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DIREITO DE DEFESA

O governo e a imprensa: another brick in the wall

Por Pierpaolo Bottini

Não é de hoje que jornalistas incomodam. Desde o começo da história humana aqueles que propagam notícias cultivam o incômodo hábito de revelar ao público informações que nem sempre agradam aos grupos no poder. São peças que desafinam a sinfonia de suposta ordem, segurança, bem-estar e honestidade, levantando os véus que encobrem fatos desagradáveis. A imprensa levanta o tapete e joga a sujeira escusa nos ventiladores, espraiando notícias nem sempre lisonjeiras aos governantes de ocasião.

As autoridades brasileiras travam embates com o jornalismo desde o nascimento da nação. José Bonifácio, o artífice da independência, tramava em seu gabinete formas de controlar e censurar a imprensa. Promoveu devassas e é suspeito de ter mandado espancar o jornalista Luis Augusto May, dono do jornal Malagueta, crítico do Império.

A República não foi mais branda com a imprensa. Já nos primeiros anos do regime, Floriano Peixoto decretou que autores de escritos sediciosos sofreriam arcabuzamento. Nos anos seguintes, incontáveis foram as leis formuladas para o controle das atividades jornalísticas, todas com apelidos à altura de suas pretensões repressivas. A Lei Infame de 1923 punia a divulgação de segredos do Estado, a ofensa ao Presidente da República e à moral pública e aos bons costumes. A Lei Celerada de 1927 previa censura de publicações que ameaçassem a ordem nacional. E nem é necessário gastar tinta para enumerar os conhecidos atos de Getúlio Vargas e dos governos militares pós 64 para reprimir jornalistas.

É verdade que nem sempre a imprensa é justa ou correta. Muitas vezes, em busca de atenção, cria falsos heróis, massacra inocentes, reforça estereótipos, preconceitos e distorce fatos menores para impressionar ao grande público.

Ainda assim, a imprensa livre é o sustentáculo da democracia. A exposição de fatos, denuncias, informações e críticas é a matéria sobre a qual se constrói a cidadania. Não há sociedade civil organizada sem informação. E não há informação sem liberdade de imprensa.

Fosse o jornalismo algo banal ou inócuo, não incomodaria governos, não pautaria manifestações e discursos de altas autoridades, não mobilizaria milhares de robôs em redes sociais em busca de ataques covardes a profissionais que apenas cumprem com seu dever.

É sintomática a disposição de ataques à imprensa por governos autoritários. Mussolini incensava a multidão contra jornalistas em seus discursos. Hitler e seus seguidores já em 1933 empastelaram o Munchener Post apelidado de cozinha venenosa pelo líder nazista por suas críticas ao popular primeiro ministro. Um ano antes, partidários de Getúlio Vargas destruíram o Diário Carioca em 1932, por sua linha opositora ao regime.

Em tempos contemporâneos, Kaczynski na Polônia aprovou lei aumentando o controle estatal sobre estações publicas de radiodifusão. O governo Putin amplia o cerco contra periódicos críticos, enquanto Trump exclui destacados repórteres de conferências de imprensa já no início de seu mandato.

Representantes do atual governo brasileiro patrocinam ataques a jornais e a jornalistas, sem grandes preocupações com a dimensão do calão. Fossem espasmos isolados ou mero ato de má educação, não preocupariam. Mas quando se ataca a dignidade pessoal de profissionais de imprensa, quando se expõe seu endereço e nome dos filhos ao público, quando se mobilizam hordas e milícias virtuais com o escopo de difamar e caluniar, dá-se um passo relevante em direção à repressão.

E nesse salve-se quem puder, em meio a mortos e feridos, restará o medo e o silêncio. E a incapacidade de denunciar violações mais graves à liberdade. Primeiro a imprensa. Depois os sindicatos, os movimentos populares ou culturais, os advogados, o Judiciário, os partidos, a sociedade civil, e todos aqueles que pensem diferente ou mesmo que pensem, seja da maneira que for.

Não acabará bem, nada bem.

 

Pierpaolo Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2020
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