Skip to main content

LEI “ANTICRIME”

“Respostas rápidas e rasas para demandas populares geram consequências graves”

Por Tiago Angelo

 

Na véspera do último Natal, quando parecia não haver mais nada de juridicamente relevante para acontecer em 2019, a sanção de uma lei pelo presidente Jair Bolsonaro teve o potencial de tornar letra morta trechos importantes de obras sobre Direito Penal e Processual Penal.

Isso porque, com a sanção da chamada lei “anticrime” (Lei 13.964/19), uma série de dispositivos desses dois ramos do Direito foram alterados, além de novas previsões terem sido inseridas.

Entre outras mudanças, o diploma aumentou o tempo máximo de prisão para 40 anos — antes eram 30 —, alterou significativamente as colaborações premiadas, reforçou os acordos de não persecução penal e previu a prisão obrigatória a réu condenado pelo Tribunal do Júri a pena igual ou maior que 15 anos. Criou também a figura do juiz das garantias.

Em entrevista concedida à ConJur, por telefone, Pierpaolo Cruz Bottini, criminalista e livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, afirmou que embora a lei tenha pontos positivos, foram inseridas propostas populistas que podem levar ao aumento da população carcerária.

O advogado também ressaltou que a pandemia da Covid-19 tornou evidente que o Brasil mantém presas pessoas que já deveriam ter sido soltas.

“Me surpreende que precisemos de uma pandemia para entender que prendemos mais do que é necessário. Essas pessoas que estão sendo soltas por uma orientação do CNJ, pela própria legislação, pelas regras que já existiam, não deveriam estar presas. A pandemia é uma justificativa para soltar quem já deveria estar solto”, afirma.

Confira a entrevista na íntegra:

ConJur  — Em artigo publicado na ConJur depois que a lei “anticrime” entrou em vigor, o senhor parafraseou o ex-primeiro-ministro britânico James Callaghan, afirmando que fazer Constituição é um esporte perigoso, porque cada parlamentar tem a tentação de escrever no texto a sua utopia particular. Quais utopias presentes na lei “anticrime” tinha em mente?
Pierpaolo Cruz Bottini  —
 Nenhuma em particular. A lei “anticrime” contém muitos avanços importantes. A questão é que temos um Congresso heterogêneo, pessoas de todos os espectros ideológicos. É natural que em discussões tão sensíveis e simbólicas quanto as que envolvem o Direito Penal, os parlamentares, que são agentes políticos por natureza, busquem saídas que satisfaçam o seu eleitorado. Por isso, acabaram presentes propostas populistas que geram problemas muito sérios, como o aumento da população carcerária e a banalização do Direito Penal. Muitas vezes, essas respostas rápidas e rasas para demandas populares, como por exemplo o aumento da pena, geram consequências graves. Nesse sentido, mexer no Direito Penal, na legislação penal, é um esporte perigoso. Estamos falando de um tema ligado à liberdade das pessoas.

ConJur  — Sua resposta menciona o aumento de penas. São poucos os casos de pessoas condenadas a 30 anos de prisão. Acredita que alguém cumprirá os 40 previstos na nova lei?
Pierpaolo Cruz Bottini  —
 São poucas, mas existem pessoas condenadas a mais de 30 anos de prisão. Aquelas acusadas de múltiplos homicídios, por exemplo. Há casos muito graves em que elas são condenadas a até mais de 40 anos de prisão e você pode ter episódios em que a pena ultrapassa os 40 anos em regime fechado, o que eu acho absolutamente contraproducente. Mas pode acontecer.

