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Exigências e benefícios da colaboração com as autoridades em temas anticorrupção

Autoridades brasileiras e americanas têm cooperado para conferir maior eficácia na troca de informações

Pierpaolo Bottini

Igor Sant’Anna Tamasauskas

David A. O’Neil

Andrew M. Levine

Daniel Aun

 

Crédito: Creative commos

O número de pessoas e empresas envolvidas com acusações da prática de corrupção no Brasil e nos Estados Unidos cresceu exponencialmente nos últimos anos. Como resultado disso, pessoas físicas e jurídicas comumente têm de decidir se colaborarão com as autoridades competentes em troca de benefícios processuais, penais ou adminstrativos ou seguirão uma estratégia defensiva.

A decisão deve ser racional e medida de acordo com critérios técnicos e sensibilidade profissional. Neste artigo, exploramos brevemente os modelos de colaboração nesses países, bem como certos aspectos da dinâmica das interações com as suas autoridades no plano transnacional.

A decisão de colaborar ou não com as autoridades (ou, em caso afirmativo, em que medida) deve ser tomada caso a caso, pois depende de diversos fatores jurídicos, econômicos, reputacionais e, para pessoas físicas, até mesmo pessoais. A colaboração certamente não é o melhor curso de ação em todos os cenários. Por vezes, pessoas físicas e empresas farão melhor em adotar outras estratégias, como contraditar as acusações em juízo. A colaboração tampouco costuma ser um processo simples, uma vez que a elaboração dos acordos exige a análise dos benefícios, a antecipação de problemas futuros, e uma postura de transparência e cooperação do colaborador.

Por outro lado, a colaboração pode ajudar pessoas físicas e empresas a obter possíveis benefícios diretos e indiretos, como a imposição de punições mais brandas (e, em alguns casos, punição alguma) e a mitigação de danos reputacionais. Quando bem conduzida, a colaboração também pode abrir canais para comunicação construtiva com as autoridades encarregadas sobre aspectos fundamentais de possíveis resoluções negociadas.

Brasil

(a) Visão Geral. No Brasil a colaboração das pessoas físicas na seara criminal é regulada pela Lei 12.850/13. O acordo é assinado pelo colaborador e pelo representante do Ministério Público ou pelo Delegado compentente para atuar no âmbito dos fatos relatados, e posteriormente homologado pelo juiz. Caso exista autoridade com prerrogativa de foro envolvida, o celebrante e o magistrado competente para homologação devem atuar no Tribunal com jurisdição sobre aquele personagem.

A cooperação das pessoas jurídicas opera-se mediante um contrato denominado acordo de leniência. A regulação é conferida principalmente pela Lei n. 12.846/13, que estabelece um regime de responsabilização objetiva, pesadas multas (até 20% do valor do faturamento líquido), danos à imagem (publicação obrigatória da condenação em jornais e internet), além de proibição de contratações e acesso a crédito e incentivos públicos.

Há, no Brasil, um fenômeno denominado multiplicidade institucional, que engloba órgãos diversos para tratar do tema: ministério público (federal ou estadual), controladoria e advocacia pública (da União, dos Estados ou dos Municípios), tribunal de contas (federal ou estadual). A depender do tema, haverá a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica-CADE (antitruste), a Comissão de Valores Mobiliários-CVM e o Banco Central. Importante também que se tenha atenção a eventuais questões tributárias, para que o colaborador não seja surpreendido com a cobrança de elevados valores pela autoridade fiscal.

(b) Exigências. A colaboração premiada será eficaz, nos termos da Lei se resultar, alternativamente, na identificação dos autores e partícipes do delito, na revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa, na prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa, na recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais ou na localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Em regra, o colaborador apresenta relatos e provas que corroborem sua existência, ou ao menos indica onde podem ser encontrados tais indícios.

