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Do Roda-Viva à Lava-Jato

Do Roda-Viva à Lava-Jato

Por Malu Delgado | De São Paulo

A vida nômade entre São Paulo, Brasília, Curitiba e Belo Horizonte, rotina que incorpora quase semanalmente, não foi obstáculo para que o advogado criminalista Pierpaolo Cruz Bottini encontrasse rapidamente uma brecha na agenda para um almoço. A ascendência italiana escancarada na carteira de identidade não direcionou a escolha a nenhuma tradicional cantina na capital paulista, bem como a atuação como discípulo do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014, não foi suficiente para que Bottini optasse por sentar-se “À Mesa com o Valor” em um dos restaurantes da rua Amauri, no Itaim, onde o ícone do direito penal era habitué.

Com a mesma determinação com que encara a defesa de seus clientes, Bottini confidenciou sua paixão pela culinária brasileira e a vontade contumaz de saborear arroz de suã no Bar da Dona Onça, na avenida Ipiranga, centro de São Paulo, no edifício Copan. “Eu gosto do centro, sempre gostei. Estudei aqui, dou aula aqui. Acho que tem charme.”

Havia ainda outra razão para a escolha do restaurante comandado pela chef Janaína Rueda. Após passar um longo período em Brasília, para onde se mudou em 2003, aos 24 anos, para trabalhar ao lado de Thomaz Bastos no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, Bottini “morria de saudades de São Paulo”. A volta definitiva do paulistano às origens só ocorreu quase seis anos depois, em 2008. “Quando voltei, esse restaurante foi um dos primeiros lugares a que vim. Para mim isso aqui foi como reencontrar São Paulo. E é debaixo do Copan”, justifica-se, citando o edifício sinuoso projetado por Oscar Niemeyer, cuja história se funde à da capital.

A voz calma e a tranquilidade que exibe destoam da rotina tensa e agitada que o advogado e professor da USP vive especialmente após assumir a defesa de clientes denunciados na Operação Lava-Jato, como o executivo Dalton Avancini, ex-presidente da construtora Camargo Corrêa. Somam-se à lista a jornalista Claudia Cruz, mulher do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e o deputado federal Arthur Lira (PP-AL), todos remando contra a corrente da Lava-Jato. Sem contar a defesa de Carolina de Oliveira Pereira Pimentel, mulher do governador de Minas Gerais, o petista Fernando Pimentel, ambos citados na Operação Acrônimo da Polícia Federal, que apura suposta lavagem de dinheiro e que estourou concomitantemente à Lava-Jato.

Não por acaso o pequeno Guilherme, de 4 anos, definiu o domicílio do pai de maneira curiosa há poucos dias: “Papai mora no avião”. É com o filho mais velho – Bottini também é pai de Maria Clara, de 2 anos – que o advogado, considerado referência da nova geração do direito penal no Brasil, hoje trava os diálogos mais inusitados. “É engraçado como as crianças projetam as coisas”, diz, relembrando com afeto conversas com “Gui”.

Recentemente, Bottini levou a família para passar um feriado em Florianópolis. No aeroporto, Guilherme escutou atentamente a chamada dos passageiros para embarque imediato num voo com destino a Curitiba. “Ele logo olhou pra mim e disse: ‘Papai, papai, o moço falou Curitiba! É a prisão, né?'”

Quando a Lava-Jato começou a encarcerar figurões das maiores empreiteiras do país, os grandes criminalistas, entre eles Bottini, praticamente mudaram-se para Curitiba, onde o juiz Sergio Moro e a força-tarefa do Ministério Público detêm o condão que parece decidir o destino ora da política, ora da economia. “Fiquei muito tempo lá em Curitiba e expliquei para ele: papai vai tentar tirar umas pessoas da prisão. Quando eu voltava, ele perguntava sempre: ‘E aí, papai, conseguiu?'”

No dia em que nos encontramos para o almoço, véspera do feriado de 7 de Setembro, Guilherme quis saber o que era ditadura e foi atrás do pai naquela manhã pedir esclarecimentos. “A gente tem uns diálogos surreais. Chegamos juntos à conclusão de que ditadura é quando as pessoas não podem falar o que querem. Aí ele me disse: ‘Então a tia Rita da escola é ditadora?'” Bottini deu risadas e arrematou: “Acho que ele pegou um pouco do conceito…”

O advogado Pierpaolo Cruz Bottini durante entrevista no Bar da Dona Onça, em São Paulo

O filho parece ter farejado a leitura atual do pai, “A Ditadura Derrotada”, terceiro volume da coleção de Elio Gaspari. Paralelamente, o advogado tenta concluir a biografia de Luís Carlos Prestes – “Um Revolucionário entre Dois Mundos”, escrita pelo historiador Daniel Aarão Reis. “Comprei no aeroporto. Levo sempre algo para ler, e se acaba me dá um desespero brutal.” Bottini tenta introduzir na vida de Guilherme a leitura do gibi que devorou na infância e adolescência – Asterix. “Comecei a comprar de novo a coleção para ele, tentei ler para ele, mas não engatou, não.”

