparável, em que fica aberta a possibilidade de o tribunal se manifestar de plano sobre o agravo.

A segunda lei aprovada (Lei 11.232/05) modifica o sistema de execução civil, e altera, especificamente, a cobrança de dívidas na Justiça. Até então, a recuperação de um crédito via Poder Judiciário exigia dois processos: o de conhecimento e o de execução. No primeiro, o juiz citava pessoalmente o réu para apresentar a defesa, ouvia a argumentação das partes, avaliava as provas, e, finalmente, decidia pela existência ou não do débito. Essa decisão final, a sentença de conhecimento, não exigia do devedor o pagamento, mas apenas reconhecia a existência da dívida. O efetivo pagamento deveria ser feito por meio de outro processo, conhecido como processo de execução. Nele, o devedor deveria ser novamente citado pessoalmente e poderia pagar ou apresentar bens à penhora, o que contribuía para a morosidade processual por dois motivos simples. O primeiro, a dificuldade de encontrar o réu para a citação pessoal, pois, neste momento, ele já se reconhece como devedor, e tentará ao máximo postergar o início da ação executiva. O segundo, a possibilidade de apresentação de bens à penhora abre diversas possibilidades de discussões infindáveis sobre o valor dos bens, sua capacidade de satisfazer o débito, e assim por diante. Estas afirmações são corroboradas por dados que apontam que a metade dos processos de execução pára na fase de citação do réu e, dos que têm sucesso nesta etapa, outra metade é paralisada no momento da penhora de bens.

A superação deste quadro exigia uma alteração legislativa, e a lei em de execução. Em primeiro lugar, a Lei 11.232/05 unifica os processos de conhecimento e de execução, que passam a ser um só. Isso implica, de imediato a dispensa de citação pessoal do réu para o início do segundo procedimento, já que ele já é parte do litígio, já se defendeu e já participou dos atos processuais anteriores. Em segundo lugar, a norma em análise veda a possibilidade de o réu entregar bens à penhora para a satisfação da dívida. A partir de sua vigência, o devedor terá apenas uma opção: a de pagar. Caso não quite a dívida, será aplicada uma multa de 10% do valor da condenação, que será acrescida ao valor
devido, com o escopo de evitar manobras protelatórias.

A aprovação dessas propostas e das demais em tramitação, que tratam dos efeitos dos recursos, da uniformização
da jurisprudência e da utilização de meios eletrônicos para a modernização da gestão judicial e a aplicação de seus preceitos, é fundamental para a consolidação de um ambiente microeconômico propício para o desenvolvimento
do País. Diante disso, o aprimoramento do funcionamento da Justiça é assunto que interessa à economia, ao mercado de crédito e a todos os operadores negociais brasileiros. A reforma do Judiciário deixa de ser um tema restrito ao mundo jurídico e passa a constar na pauta de discussões políticas e sociais por sua importância e por seu impacto. Além disso, as propostas de solução apresentadas devem ser discutidas e refletidas por todos os setores envolvidos, que devem opinar nos rumos e na direção da modernização da Justiça.

Apenas com a participação de toda a sociedade será possível superar as resistências corporativas e construir um modelo de prestação jurisdicional que reafirme a Justiça como mecanismo legítimo e eficaz de solução de litígios, imprescindível para a consolidação de um Estado de Direito.

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