Importante destacar que a mera palavra do colaborador não constitui elemento de prova no Brasil, sendo vedado o recebimento da denúncia (início da ação penal), a decretação de medidas cautelates (prisão, buscas e apreensões, bloqueio de bens e outras) ou a condenação com base apenas nos depoimentos dos colaboradores. São necessários dados de corroboração, ou seja, outros elementos que demonstrem a veracidade da narrativa daquele que coopera com a Justiça.

No que se refere à leniência, o acordo possui três pilares fundamentais: (i) a reparação do dano causado ao erário, que no Brasil deve ser integral; (ii) a chamada alavancagem investigativa, mediante a entrega de evidências e narrativas relacionadas ao ato ilícito; e (iii) o incremento do programa de integridade. Além disso, há uma regra geral de necessidade de ser a primeira empresa integrante do esquema colusivo a colaborar.

(c) Benefícios. Os benefícios da colaboração podem ser o perdão judicial, a redução em até 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade ou sua substituição por restritiva de direitos, ou até mesmo a não denúncia nos casos em que o agente não seja líder de organização criminosa e quando for o primeiro a apresentar as informações desconhecidas das autoridades.  Para crimes cometidos até o final de 2019 é possível negociar como benefício o cumprimento da pena – ou de parte da pena – em regime domiciliar com controle de tornozeleira eletrônica. Para delitos posteriores, a Lei 13.964/19 vedou esse regime de execução de pena ou qualquer outro não previsto expressamemte na lei.

A celebração de um acordo de leniência permite à empresa uma redução de até 2/3 no valor da multa prevista na Lei Anticorrupção, a desobrigação de publicação da decisão condenatória e as proibições de contratar e acessar créditos públicos.

Estados Unidos

(a) Visão Geral. Nos Estados Unidos, o Departamento de Justiça (Department of Justice ou DOJ) e a Comissão de Valores Mobiliários (Securities & Exchange Commission ou SEC) são competentes para aplicar o FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), a principal lei usada na persecução de casos de corrupção envolvendo agentes públicos estrangeiros (i.e., não americanos), que permite a responsabilização penal e civil de pessoas físicas e empresas.

Tanto o DOJ quanto a SEC levam a colaboração em conta quando decidem se apresentarão acusações contra uma pessoa física ou empresa e como resolverão casos sob o FCPA. A despeito de determinadas diferenças quanto aos critérios e possíveis benefícios aplicáveis, a colaboração verdadeira, abrangente, tempestiva e útil com o DOJ e a SEC costuma resultar em tratamento menos severo, de acordo com os seus respectivos manuais de persecução.

(b) Exigências. As autoridades americanas impõem exigências rigorosas para recompensar plenamente a colaboração. Na prática, na maior parte dos casos, requerem que os colaboradores pessoas físicas participem de diversas reuniões e compartilhem informações e documentos potencialmente sensíveis a respeito de si e de terceiros. Também requerem que atuem como testemunhas de acusação em juízo, se necessário, e, em alguns casos, participem de investigações, como, por exemplo, gravando conversas com terceiros.

De forma semelhante, empresas colaboradoras tipicamente devem atuar de forma proativa, conduzir investigações internas e reportar conduta indevida identificada. Também devem preservar informações e documentos relevantes, compartilhá-los com as autoridades e auxiliá-las em sua interpretação, além de tomar as medidas cabíveis para disponibilizar os seus executivos e funcionários para entrevistas. No caso específico do DOJ, os Princípios Federais de Persecução Corporativa (Principles of Federal Prosecution of Business Organizations) determinam que qualquer crédito de colaboração para empresas colaboradoras está condicionado à identificação das pessoas físicas “substancialmente envolvidas ou responsáveis” pela conduta em questão, mesmo que ocupem posições de alta senioridade na empresa, bem como ao compartilhamento de todos os fatos relativos à sua conduta.

(c) Benefícios. Os benefícios conferidos aos colaboradores nos Estados Unidos dependem amplamente do escopo, extensão, utilidade e tempestividade da colaboração, bem como das particularidades de cada caso.