Além dos clássicos quadrinhos de René Goscinny e de Albert Uderzo, Bottini leu na juventude toda a coleção Arsène Lupin – “Ladrão de Casaca”. “Talvez isso tenha alguma influência na escolha pelo direito penal.”

Quase 15 minutos após chegar ao restaurante, Bottini chamou a garçonete. “Tem um bife à milanesa cortadinho aqui… Vocês comem bife à milanesa? É supergostoso…” A garçonete anotou o pedido de um “Croc-Croc” ao ponto para a entrada. Bottini bebeu água mineral ao longo de quase duas horas de conversa, sorvendo vagarosamente o líquido.

A paixão por comida brasileira é curiosa, já que os domingos em família sempre se alternaram entre as paellas da avó materna – a mãe de Botinni, artista plástica, nasceu em Barcelona – e as macarronadas da avó paterna, seu lado italiano. Ainda assim, o arroz de suã – a carne da espinha dorsal do porco, localizada na parte inferior do lombo – lidera a lista de seus desejos culinários.

O advogado refletiu e buscou na infância uma resposta para as suas atuais preferências gastronômicas: “Em casa a gente comia muito arroz com feijão, bife com cebola e purê, que eu acho um espetáculo! Se você me perguntar de que prato que mais gosto, é bife à milanesa com purê de batata”, revelou, sem titubear.

Contido, discreto, o criminalista diz ter “o péssimo hábito de ficar amigo do cliente”. “Amigo mesmo, de jantar na casa dele. Acabo me envolvendo com o caso. Você cria uma relação de intimidade que, aí sim, eu acho que diferencia o criminalista dos demais advogados. O cliente depende muito de você, até emocionalmente. É a liberdade dele que está em jogo. É natural que fique seu amigo depois.” Dalton Avancini, que fez delação premiada e hoje cumpre pena em regime semiaberto, com tornozeleira eletrônica, conquistou Bottini. “Gosto muito do Dalton.”

Já em relação a Eduardo Cunha, Bottini não fez nenhuma declaração de afeto, mas ressalta a admiração pela obstinação do ex-parlamentar. “Ele é impressionante. É muito competente, muito estudioso. Discute com você de igual para igual questões jurídicas. Ele lê todas as peças, e faz sugestões em geral muito pertinentes.”

A cliente é Cláudia Cruz, mas o criminalista deixa transparecer que quem comanda o processo é Cunha. O cliente em questão, aliás, é a prova cabal de que não há ideologia capaz de contaminar o exercício do direito penal. Após atuar num governo do PT, coube a Bottini ter o maior inimigo do partido na lista de clientes. “Eu o defendo num processo penal, não eleitoral. Não sento com os meus clientes para discutir projeto de governo ou eleição. Nas minhas conversas com o Eduardo Cunha nunca tratamos disso. Sempre discutimos os processos dele e da Claudia.”

Sem romantizar a profissão, sintetiza o papel do advogado: “Seja quem for o réu, ele tem direito de defesa, até porque senão o julgamento não é legítimo. Independentemente da posição política de seu cliente e do crime do qual ele é acusado, ele tem todo o direito de ser defendido”.

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Com Augusto de Arruda Botelho em homenagem a Thomaz Bastos

Créditos: Bruno Poletti/Folhapress

Com o advogado Pedro Andrade em jantar do IDDD em São Paulo

Créditos: Zanone Fraissat/Folhapres

O advogado em 2014: “Toda carreira tem vários divisores de água”

Créditos: Bruno Poletti/Folhapress

Em 2006, quando atuava como secretário da Reforma do Judiciário

Créditos: Andre Dusek/Agência Estado

Se a Operação Lava-Jato consolidou de vez o nome de Bottini no direito penal, com apenas 39 anos de idade, ele destaca pelo menos outros três grandes momentos que colocaram o escritório Bottini & Tamasauskas Advogados, a sociedade que mantém há anos com o amigo e colega de USP Igor Sant’Anna Tamasauskas, num patamar de distinção no mercado. “Toda carreira tem vários divisores de água. O Ministério da Justiça foi um para mim. Acho que [a defesa] do Fausto De Sanctis foi outro muito importante. E o mensalão.”