ConJur — A determinação de reavaliar prisões preventivas com mais de 90 dias, presente na lei “anticrime”, foi pouco aplicada. A previsão passou a ser mais utilizada após o Conselho Nacional de Justiça recomendar que tribunais e magistrados revisem as prisões preventivas como forma de prevenir o avanço do coronavírus nas penitenciárias. Muita gente está sendo solta desde a recomendação, embora parte das orientações sejam parecidas com determinações já vigentes. O surto do coronavírus e as solturas com base na orientação do CNJ serviram para mostrar que o Brasil prende muito e que existem pessoas que deveriam estar soltas independentemente do cenário de pandemia?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 Sim. Me surpreende que precisemos de uma pandemia para entender que prendemos mais do que é necessário. Essas pessoas que estão sendo soltas por uma orientação do CNJ, pela própria legislação, pelas regras que já existiam, não deveriam estar presas. A pandemia é uma justificativa para soltar quem já deveria estar solto. Não vejo aqui um movimento pela impunidade, vejo razoabilidade, legalidade e aplicação eficaz da pena. A sociedade parece ter uma atração sensual pelo Direito Penal. Acredita que prender as pessoas preventivamente vai resolver o problema da criminalidade, quando na verdade as detenções servem para ampliar o crime organizado, porque cada pessoa que entra na prisão tem que pagar mensalidade para o crime organizado ou tem que trabalhar para ele. O PCC agradece às propostas punitivistas de encarceramento, porque elas fornecem dinheiro e mão de obra para a organização. Soltar as pessoas que não deveriam estar presas não aumenta a criminalidade, mas desarticula o crime organizado. Surpreende que seja necessário um surto dessa magnitude para que possamos ver o que já deveríamos ter visto há muito tempo.

ConJur  — Entre as medidas previstas na lei “anticrime”, há uma que foi bastante comemorada e, ao mesmo tempo, combatida: a criação do juiz das garantias. Consegue vislumbrar a implementação dessa figura em um futuro próximo?
Pierpaolo Cruz Bottini  —
  Está bem claro que a implementação do juiz das garantias não exige do Judiciário uma estrutura maior. Basta compartilhar e repartir as competências e atribuições entre os magistrados já existentes de maneira eficaz. Com os processos digitais, ficou muito mais fácil a implementação. Não vejo problema estrutural. Acredito que mais do que resistência, houve uma certa perplexidade institucional de como organizar essa questão. Alguns lugares já estavam se organizando. A Justiça Federal da 3ª Região, por exemplo, já estava planejando isso. Em outros lugares, talvez por falta de planejamento ou algo do gênero, a iniciativa tenha surpreendido e causado perplexidade. Vejo a decisão do Supremo de adiar o juiz das garantias como uma tentativa de dar um tempo para que toda a Justiça se organize. É uma demanda prática, uma ideia que foi aprovada pelo Legislativo. Em um curto período, creio que o Supremo vai remover todas as barreiras para a implementação.

ConJur — A introdução da figura do juiz das garantias é vista como uma forma de assegurar direitos aos acusados. Mas também é ele o responsável pelo recebimento da denúncia. Atribuir essa decisão ao juiz das garantias reduz a sua eficácia?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 É importante ressaltar que o juiz das garantias não protege o acusado, mas o cumprimento da lei. Quem decide sobre o recebimento da denúncia tem que ter contato com a prova que foi produzida no momento da investigação. Não há como decidir sobre o recebimento da denúncia sem ter contato com essa prova. O importante é que o juiz das garantias sai de cena após a investigação e entra um magistrado que não teve contato com essa fase e que não formou uma convicção prévia.

ConJur — Entre outras alterações, a lei “anticrime” fixou limites em matéria de leniência e colaboração. Algo de fato mudou ou apenas foi consolidado o entendimento que o STF já tinha sobre o tema?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 Mudou muita coisa. Na colaboração, principalmente, foram detalhadas regras e procedimentos relevantes. Regras sobre sigilo, motivação e sobre os passos da negociação. Algumas delas já estavam previstas em orientações da PGR e das câmaras do Ministério Público, mas não tinham caráter de lei. O recebimento da denúncia não pode mais acontecer só com base na palavra do colaborador, o que eu acho importante ressaltar. Com isso, o colaborador passa a ser um mero informante, que indica onde a prova pode ser encontrada. Seu depoimento, assim, é um mero meio de produção de prova. Não é suficiente, sozinho, para justificar a intervenção em direitos de terceiros. Há também inovações que regulamentam e organizam melhor a colaboração e mudanças na hora de homologar a colaboração premiada. A nova lei alterou estruturalmente o procedimento.

ConJur — Essas mudanças contemplam a segurança jurídica necessária ou ainda estamos em um ponto inicial para isso?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 Demos grandes passos rumo à segurança jurídica. A lei consolida algumas práticas que já vinham sendo adotadas. Mas quando isso é consolidado, confere maior segurança para o colaborador. Por outro lado, a lei retira benefícios do colaborador, alterando as regras de progressão de regime. Isso talvez desencoraje a colaboração em alguns casos. Do ponto de vista do procedimento, no entanto, há maior segurança. A lei deu mais solidez tanto para o colaborador quanto para a autoridade pública que firma o acordo.