No que diz respeito ao DOJ, em um cenário ideal, uma pessoa física ou jurídica pode colaborar com os procuradores americanos e persuadi-los de que não descumpriu lei alguma. Se isso não for possível, antes que uma denúncia seja proposta, um colaborador pessoa física ou jurídica pode tentar negociar com o DOJ um acordo de não persecução (non-prosecution agreement ou NPA) ou de persecução diferida (deferred prosecution agreement ou DPA).

Nesses acordos, em troca de diversos compromissos assumidos pelo colaborador, os procuradores: concordam em não propor uma ação penal (NPA); ou promovem uma denúncia, mas postergam o prosseguimento da persecução e subsequentemente a abandonam se o colaborador cumprir certas condições (DPA). Uma terceira via para um colaborador pessoa física ou jurídica consiste em pleitear junto aos procuradores imputações menos severas ou a recomendação de uma pena menos rigorosa, em troca de uma declaração de culpa (guilty plea).

De acordo com a Política de Aplicação Corporativa (Corporate Enforcement Policy) do FCPA, que integra o Manual do DOJ, se não houver fatores agravantes, o DOJ emitirá uma “declinação” (declination) e se absterá de denunciar empresas que (i) comuniquem voluntariamente conduta indevida, (ii) colaborem plenamente e (iii) tomem as medidas de remediação adequadas e tempestivas. O DOJ divulga essas cartas de declinação em seu site; note-se que essas declinações não se confundem com o cenário ideal descrito acima, em que uma empresa convence o DOJ de que não descumpriu a lei e o DOJ, portanto, não toma nenhuma medida formal.

Uma empresa que cumpra os três requisitos acima, mas não faça jus à declinação, pode, no entanto, beneficiar-se de uma redução de 50% no valor da multa aplicável e da inexigibilidade de um monitor externo. Uma empresa que não comunique irregularidades ao DOJ de forma voluntária, mas depois colabore plenamente e tome medidas de remediação adequadas, pode receber uma redução de até 25% na multa aplicável. Colaboração ou remediação parciais podem resultar em reduções inferiores a 25% na multa aplicável. Vale notar que a Política de Aplicação Corporativa do FCPA condiciona o recebimento dos benefícios descritos nesse parágrafo ao perdimento, confisco e/ou restituição de ganhos indevidos.

De uma forma geral, as empresas colaboradoras têm maiores chances de resolver questões envolvendo o FCPA com o DOJ em termos mais favoráveis, como por meio um acordo de não persecução (NPA) ou de persecução diferida (DPA) ou, ainda, de uma declaração de culpa (guilty plea) de uma subsidiária. Pela perspectiva americana, essas vias costumam ser preferíveis à declaração de culpa pela empresa controladora ou a uma persecução seguida de condenação em juízo, na falta de colaboração.

A SEC dispõe de instrumentos semelhantes para recompensar colaboradores pessoas físicas e jurídicas. Entre outras medidas, a SEC pode abrir mão de uma persecução (o que é mais raro), apresentar imputações menos gravosas, impor sanções menos rigorosas ou moderar o tom de suas alegações. O Manual de Persecução da SEC determina que, ao avaliar a colaboração de pessoas físicas, a SEC geralmente considerará a ajuda efetivamente prestada, a importância da investigação objeto da colaboração, o interesse da sociedade em punir o colaborador e o seu perfil.

No caso de empresas, o Manual de Persecução instrui a SEC a avaliar o teor e o grau da colaboração, como um todo, inclusive por meio do compartilhamento de informações e documentos relevantes sobre a irregularidade e a sua reparação, assim como fatores adicionais, que incluem o autopoliciamento da conduta relevante antes da sua materialização, a sua comunicação voluntária e a sua reparação. Isso dito, os critérios acima não são exaustivos e as particularidades de cada caso podem impactar a avaliação da SEC.