Quando começou a atuar na Lava-Jato, Bottini e o sócio montaram no escritório de advocacia um quadro “desde a [ação] originária com todos os desmembramentos”. “Aí o quadro ficou pequeno e a gente desistiu. Cada uma dessas fases vira não sei quantos inquéritos. É uma coisa complicada.” A Lava-Jato já teve 33 fases e a força-tarefa de Curitiba foi autorizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público a prorrogar seus trabalhos pelo menos até setembro de 2017. “Há duas delações em andamento, a da OAS e a da Odebrecht, que, mesmo com percalços, estão caminhando. Acho que isso não acaba tão cedo”, sentenciou Bottini.

Somente depois de meia hora à mesa é que o solicitadíssimo advogado pegou o celular para consultar as horas. Perguntou se poderíamos pedir os pratos principais. “Já sei o que quero. É o arroz de suã”. “Não tem mais no cardápio”, explicou a garçonete. “O arroz de suã? Não tem mais? Não acredito!”, reagiu, desolado. A garçonete explicou que a chef gosta de inovar o cardápio. Ela sugeriu o arroz de galinhada para aplacar a tristeza aparente do advogado. “É sensacional”, garantiu. “Então vamos experimentar esse aí”, resignou-se.

A primeira sustentação oral de Pierpaolo Bottini no pleno do Supremo Tribunal Federal foi durante o julgamento da Ação Penal 470, o mensalão. Defendeu, sem cobrar honorários, o ex-deputado federal petista Professor Luizinho, que foi inocentado. Ali o pequeno Guilherme teve sua iniciação em direito penal. “Não dá para dizer que isso é tranquilo. São os 11 ministros do Supremo, em cadeia nacional. É uma sustentação de uma hora. Treinei muito, muito, olhando para o espelho e para o meu filho, ainda bebê. Ele ouviu aquilo mais de umas dez vezes.”

Na polêmica briga entre o juiz Fausto De Sanctis e o ex-banqueiro Daniel Dantas, Bottini assumiu a defesa do colega de magistratura. Dantas iniciou uma cruzada contra o ex-juiz e desembargador De Sanctis, que autorizou por duas vezes a prisão dele na Operação Satiagraha (2008). O caso colocou o nome do criminalista em evidência. Veio então a Lava-Jato e, em sua esteira, o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Informalmente, Bottini deu palpites na linha de defesa da ex-presidente, a pedido do ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo.

“Esse impeachment não teve base jurídica. Não houve crime de responsabilidade. E isso não significa defender o governo Dilma e nem achar que foi um bom governo. Mas não vejo pressupostos jurídicos para um crime de responsabilidade”, afirma. “Ela não avalizou gastos sem autorização legal e ela não fez operação de crédito. Não foi por isso que ela sofreu impeachment. Foi pelo conjunto da obra. O problema é que o conjunto da obra, no presidencialismo, não autoriza o impeachment.”

O arroz de galinhada chega e o advogado admira o prato. Após a primeira garfada, a aprovação, para alívio geral: “Hum… Vou dizer que está bem substituído e representado o arroz de suã”.

A atuação na Lava-Jato tem sido uma aprendizagem constante, confidenciou. A operação é um produto, segundo ele, de três legislações aprovadas entre 2012 e 2013. “A Lava-Jato é baseada na lavagem de dinheiro, na delação premiada e na leniência. Por ironia do destino, esse marco legal foi aprovado por um Congresso que depois sofreu os efeitos brutais destas leis.”

A primeira delação premiada da vida de Bottini foi a do ex-presidente da Camargo Corrêa. “Desde o começo da Lava-Jato o Márcio [Thomaz Bastos] sempre achou que a saída seria fazer acordo. Aí um grupo de advogados foi falar com o [Rodrigo] Janot [procurador-geral da República]. Eu estava nesse grupo, o Márcio foi, fomos representando as empresas, marcado na agenda, um pedido formal.” Janot, segundo ele, foi claríssimo: havia sim interesse do Ministério Público em fazer acordo de delação com as empresas, mas isso implicaria multas altíssimas e os promotores não abririam mão de pena corporal, ou seja, de prisões.

“Uma semana depois estávamos esses 15 advogados em Curitiba, conversando com a força-tarefa da Lava-Jato. Foi uma reunião engraçada, porque ninguém sabia direito o que queria. Ninguém nunca tinha feito delação, nem leniência. Foi uma conversa de boas intenções.” Ao fim da reunião, recordou-se Bottini, um dos advogados perguntou aos procuradores: “Podemos considerar essa conversa uma bandeira branca?” “Um procurador deu uma longa risada e disse: ‘Não, não podemos’. No dia seguinte foram expedidos os primeiros mandados de prisão.”

