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Judiciário e economia: uma discussão relevante

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI, SECRETÁRIO DA REFORMA DO JUDICIÁRIO, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

01/11/2006

Muito se fala e pouco se estuda sobre a relação entre o funcionamento do sistema judicial brasileiro e o desenvolvimento da economia nacional. É quase lugar-comum ouvir que o desempenho do Poder Judiciário e a qualidade de suas decisões têm grande impacto no grau de investimento, na taxa de juros e no mercado de crédito, mas existem poucos textos ou artigos que se propõem a analisar, com base em dados e informações mais precisas, a existência dessa relação e sua extensão real. Nesse contexto, é natural que se proliferem idéias mistificadas sobre o tema que guardam muito mais impressões pontuais e preconceitos do que conhecimento de fato.

A discussão sobre os reflexos do comportamento do sistema judicial para o crescimento da nação é relevante e imprescindível, no entanto, deve ser feita com bases mais sólidas e desprovida dos vícios corporativistas ou de
idéias preconcebidas sobre o assunto. O diálogo entre economistas, administradores e juristas deve ser pautado
por elementos mais concretos, que explicitem os verdadeiros problemas que a questão apresenta e permitam seu enfrentamento de maneira mais efetiva e estratégica.

Certamente, o funcionamento da Justiça afeta, de alguma forma, determinados setores da atividade econômica,
principalmente os investimentos e o mercado de crédito. Isso fica claro quando se verifica, por exemplo, o comportamento dos juros sobre empréstimos pessoais antes e depois do advento do crédito consignado. Como notou
Goldberg, secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça, em janeiro de 2004, o valor cobrado sobre os empréstimos pessoais era de cerca de 7% ao mês. Com o advento do crédito consignado, esses juros caíram para cerca de 2% ao mês e o estoque de crédito cresceu 37%. A pergunta que surge é: qual a razão para tal queda no preço do crédito e para tamanho aumento do estoque se os tomadores e os financiadores são rigorosamente os mesmos? A resposta é clara: no crédito consignado, não há espaço para a inadimplência, logo, não há o risco de ter que se valer do Poder Judiciário para reaver os valores disponibilizados.

Nesse exemplo, fica evidente que existe alguma relação entre o Judiciário e a economia, ao menos no que se refere ao mercado de crédito. Se o afastamento do risco de utilizar a Justiça foi capaz de reduzir os juros sem nenhum ato intervencionista estatal, mas pela mera lógica do mercado, significa que a necessidade de resolver litígios por meio dos mecanismos formais acaba por impor um ônus aos atores que operam essas atividades.

No entanto, qualquer conclusão mais apressada pode comprometer a análise, que não se faz simples. O que o exemplo do crédito consignado demonstra é que existe, sim, um impacto econômico que decorre da atividade do Poder Judiciário, mas não evidencia qual a extensão desse impacto ou suas causas. O fato de haver um decréscimo de 5% de juros não pode levar à afirmação de que a solução dos problemas da Justiça é a única e grande chave para o desenvolvimento. Por outro lado, tal fenômeno não diz nada a respeito de qual aspecto do funcionamento da Justiça afeta o preço do crédito: seria a qualidade das decisões dos juízes ou a demora em tomá-las?

A segunda questão me parece crucial para o debate, ou seja, compreender qual elemento específico da prestação jurisdicional afeta o desenvolvimento econômico e, em especial, o mercado creditício.

A qualidade das decisões judiciais é freqüentemente apontada como um elemento importante para o funcionamento
da economia. Esse discurso passa por uma crítica da falta de consequencialismo das decisões judiciais, ou seja, que os juízes não levam em consideração, ao tomar uma decisão e proferir uma sentença, os impactos que esta tem para o funcionamento de setores da economia.

No exercício de suas atividades, o juiz deve aplicar a lei ao caso concreto, interpretando seu sentido literal, teleológico, histórico e político. Enfim, o magistrado, ao trazer o texto legal para resolver determinada situação,
vai moldar seu sentido diante da realidade objetiva, de acordo com suas convicções e princípios. Nesse processo
de aplicação do direito, é impossível retirar uma parcela de subjetivismo, pois é um processo humano e, como
toda atividade humana, será pautado pela formação política e social do agente. E isso não representa problema
algum de legitimidade, na medida em que essa atividade interpretativa é restrita e limitada pelo texto legal, ou
seja, se dá dentro de parâmetros objetivos e estáveis. Qualquer extrapolação poderá ser revista mediante recursos
e outros instrumentos previstos em nossa legislação processual.