A colaboração com as autoridades americanas também pode resultar em pelo menos outros dois benefícios significativos para pessoas físicas e jurídicas. Em primeiro lugar, a sujeição a um julgamento público, seguido de uma possível condenação em juízo, acompanhado pela imprensa e por acionistas, pode resultar em mais publicidade negativa e maiores danos reputacionais do que a resolução negociada de um caso, facilitada pela colaboração de uma empresa.

De fato, um estudo de 2015 do professor Stephen Choi, da Universidade de Nova Iorque, sobre mais de 100 casos de persecução revelou que as ações das companhias abertas pesquisadas caíram mais vertiginosamente quando persecuções pelas autoridades americanas foram anunciadas desacompanhadas de uma resolução negociada (- 3.86%) do que quando acompanhadas de uma resolução concorrente (- 0.22%). Em segundo lugar, a colaboração pode dar a pessoas físicas e, principalmente, empresas mais amplitude para discutir aspectos críticos de uma resolução negociada. Isso inclui o momento do anúncio de uma resolução e o emprego de terminologia mais favorável pelas autoridades, o escopo de confissões de fato ou de culpa (e, até mesmo, a necessidade de tais confissões, no caso da SEC) e os termos do pagamento de sanções econômicas.

A resolução de persecuções transnacionais pode ser complexa, razão pela qual é fundamental que pessoas físicas e empresas definam cuidadosa e estrategicamente quais autoridades contatar em cada país e em que ordem.

Do lado americano, casos sob FCPA podem envolver o DOJ, a SEC ou ambos, dependendo das circunstâncias. Embora não exista um balcão único, quando ambos possuem jurisdição concorrente sob o FCPA (como pode ocorrer com empresas brasileiras que negociam American Depositary Receipts em bolsas de valores americanas), o DOJ e a SEC costumam trabalhar lado a lado, de forma relativamente coordenada, inclusive creditando mutuamente pagamentos feitos no contexto de resoluções paralelas com os dois órgãos.

Nesse sentido, em 2018, o DOJ publicou uma Política sobre a Coordenação de Punições Resultantes de Resoluções Corporativas (Policy on Coordination of Corporate Resolution Penalties, também conhecida como Anti-Piling On Policy) para tentar mitigar os impactos do “amontoamento” de autoridades sobre uma empresa com o propósito de penalizar determinada conduta. Essa política determina que o DOJ deve “esforçar-se, conforme seja apropriado,” para coordenar as diversas resoluções com as demais autoridades envolvidas (sejam elas americanas ou estrangeiras), inclusive de forma a considerar as punições por elas impostas.

IV – Consideracões Finais

No plano internacional, as autoridades brasileiras e americanas dedicadas ao combate à corrupção tem cooperado, nos termos da lei, para conferir maior eficácia na troca de informações e na cooperação mútua. Não surpreende, portanto, que o DOJ e a SEC frequentemente tomem conhecimento de conduta comunicada aos seus pares brasileiros, e vice-versa.

Em vista disso, em casos sob a jurisdição de autoridades dos dois países, em condições normais, o melhor caminho frequentemente será abordar ou de outra forma envolver as autoridades competentes em ambas as jurisdições contemporaneamente (ainda que não simultaneamente), principalmente no caso de comunicação voluntária de conduta de interesse. Isso não apenas permitirá que pessoas físicas e empresas se aproveitem dos benefícios da colaboração (e da comunicação voluntária, se for o caso) no Brasil e nos Estados Unidos, mas, também, que busquem firmar resoluções negociadas providas de maior segurança jurídica e reduzam os riscos da imposição de sanções duplicativas.

Nesse contexto, o conhecimento das regras e dos procedimentos de ambos os países, suas características e procedimentos é essencial para uma estratégia racional de atuação. Ainda que as tradições jurídicas e os sistemas tenham significativas diferenças, a atuação conjunta das autoridades e a adoção de mecanismos semelhantes exige uma reflexão sobre os institutos jurídicos de cada país para uma análise coerente da melhor forma de agir, caso a opção seja uma negociação com as autoridades.

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