Bottini credencia a Thomaz Bastos parte da alavancagem de sua carreira. “Apertei a mão do Márcio pela primeira vez na nossa posse”, recordou-se. “Obviamente eu o conhecia muito, mas ele não tinha ideia de quem eu era até aquele momento.” A amizade com o ministro se fortaleceu ao longo dos anos em que moraram em Brasília, mas foi Sérgio Renault, o então titular da Secretaria de Reforma do Judiciário, que convidou Bottini para ingressar na equipe.

No início do governo Lula o jovem Bottini foi de mala e cuia para Brasília comandar o Departamento de Modernização da Justiça do Ministério da Justiça [2003 a 2004]. Quando Renault deixou a secretaria, o ministro colocou Bottini no lugar. E foram mais dois anos trabalhando diretamente com o Thomaz Bastos.

Deixar São Paulo, na época, foi decisão fácil. “Eu tinha 24 anos. Achei que era uma oportunidade que não ia acontecer de novo.” Quando Lula foi eleito pela primeira vez, Bottini acabara de ingressar no doutorado na USP. Também havia aberto o bar Roda-Viva, em Pinheiros, fazia três meses. “Eu era dono de bar! Sempre gostei de música brasileira e montei um bar na época, decorado com capas de LPs. Existe até hoje”, contou, parecendo surpreender-se com as realizações do passado. O nome do empreendimento reflete a admiração por Chico Buarque. “Tenho um problema: gosto de coisas dos anos 70 para trás”, contou, citando, também, a idolatria por Tom Jobim. Ele fez aulas de piano e de violão, mas, com um rigor quase jurídico, antecipou-se: “Não toco nada, nada. Sou um desastre”.

Para trabalhar ao lado de Thomaz Bastos, Bottini passou adiante a sociedade do bar, terminou um namoro e fechou o escritório. “Era aquilo: ir por um salário superbaixo na época, sem direito a passagem de avião para voltar. Mantive o doutorado.” Para concluir os estudos na USP, tinha de voltar semanalmente à terra natal. “Precisava pagar as passagens do meu bolso. Eram aquelas passagens da BRA, que eu parcelava em um monte de vezes.”

Falar sobre dinheiro não é um tabu, explicou, quando perguntado se é um homem rico, já que o pagamento parcelado de passagem aérea, para quem pode voar de primeira classe quando bem entender, é algo que definitivamente ficou no passado. “É claro que a gente ganha dinheiro. De verdade, para mim, isso não muda nada, nada, nada. Continuo gostando das mesmas coisas.” Defensor da própria causa, argumentou que penalistas são tão bem remunerados quanto tributaristas e especialistas em direito societário. “Você pode dizer que parte da advocacia, sim, é muito bem-remunerada. Mas há profissionais que são bem remunerados em outras áreas. O criminalista não é ponto fora da curva.”

Diferentemente de Thomaz Bastos, que sem cerimônia cobrava dos clientes honorários milionários, Bottini nunca trata do preço da causa. “A parte do financeiro, de cobrança, não sou eu que faço. Tenho um problema que às vezes eu gosto demais do caso, fico com vontade de pegar e não negocio. Então a gente combinou no escritório que essa parte eu não faço. Eu nunca falo com o cliente sobre honorários.”

Assim como o desejo pelo arroz de suã, ele pede à garçonete a sobremesa sem consultar o cardápio. “Traz aquele minichurro, por favor.” Ela sugeriu também um café coado na hora, o que ele aquiesceu de pronto. “Esse churro é um espetáculo. E esses docinhos que vêm com o café? Entendeu agora por que eu venho aqui? É por causa dos docinhos…”, disse, ao saborear o segundo minichurro com vontade. Sugere, então, que peçamos a conta. Avisa que tem uma reunião com novos clientes, para tratar da última operação da PF que mirou os fundos de pensão.

O advogado sabe bem a encrenca que lhe espera no futuro, mas comemorou que o dia seguinte seria feriado. O pula-pula para as crianças já havia sido montado em casa e estava confirmado na agenda o café da manhã com os amigos – muitos deles advogados – e seus respectivos filhos. Aos fins de semana, até a babá é dispensada. “Tento ficar com meus filhos, levar ao cinema, em praça, ao parque, jogar bola.” Nesses dias, mergulha de cabeça na vida em família e se desconecta dos chamados do mundo “da prisão de Curitiba”.

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