ConJur — A delação, por si só, também não pode mais desencadear medidas cautelares. Se a lei “anticrime” estivesse em vigor nos anos anteriores, grandes operações espetacularizadas, como as promovidas pela “lava jato”, poderiam não ter ocorrido?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 Acredito que sim. Muito da “lava jato” se deu com medidas apoiadas apenas na palavra do colaborador, o que o tornou uma figura com mais protagonismo do que efetivamente deveria ter. A colaboração é um instrumento importante na investigação, sempre a defendi e acho que ela deve ser utilizada. Mas desde que venha acompanhada de provas. Não se pode prender alguém só com base na palavra de outra pessoa. Operações de busca e apreensão não podem ser feitas assim. Isso dá relevância para a declaração de alguém que não é uma testemunha isenta. O colaborador é alguém que confessadamente participou de prática criminosa; portanto, por mais que ele esteja colaborando com a Justiça, a palavra dele só tem valor se vier acompanhada de documentos, de provas, de outras testemunhas. Ou seja, eu só posso restringir a liberdade de uma pessoa — seja patrimonial, seja de locomoção — com base na palavra do colaborador se ela vier acompanhada de outros elementos. A tônica da “lava jato”, e boa parte das medidas tomadas por ela, foram calcadas única e exclusivamente na palavra do colaborador. Esse protagonismo jurídico fundamentou uma série de medidas. Com a nova lei, esse protagonismo jurídico deixa de existir.

ConJur — Um ponto da alteração legislativa bastante criticado por alguns juristas é a prisão obrigatória quando o réu é condenado no Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos. Esse é um modo de manter a execução antecipada da pena, a despeito do que foi decidido pelo STF em 2019, quando a corte derrubou a prisão antes do trânsito em julgado?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 É a mesma situação. A única diferença é que os réus não têm a mesma relevância política e econômica das pessoas julgadas por crimes, por exemplo, de corrupção. Mas a inconstitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado é a mesma. É muito grave o que está acontecendo. No fundo, está sendo criado um corte social. Para crimes de corrupção, eu preciso esperar o caso chegar ao Supremo Tribunal Federal, mas para condenações do Júri, não? Não tem motivo para isso. É absolutamente inconstitucional. A única diferença é a qualidade política e econômica daqueles que são afetados. Quando se discutia a execução provisória em todos os crimes, houve ampla mobilização da sociedade civil, principalmente da parte jurídica — advogados, defensores, juristas e professores —, apontando a inconstitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado. Isso caiu, como todo mundo sabe. Mas agora voltou na lei “anticrime” para crimes do Júri. Eu não vejo a mesma movimentação contra essa mudança. Acho importante que a Defensoria Pública, a academia e a advocacia façam o mesmo movimento. Ou seja, apontem as mesmas inconstitucionalidades, porque elas são gritantes.

ConJur — A lei também reforça o acordo de não persecução penal. Esse instituto gera aumento de erros judiciais, já que, por medo de penas mais altas, pode forçar inocentes a confessarem crimes que eles não praticaram, como é o caso nos Estados Unidos?
Pierpaolo Cruz Bottini —
 A gente não deve confundir a não persecução com o [instituto da] plea bargain norte-americano. O plea bargain vale para quase todos os crimes e tem por consequência penas restritivas de liberdade. O que acontece é que os Estados Unidos são um país em que mais de 95% dos casos são resolvidos por meio do plea bargain. Aí você acaba incentivando pessoas, mesmo aquelas que são inocentes, a aceitarem o plea bargain, porque, caso elas decidam prosseguir com o processo judicial, podem perder e ter penas maiores do que as que seriam justas. Cria-se um sistema bastante distorcido, que é alvo de críticas severas inclusive dentro dos Estados Unidos. No Brasil, foi criado um sistema de não persecução em menor escala. É tratado um número de crimes muito pequeno, com pena de até quatro anos, cometidos sem violência ou grave ameaça. E no acordo de não persecução não se trabalha com a pena de prisão em nenhuma hipótese. O efeito da aplicação dos acordos pode reduzir o encarceramento, a prisão em massa, tendo um efeito bastante benéfico. Pode ter um resultado contrário ao que acontece nos Estados Unidos: a redução de processos judiciais e do encarceramento.

Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2020
back