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O estranho e fascinante crime omissivo impróprio — Parte 3

1) Recapitulação

Como exposto nos dois artigos anteriores (clique aqui e aqui), o crime omissivo impróprio ocorre quando o omitente tinha o dever e o poder de evitar um resultado e não o faz. Esse dever deriva da lei, da assunção voluntária da tarefa de proteção ou da criação de um risco não permitido. A essa última modalidade dá-se o nome de ingerência.

Aquele que cria um risco (dirige um veículo, fabrica um produto) tem: 1) o dever de controlá-lo, respeitando as normas de cuidado e evitando ultrapassar os limites do risco permitido (controlar velocidade do carro, respeitar as regras sanitárias de fabricação do produto); ou 2) o dever de salvamento, revogando os cursos causais desprendidos do risco original (resgatar a vítima do atropelamento, fazer recall de produtos defeituosos).

Nesse último caso — dever de salvamento — somente haverá imputação pela omissão imprópria se o risco criado originalmente for não permitido. Aquele que causa um resultado por meio de um risco permitido (exemplo: motorista que dirige na velocidade adequada e atropela alguém) não responde criminalmente pela lesão e nem tem um dever de salvamento diferente de qualquer outra pessoa. Sua negligência em ajudar a vítima ferida, nesse caso, seria mera omissão de socorro, mas não responderá por homicídio em caso de morte decorrente da falta de auxílio. O motorista não é garante do resultado porque não criou um risco não permitido de sua ocorrência.

Por outro lado, se o risco inicial era não permitido, a omissão de salvamento permite a imputação do resultado a título de omissão imprópria. O omitente responderá por homicídio por omissão caso dirija em alta velocidade ou embriagado, atropele uma pessoa e não a resgate tendo possibilidade de fazê-lo.

É comum ouvir que nesses casos não faz sentido discutir a omissão porque o ato de atropelar alguém é comissivo. Há uma ação de dirigir um carro, sendo irrelevante a ação de não salvamento posterior.

Ocorre que há casos em que a omissão é o fenômeno essencial para determinar a natureza jurídica do ato. Imaginemos alguém que dirige em alta velocidade atropela um pedestre sem dolo, mas ao perceber nele seu inimigo deixa de salvá-lo com dolo, com intenção de resultado morte. Nesse caso, a ação inicial era imprudente, sendo que o dolo que surge apenas no momento da omissão. É no curso da omissão (que integra o curso causal e antecede a consumação) que o delito se transforma de culposo em doloso.

Se o motorista viola um dever de cuidado e causa a morte de um pedestre, responderá por homicídio culposo. Mas, caso entre o atropelamento e a morte esse mesmo motorista teve a chance de salvar a vítima e não o fez, com dolo de que ocorresse a morte, haverá um dever de salvamento não cumprido de forma intencional. O homicídio culposo por ação transforma-se em doloso por omissão justamente pela alteração do estado psíquico do agente nesse segundo momento.

2) Da compatibilidade legislativa
O último ponto a ser enfrentado é a compatibilidade da interpretação aqui defendida com a legislação brasileira, em especial com o artigo 121 §4º [1], do CP e do artigo 302, §1º, do Código de Trânsito Brasileiro [2].

À primeira vista, parece que tais dispositivos apontam que a omissão de salvar alguém após uma conduta culposa apenas aumenta a pena do crime culposo, mas não o transforma em doloso. Se tais dispositivos indicam que aquele que cria um risco de forma imprudente de homicídio (CP, artigo 121, §4º) ou de homicídio imprudente na direção de veículo automotor (CTB, artigo 302, §1º, III) responde pelo crime culposo agravado no caso de omissão de socorro posterior, não parece — a uma primeira vista — haver espaço para concluir que a omissão de salvamento torna o resultado imputável a título doloso, como ora se pretende.

No entanto, outra interpretação é possível.

Os dispositivos mencionados agravam a pena do crime culposo quando existe uma omissão de socorro com dolo apenas de omitir o socorro, e não de causar a morte [3]. Aquele que anda em alta velocidade, atinge um pedestre e foge do local com a intenção de omitir o socorro, com a segurança de que o salvamento será realizado por outras pessoas (por exemplo, no caso de acidente em via movimentada, onde existem outros motoristas e pedestres aptos a salvar a vítima ou a chamar socorro), ou seja, com culpa consciente, responderá pelo resultado morte na forma culposa, agravada pela omissão de socorro. Isso porque, embora exista dolo de omissão de socorro, não há dolo, nem mesmo eventual, de contribuir com a morte, uma vez que existe a certeza — ainda que não lastreada na realidade — de que a vítima será salva.

Por outro lado, se esse mesmo motorista deixar de prestar socorro sabendo que sua omissão será condição negativa do resultado morte haverá algo mais do que o dolo de omissão de socorro: haverá intenção do resultado morte. É o caso do motorista que deixa a vítima sem socorro, ciente de que está em uma estrada solitária e não existe a possibilidade de salvação. Existe um dolo de resultado, um dolo de afetação da vida, uma vontade concretizada em uma conduta negativa quando possível impedir o resultado [4]. Nesse caso, imputável o resultado na forma do homicídio doloso e não por homicídio culposo agravado pela omissão de socorro, valendo repetir que apenas quando houver uma criação prévia de um risco não permitido.

3) Conclusão de tudo
ingerência é a imputação do resultado típico à omissão quando o omitente cria um risco anterior (CP, artigo 13, §2º, “c”). Nesse contexto, existe para aquele que criou o risco um dever de controle e/ou um dever de salvamento.

dever de controle impõe ao agente a manutenção do risco inicial nos patamares permitidos definidos pelas normas institucionais, pelas regras técnicas profissionais e pelo dever geral de cautela. A omissão de manter o risco dentro destes parâmetros ou de restituí-lo a estes níveis implica a responsabilidade pelo resultado a título de omissão imprópria.

O segundo é o dever de salvamento, cujo descumprimento permite que o resultado seja imputado a título de omissão desde que o risco originalmente criado seja não permitido. A criação de riscos permitidos não enseja a responsabilidade por omissão imprópria no contexto de salvamento [5].

Vale destacar, por fim, que o reconhecimento do descumprimento dos deveres de controle e de salvamento apenas indicam objetivamente a possibilidade de imputar o resultado ao omitente. A imputação integral ainda exigirá a constatação de que a omissão seja condição negativa do resultado e que este esteja dentro do âmbito de abrangência da norma de cuidado violada, elementos não abordados nos presentes artigos mas que devem ser levados em consideração na construção da tipicidade da ingerência [6].

[1] “§4o. No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos”.

[2] Lei 9.503/97, artigo 302, § 1º “No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente”.

[3] Vale notar que no crime de omissão de Socorro, o elemento subjetivo se caracteriza apenas pela “consciência e vontade de omitir socorro” BARTOLI e PANZERI, Dos crimes, p.707.

[4] A admissão do dolo eventual nessa hipótese é controversa. Há quem afaste por completo tal possibilidade, como TAVARES, Teoria, p. 394, enquanto outros a entendem possível, como MAURACH, Derecho Penal, p. 268.

[5] Nesse sentido, DOPICO GÓMEZ-ALLER, Omisión, p. 820.

[6] Para um panorama completo, ver BOTTINI, Crimes de omissão imprópria, p.213 e ss.

 

Revista Consultor Jurídico, 21 de dezembro de 2020

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