Nesse processo decisório, é fundamental que aspectos do caso concreto sejam analisados, mas que também faça parte uma avaliação das consequências da decisão que extrapolarão o estreito rol das partes envolvidas e afetem todo um setor econômico ou social. Casos como o do leasing cambial 1, que foram amplamente discutidos nos tribunais, são paradigmáticos, pois as decisões afetam as partes no processo, mas também todo um mercado que estará pautado e orientado por esses entendimentos judiciais. Isso não significa que devam prevalecer os interesses do mercado sobre outros elementos e princípios, mas a responsabilidade judicial exige que todas as consequências de sua decisão sejam levadas em consideração no processo de interpretação das normas, inclusive seus impactos econômicos. Mais uma vez friso que isso não significa que a decisão judicial deva ser pautada exclusivamente pelas suas consequências para o sistema econômico, mas apenas que essa consideração deve fazer parte do processo interpretativo da lei, ou seja, deve ser levada em conta pelo juiz dentre os inúmeros outros critérios que balisarão seu entendimento final.

No entanto, e por mais que esse método interpretativo seja importante para a formação de uma responsabilidade
econômica e social da magistratura, não parece que os critérios ou elementos que integram o processo decisório do juiz sejam fundamentais para o desenvolvimento econômico. É evidente que algumas decisões têm impacto maior sobre o funcionamento de determinado setor específico (como é o caso do leasing cambial e o mercado de crédito), mas, em geral, pode-se esperar a segurança jurídica necessária na medida em que a grande parte das decisões judiciais está pautada pela lei e na jurisprudência dominante fixada pelos tribunais.

O problema, portanto, está em outro aspecto da atividade judicial. Não está na forma como os magistrados decidem, mas no tempo exigido para a consolidação dessa decisão como parâmetro estável.

Como já explicitado, a atividade de decisão do juiz tem como marco e como limite o texto da lei, mas a aplicação dessa lei ao caso concreto permite inúmeras interpretações, todas elas legítimas e razoáveis. Se o problema não está na qualidade dessas interpretações, ele está na morosidade com que elas se tornam definitivas, efetivas e orientadoras.

Para ilustrar a questão, tomemos o exemplo da discussão sobre a assinatura básica cobrada pelas empresas de
telefonia. Parte do Judiciário entende que a cobrança dessa assinatura é legal, outra entende que é ilegal. Ambos os
entendimentos são legítimos, porque a lei não trata da questão de maneira clara, logo, essas decisões não pecam
pela falta de qualidade (talvez a legislação peque por falta de qualidade nesse caso). O grande problema é que uma
discussão como essa leva anos para chegar aos tribunais superiores e ser resolvida de maneira definitiva, ou seja, perpetua-se uma situação de desigualdade concreta e de consequente insegurança, não porque as sentenças
judiciais são ruins, mas porque o processo judicial demanda muito tempo. Durante esse tempo, para parte dos
consumidores vai valer a assinatura básica, e para a outra parte não. Isso não interessa nem aos consumidores nem às empresas, para quem falta uma regra clara que permita estabelecer sua estratégia e seu planejamento futuro.

Dessa forma, o que falta é agilidade para que as questões sejam resolvidas em tempo razoável pelas instâncias
judiciais definitivas e para que essas decisões tenham vigência e validade efetiva, criando regras e parâmetros que
permitam o desenvolvimento seguro da atividade econômica. Importante frisar que não importa se a decisão final é favorável ou desfavorável aos agentes econômicos ou aos interesses do mercado, o que importa é a estabilidade do entendimento, que vai orientar a conduta dos operadores daquela atividade e construir um clima de segurança para a viabilidade do desenvolvimento econômico.

Dessa forma, a discussão sobre Judiciário e economia deve estar mais atenta aos impactos oriundos da morosidade do que aos efeitos negativos da qualidade das decisões (ressaltando mais uma vez que isso não significa que as decisões não devam ser discutidas do ponto de vista econômico ou consequencialista). A construção da credibilidade da Justiça, necessária ao desenvolvimento das atividades econômicas, comerciais e financeiras, exige medidas voltadas para a agilidade no cumprimento de suas funções e para fortalecer a efetividade daquelas decisões já pacificadas e consolidadas, para que sirvam como parâmetros às atividades sociais.

É com essa perspectiva que a reforma do Judiciário deve ser tratada. Ao apresentar 26 projetos de lei sobre a reforma processual, o Poder Executivo buscou superar os gargalos existentes no processo de decisão judicial e promover a efetividade dessa decisão para evitar a perpetuação de ações e recursos sobre os mesmos temas, que tomam o tempo dos juízes e das partes interessadas na solução final de seus litígios e na consolidação de um ambiente estável para desenvolver suas atividades.

A maior contribuição que a Justiça pode dar à economia é resolver, de forma eficiente e conclusiva, os litígios
que se apresentem, consolidando as regras necessárias às transações financeiras e comerciais que garantem o desenvolvimento de uma nação.

1 Neste caso, os devedores de financiamentos de veículos com contratos fundados na variação cambial foram à Justiça pedindo a reavaliação dos termos contratados devido à desvalorização intensa do real e o consequente aumento da dívida em grandes proporções.

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